Enquanto vestia o morto, seu obituado marido, Dona Faulhinha mantinha uma conveniente lágrima. Era sempre a mesma lágrima, a única que ela derramara depois que Ananias Xavier se decidira defuntar. Se a lágrima merecia desconfiança, o falecimento não era menos fiável. A mulher deitava dúvida em Ananias, mesmo no trespasse fatal. O homem invocara uma suspeitosa doença. Pouco contava, agora, a verdade do motivo. Certo é que a suspeita ruminava em seu peito. Na penumbra da sala, Faulhinha recebia as condolências. Para efeito das visitas, ela exibia a lágrima, prova da sua tristeza, rebrilhando no fundo negro do rosto.
Quando ficou sozinha com o cadáver, Faulhinha chorou de verdade. Não por pena do falecido. Mas com desgosto de não ter sido ela a levada. Com inveja de o dedo de Deus não ter revirado sua página no livro dos viventes. Que lhe restava, agora? Ser uma réstia, sobra do nada que fora a sua vida? Durante o casamento nunca fora feliz. Mas, ao menos, ela se nutria de ódio por seu esposo, supremo mulherengo, mestre das malandragens.
Depois de chorar, lhe pareceu que qualquer coisa eclodira dentro de sua alma. Se sentiu vazada, mas não vazia. Porque o seu dentro se fez fora: lhe veio o irreparável desejo de morrer. Sempre fora mulher de sombra, no quieto subúrbio do seu viver. Se nunca tomara o pulso à vida como podia, agora, decidir pôr termo a si mesma? Não, ela nunca teria coragem para o derradeiro gesto.
Faulhinha foi a um canto do quarto e retirou a gaiola com o pássaro de estimação do falecido Ananias. Um papagaio de cabeça cinzenta que sempre a irritara e cujo trato ela declarara estar fora das suas domésticas obrigações. Mas que ela prometera tratar, com respeito, após a morte dele. Ficou olhando a gaiola e mais o incompetente bicho sobre a mesa de jantar. Viu uma tristeza nos olhos do pássaro. Simples impressão, papagaio é bicho enganoso, bem apropriado para o malandro do Ananias. Depois, a mulher ficou parada como se nela aflorasse, por fim, a mais antiga decisão de toda sua vida.
Então, se ajoelhou, ela que nunca se havia prostrado. Sofria dos ossos e das junções.
— Um dia que me ajoelhe nunca mais sairei do chão — sempre dizia.
Mas, desta vez, demorada e custosamente, ela se dobrou, joelhos na nudez da pedra. E pediu a Deus que emendasse tal morte. A levasse, sim, a ela, Dona Faulhinha da Conceição Dengo. Que ela não daria nenhum trabalho. Os anjos não necessitariam de cumprir horas extra. Morreria com tanta modéstia que nem se daria conta que se havia retirado da vida. A morte, naquela noite, nem lhe haveria de doer. Engoliria a última gota de ar, em deslize da vida para o nada. Sem suicídio, sem golpe, sem autoria. Como porta que se fechasse sem gesto nem vento. Ausentemente. Nem morrer aquilo seria: o nenhum verbo.
Vale a pena ouvir as palavras de Faulhinha Dengo. Ela que vivera sempre calada, agora, no extremo momento, se empenhava na mais cuidada oratória. Seu fito: encantar o próprio Senhor dos céus, Ele que, coitado, estaria saudoso da beleza da palavra.
Escute-se, pois, a estranha oração de Faulhinha, com a devida vênia:
— Estou a pedir licença a Deus para sair da vida hoje. Sim, me encomendo, certa e deserta. Me deixe passar para lá da margem, senhor Deus. É que, nesse outro lado, eu podia ajudar Ananias a se vestir, servir seu prato, remendar seus trapos.
Num repente, um ruído no quarto a sobressaltou. Um ranger de leito, um estalar de ossos, a fez arrepiar. Olhou de viés, que o medo não a autorizava a mais. Levou as mãos à boca para não gritar. Ali sobre o féretro, o cadáver emendava sua morte, erguendo-se e começando a falar:
— Florzita: não fale assim com Deus!
Era uma ordem? Não, era uma súplica. Pela primeira vez, ele lhe pedia alguma coisa, com humildade.
