quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Mia Couto (O amante do comandante)


Vou contar vos o que se passou há muito tempo no sítio que antepassou este nosso lugarzito. Certa uma vez chegou à nossa aldeia um barco carregado de marinheiros portugueses. O navio não se afeiçoou à praia. Ficou ao largo, escondido nesse longe onde nascem os cacimbos. Os visitantes ficaram lá fechados, sabe se lá que fazendo. Até que, dias passados, do grande barco saiu uma pequena canoa que se aproximou da costa. Nela vinham três portugueses, enroupados e barbalhudos. Com eles havia a mais um preto, como nós. Não era da nossa gente mas falava nossa língua. Esse tipo escuro desceu e acenou um chamamento:

— Quero falar com as humanas pessoas daqui — disse ele.

E deu a seguinte mensagem: que o comandante do navio carecia de um homem urgente e imediato. Que serviço esse homem deveria executar? Serviço de amor, respondeu o tal preto que acompanhava os brancos.

— De amor?

– Sim, de amor carnudo, quer dizer, trabalho de rasga panos, espreme corpo, afaga suspiro. O povo tentou endireitar entendimento: que esse comandante necessitava era de mulher, dessas bastante cheias de polpa e sumo.

— Não, ele precisa é um homem.

— Um homem?

— Sim, um homem. Preferência, um que fale uma porçãozita de português.

— Mas, desculpa: um homem?

Porém, a delegação visitante já rumava de volta ao barco. Ficou se nessa dúvida: seria lapso do tradutor? Entregava se um masculino ou uma feminina? O caso era de séria maka. Das duas: ou era lapso do língua e mandassem um homem masculino isso seria motivo de castigo por parte dos portugueses ou, se o intérprete falara direito e então mandassem uma mulher polpuda, esperar se ia igual zanga. Não se queria ofensa com os brancos. E reuniram se os mais velhos, a acertar verbo com intenção. No final se consensou: o pedido tinha o sexo certo.

— Pediram macho, entregamos macho.

Haveria, sim, que lhe dar o devido e inadiável andamento. Não se queria desobediência com os tugas.

— Mas mandamos qual homem?

Os aldeões perguntavam-se. Até que um dos mais velhos opinou:

— Já sei, mandamos Josinda.

Mas sendo ela fêmea, já parideira e tudo...

Mulher, sim, mas tão pouco feminina que, às primeiras vistas, passava por homem. Sendo que estranha, masculosa e grosseira. Não fosse ela ter tido filhos nem se daria por ela ser, realmente, fêmea.

O mais velho autor da proposta sustentou a ideia. Josinda vinha mesmo a calhar, dourando sobre azul: ela era meio termo, carne e peixe, ambivolátil. Ainda por mais, ela falava a língua dos brancos.

— Nós mandamos Josinda com outro nome, raspamos os cabelos, vestimos lhe de homem. Pelos sins, pelos nãos.

Saiu um miúdo a correr com mandato de comparecimento da mulher quase homem. Encontrou a moça sereiando pelas praias, à procura do príncipe viúvo.

— Josinda, venha nas pressas: estás ser precisada com os brancos.

— Espera que vou puxar lustro nos meus panos.

— Nada disso, você vem assim mesmo, dessa forma.

— Mas assim com roupas de meu pai, pareço mesmo ele.

— Por isso mesmo. A propósito, você vai dizer que se chama Jezequiel.

— Jezequiel? Porquê Jezequiel, nome de macho tão feio?

— Os portugueses gostam muito desse nome.

Josinda se apresentou aos mais velhos. Eles ordenaram muito conselho, tudo em segredo, boca na orelha. Lhe sugeriram o fingimento dos modos, engrossar de maneiras. Por fim, ela se aprontou e se dirigiu ao barquinho dos portugueses. Falou com o marinheiro que vinha buscar a encomenda:

— Lhe gosto de ver nessa farda, luzidinha, o senhor soldado.

— Sou alferes.

— Desculpa, pensava que fosse militar. Me enganei, quem não se engana? O único que não tropeça é o pássaro que avoa no céu.

E lá foram, engolidos pela noite. Os velhos ficaram toda a noite acordados, receosos das novidades. De madrugada, entre o cacimbo, se vislumbrou o barco dos soldados.

— Então, como foi?

Josinda estava de pé dentro do barco, embrulhada nos panos, só os olhos espreitavam. Mas esses mesmos olhos se repletavam de água: a mulher chorava, coisa que nunca lhe fora vista na vida. E assim, em pranto, ela se afundou silenciosa na escuridão. Os velhos, assustados, se despediram dos portugueses, sublinhando nos respeitos.

Mais tarde, se fez a delegação junto à porta de Josinda. A curiosidade fervia: o que teria feito chorar a mulher? Bateram. Mas ela obstinou um silêncio.

Na noite seguinte, viu se aproximar um barco com soldados. O povo, receoso, em cachos, na praia:

— Vem nos matar a todos!

Mas os portugueses não puxaram de violência. Perguntaram por Josinda.

— O nosso comandante precisa outra vez desse Jezequiel.

E uns jovens foram mandados, súbitos, na demanda da desejada mulher. Chegaram a casa dela, explicaram as exigências. Mas Josinda negou, sacudindo a cabeça:

— Digam que não me encontraram.

— Mas os portugueses...

— Deixem-me.

A voz dela era um não, redondo, incontornável. Insistiram, ameaçaram, imploraram. Nada. Os jovens regressaram à praia, de mentira improvisada. Que desde manhã que ninguém punha as vistas no dito e cujo Jezequiel. Os soldados deixaram promessa: um prêmio caso o descobrissem. E a embarcação fez se de regresso ao navio, acabrunhada como um luto.

Na manhã seguinte, vieram dois barcos: os militares desembarcaram e se espalharam a vasculhar casas e matas. As gentes se contraíam, temerosas. Deram com a casa de Josinda mas estava vazia. Não sobrara rastro nem sequer vizinhança dela. Ao fim da tarde, terminaram as buscas e os soldados se remeteram ao grande navio. Ficou um português, encarregado de obter informação sobre esse mencionado amante do comandante. Começou por modos bravios. Que matava, incendiava, violava. Depois, se adoçou em promessa:

— Eu dou dinheiro a quem disser. Dou todo o dinheiro que quiserem.

— Todo!?

— É que vocês nem imaginam como sofre o nosso comandante. Nunca o vimos assim.

Era madrugada quando se viu desembarcar, despenhado e despenteado, o lusitano comandante. Saltou ainda em água, avançou para terra firme, aos berros tresdoidados. Indagava por Jezequiel, rondava em círculos, todo ele fora das órbitas. Depois, tombou em si, debaixo dos próprios ombros, esgotado. Ficou assim, nebulado e rócheo, durante longos momentos. À sua volta, os soldados aguardavam, indecisos. Passou-se um dia inteiro, sem água a ir nem a vir. Até que o militarão deu ordem: eles que regressassem ao barco, levantassem âncora e partissem.

— E o nosso comandante?

— Eu fico.

E ficou. Primeiro, junto às maresias. Depois, partiu pela savana à procura de seu amante de uma noite só. A última coisa que fez ao abandonar a praia foi empunhar um pequeno pauzinho e gatafunhar a areia. Ninguém ali sabia decifrar aqueles desenhos.

Mas um soldado português que ainda regressou à praia admirou-se de ver escrito no chão: Josinda.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

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