— Não faça isso, mulher, não peça para ir.
— Não se meta, marido!
— Eu preciso que fique aí, nessa outra banda. É que não tenho nenhum vivo que continue tratando de mim.
Mas Faulhinha continuou, após o susto, proferindo suas orações, encomendando a pouca réstia de alma. Ela estava pensando com o corpo no universo: como o mundo seria melhor se todos os mortos tivessem sido enterrados sorridentes. A gente chegaria até ouvir gargalhadas dos defuntos, saídas da terra quando a lua lustrasse em cima, arredondadinha. É que, da maneira que se retiram contrariados, os mortos sentem ciúme da Vida, carecendo de substância.
Cansado de escutar, o falecido agravou seu tom. Ele já não pedia. Voltava a seus modos de vivo. E berrou, ameaçou. Impassível, a esposa suspirou:
— Cale-se, Ananias. Se não, eu não consigo ouvir a voz de Deus.
— Escusa... Deus não vai falar consigo.
A esposa não dava ouvidos. E regressava às rezas. Ananias seguia, fermentando fúria. A dado momento, ele até se riu. De novo, sua risada desvalorizava a mulher. Mas depois, ele se retomou patrão, sisudo mandador.
— Eu só tenho um instante, mulher, me escute. É que tenho tarefas para você ir executando por aqui.
— Bem pode falar. Já lhe escutei demasiado quando você era vivo.
— Na nossa raça quem não respeita os mortos? Eu.
— Está armada em branca?! Pois lhe pergunto.. você está falar para qual Deus? Os nossos antigos ou esse de agora?
— Escuta, Ananias. Você não morreu?
— Sim, morri.
— Então deixe-se estar morto.
Se calasse. Mais ainda: deixasse de ter voz, deixasse sequer de deixar memórias. Que ele há muito já a tinha feito extinguir. A ela que nascera de mais. Nascera tanto que pensara que seria para sempre. Não se adivinhava mas Faulhinha tivera o seu reino. Não parecia mas ela tinha sido menina feliz, com infância farta. Era isso que a tinha salvado: o estar guarnecida de lembranças de um tempo que só há fora do Tempo.
Casara para ser duas, acabara sendo nenhuma. Asa esquecida, sua alma já esquecera o perfume do voo. Culpa dele, o Ananias. Por isso, ele a deixasse sair da vida, como ela bem queria.
O morto escutava, alarmado, as palavras de sua esposa. Falasse Faulhinha tão lindo: ele nem sabia. Antes, ela sempre se apagara em silêncio. E agora, escutando a rendeada oração, Ananias a desconhecia. Por exemplo, suas estas palavras:
— Eu quero entrar no chão antes que acabe a terra.
E, de novo, Faulhinha dirigia suas petições para ouvidos divinos. Enterrada fosse ela de cara visando o chão. Olhos fitando o céu. Agora já não lhe bastava amar as flores: necessitava ser haste e pétala, florescer por aí, fazer, por fim, justiça a seu nome.
De repente, o morto fez menção de avançar sobre a esposa. Aproveitou ela estar de joelhos e a segurou pelo pescoço. Mas a mulher respondeu com raiva e a força de seu braço reconduziu o falecido ao seu último leito. Quando falou, debruçada sobre o espantado Ananias, Faulhinha cuspia rancores:
— Não entende, sacana? Não entende que eu não quero ser sua viúva?
Pior que ter sido esposa seria carregar o luto dele. Podia ser viúva de qualquer um. Menos dele, saturada de ser sombra, ausência, espera. O morto, surpreso, ainda falou:
— Mas ainda há pouco você pedia a Deus que queria tratar de mim, aqui nos aléns...
— Pois mentia.
O falecido Ananias voltou a se entornar no leito. Ficou imóvel, categoricamente falecido. A última sílaba se enroscou nos seus olhos. Com as próprias mãos baixou as suas pálpebras. E refaleceu. Desressuscitado.
Sem se erguer, apenas arrastando os joelhos para perto da mesa, a mulher puxou a gaiola para junto de si. Abriu a porta. O papagaio não saiu logo da clausura. Esperou que o corpo da mulher se vertesse no chão inteiro. Faulhinha se derramou, abraçada pelo chão. O pássaro ainda esperou um tempo mais. Paciente, como se esperasse que o chão se convertesse em terra. Ou como se soubesse assuntos só dele. Depois, sacudiu as asas enquanto lançava um derradeiro olhar sobre a mulher. Se Faulhinha ainda ali estivesse teria reconhecido, com estranheza, aqueles olhos. Só então o pássaro voou, adentrando-se no seu primeiro céu.
Quando ficou sozinha com o cadáver, Faulhinha chorou de verdade. Não por pena do falecido. Mas com desgosto de não ter sido ela a levada. Com inveja de o dedo de Deus não ter revirado sua página no livro dos viventes. Que lhe restava, agora? Ser uma réstia, sobra do nada que fora a sua vida? Durante o casamento nunca fora feliz. Mas, ao menos, ela se nutria de ódio por seu esposo, supremo mulherengo, mestre das malandragens.
Depois de chorar, lhe pareceu que qualquer coisa eclodira dentro de sua alma. Se sentiu vazada, mas não vazia. Porque o seu dentro se fez fora: lhe veio o irreparável desejo de morrer. Sempre fora mulher de sombra, no quieto subúrbio do seu viver. Se nunca tomara o pulso à vida como podia, agora, decidir pôr termo a si mesma? Não, ela nunca teria coragem para o derradeiro gesto.
Faulhinha foi a um canto do quarto e retirou a gaiola com o pássaro de estimação do falecido Ananias. Um papagaio de cabeça cinzenta que sempre a irritara e cujo trato ela declarara estar fora das suas domésticas obrigações. Mas que ela prometera tratar, com respeito, após a morte dele. Ficou olhando a gaiola e mais o incompetente bicho sobre a mesa de jantar. Viu uma tristeza nos olhos do pássaro. Simples impressão, papagaio é bicho enganoso, bem apropriado para o malandro do Ananias. Depois, a mulher ficou parada como se nela aflorasse, por fim, a mais antiga decisão de toda sua vida.
Então, se ajoelhou, ela que nunca se havia prostrado. Sofria dos ossos e das junções.
— Um dia que me ajoelhe nunca mais sairei do chão — sempre dizia.
Mas, desta vez, demorada e custosamente, ela se dobrou, joelhos na nudez da pedra. E pediu a Deus que emendasse tal morte. A levasse, sim, a ela, Dona Faulhinha da Conceição Dengo. Que ela não daria nenhum trabalho. Os anjos não necessitariam de cumprir horas extra. Morreria com tanta modéstia que nem se daria conta que se havia retirado da vida. A morte, naquela noite, nem lhe haveria de doer. Engoliria a última gota de ar, em deslize da vida para o nada. Sem suicídio, sem golpe, sem autoria. Como porta que se fechasse sem gesto nem vento. Ausentemente. Nem morrer aquilo seria: o nenhum verbo.
Vale a pena ouvir as palavras de Faulhinha Dengo. Ela que vivera sempre calada, agora, no extremo momento, se empenhava na mais cuidada oratória. Seu fito: encantar o próprio Senhor dos céus, Ele que, coitado, estaria saudoso da beleza da palavra.
Escute-se, pois, a estranha oração de Faulhinha, com a devida vênia:
— Estou a pedir licença a Deus para sair da vida hoje. Sim, me encomendo, certa e deserta. Me deixe passar para lá da margem, senhor Deus. É que, nesse outro lado, eu podia ajudar Ananias a se vestir, servir seu prato, remendar seus trapos.
Num repente, um ruído no quarto a sobressaltou. Um ranger de leito, um estalar de ossos, a fez arrepiar. Olhou de viés, que o medo não a autorizava a mais. Levou as mãos à boca para não gritar. Ali sobre o féretro, o cadáver emendava sua morte, erguendo-se e começando a falar:
— Florzita: não fale assim com Deus!
Era uma ordem? Não, era uma súplica. Pela primeira vez, ele lhe pedia alguma coisa, com humildade.
— Não faça isso, mulher, não peça para ir.
— Não se meta, marido!
— Eu preciso que fique aí, nessa outra banda. É que não tenho nenhum vivo que continue tratando de mim.
Mas Faulhinha continuou, após o susto, proferindo suas orações, encomendando a pouca réstia de alma. Ela estava pensando com o corpo no universo: como o mundo seria melhor se todos os mortos tivessem sido enterrados sorridentes. A gente chegaria até ouvir gargalhadas dos defuntos, saídas da terra quando a lua lustrasse em cima, arredondadinha. É que, da maneira que se retiram contrariados, os mortos sentem ciúme da Vida, carecendo de substância.
Cansado de escutar, o falecido agravou seu tom. Ele já não pedia. Voltava a seus modos de vivo. E berrou, ameaçou. Impassível, a esposa suspirou:
— Cale-se, Ananias. Se não, eu não consigo ouvir a voz de Deus.
— Escusa... Deus não vai falar consigo.
A esposa não dava ouvidos. E regressava às rezas. Ananias seguia, fermentando fúria. A dado momento, ele até se riu. De novo, sua risada desvalorizava a mulher. Mas depois, ele se retomou patrão, sisudo mandador.
— Eu só tenho um instante, mulher, me escute. É que tenho tarefas para você ir executando por aqui.
— Bem pode falar. Já lhe escutei demasiado quando você era vivo.
— Na nossa raça quem não respeita os mortos? Eu.
— Está armada em branca?! Pois lhe pergunto.. você está falar para qual Deus? Os nossos antigos ou esse de agora?
— Escuta, Ananias. Você não morreu?
— Sim, morri.
— Então deixe-se estar morto.
Se calasse. Mais ainda: deixasse de ter voz, deixasse sequer de deixar memórias. Que ele há muito já a tinha feito extinguir. A ela que nascera de mais. Nascera tanto que pensara que seria para sempre. Não se adivinhava mas Faulhinha tivera o seu reino. Não parecia mas ela tinha sido menina feliz, com infância farta. Era isso que a tinha salvado: o estar guarnecida de lembranças de um tempo que só há fora do Tempo.
Casara para ser duas, acabara sendo nenhuma. Asa esquecida, sua alma já esquecera o perfume do voo. Culpa dele, o Ananias. Por isso, ele a deixasse sair da vida, como ela bem queria.
O morto escutava, alarmado, as palavras de sua esposa. Falasse Faulhinha tão lindo: ele nem sabia. Antes, ela sempre se apagara em silêncio. E agora, escutando a rendeada oração, Ananias a desconhecia. Por exemplo, suas estas palavras:
— Eu quero entrar no chão antes que acabe a terra.
E, de novo, Faulhinha dirigia suas petições para ouvidos divinos. Enterrada fosse ela de cara visando o chão. Olhos fitando o céu. Agora já não lhe bastava amar as flores: necessitava ser haste e pétala, florescer por aí, fazer, por fim, justiça a seu nome.
De repente, o morto fez menção de avançar sobre a esposa. Aproveitou ela estar de joelhos e a segurou pelo pescoço. Mas a mulher respondeu com raiva e a força de seu braço reconduziu o falecido ao seu último leito. Quando falou, debruçada sobre o espantado Ananias, Faulhinha cuspia rancores:
— Não entende, sacana? Não entende que eu não quero ser sua viúva?
Pior que ter sido esposa seria carregar o luto dele. Podia ser viúva de qualquer um. Menos dele, saturada de ser sombra, ausência, espera. O morto, surpreso, ainda falou:
— Mas ainda há pouco você pedia a Deus que queria tratar de mim, aqui nos aléns...
— Pois mentia.
O falecido Ananias voltou a se entornar no leito. Ficou imóvel, categoricamente falecido. A última sílaba se enroscou nos seus olhos. Com as próprias mãos baixou as suas pálpebras. E refaleceu. Desressuscitado.
Sem se erguer, apenas arrastando os joelhos para perto da mesa, a mulher puxou a gaiola para junto de si. Abriu a porta. O papagaio não saiu logo da clausura. Esperou que o corpo da mulher se vertesse no chão inteiro. Faulhinha se derramou, abraçada pelo chão. O pássaro ainda esperou um tempo mais. Paciente, como se esperasse que o chão se convertesse em terra. Ou como se soubesse assuntos só dele. Depois, sacudiu as asas enquanto lançava um derradeiro olhar sobre a mulher. Se Faulhinha ainda ali estivesse teria reconhecido, com estranheza, aqueles olhos. Só então o pássaro voou, adentrando-se no seu primeiro céu.
Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.
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