domingo, 13 de julho de 2025

Asas da Poesia * 50 *


Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

O conjunto da obra

Não me verão sacrificar meu texto
somente em prol da rima ou da estrutura.
Nos vincos da melhor literatura 
versejo, sem alarde, sem pretexto.

Há quem compõe de forma audaz, segura,
buscando a perfeição de um anapesto
e ao se perder, contudo, no contexto
destina o seu poema à sepultura.

Há que se ater nas regras alfabéticas
e, salvo engano, as criações poéticas
exigem mais que forma e conteúdo…

Também, não se esquecer que a poesia
há de fluir com pompa e galhardia…
Formalidade é bom, mas não é tudo!
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Ao ver-te fico perdido,
mulher – onça desalmada,
sinto dor, fico ferido
vai-se ver – não tenho nada.
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Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/ Portugal

A saudade
encontra sempre velhos trilhos
e deixa vestígios onde o amor
semeou  a paz das margaridas
a indicar o caminho.
O tempo, impávido matreiro
assistiu ao extinguir da chama
sem manifestar qualquer emoção;
para desespero da palavra 
tremendo na ausência do afago,
de um abraço sentenciado.
Que importa agora
tentar atrasar as horas?
Se os lençóis são testemunho
de que nada devolve a forma original
ao côncavo deixado na partida.
= = = = = = = = =  

Sextilha de
MILTON SOUZA
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS

Ilusões, esta vida tantas deu
que eu bebi desta luz de tantas cores,
muitas delas, já mortas encontrei,
outras vivas, com brilhos multicores...
Ilusões, as mais lindas transformei
nas certezas totais dos meus amores…
= = = = = = = = =

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

E os teus olhos ficaram mais distantes
(Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas", p. 97)

E os teus olhos ficaram mais distantes
Quando na luz da tarde se perdeu
O aceno da partida que doeu
Como nunca me tinha ferido antes.

Fiquei parado, ali, por uns instantes
Naufragando no mar que, então, desceu
Do meu olhar que a noite ao mundo deu
Habitada por gritos suplicantes.

Tu partiste e eu fiquei de mim ausente
O tempo corre e apenas sei que sinto
Que na terra já nada mais me importa,

Errante vou seguindo inconsciente
Perdido nos sopés de um labirinto
Como se em mim já fosse a vida morta.
= = = = = = = = = 

Trova de
MARIA THEREZA CAVALHEIRO
São Paulo/SP , 1929 – 2018

De meu peito arranquei tudo
que de ilusão ainda houvesse,
e ela então, mato miúdo,
com o tempo de novo cresce! 
= = = = = = = = =

Poema de
ANDRÉ GRANJA CARNEIRO
Atibaia/SP, 1922 – 2014 , Curitiba/PR

Eu escapo

Não tenho gravata,
o último bigode raspei em primeiro de abril
de sessenta e quatro.
Darcy menina, inventora da mini-saia
ficou com as crianças, eu fugi
na subversiva perua Volkswagem.
Tenho pudor de ser poeta,
prefiro escritor, cineasta, hipnotizador emérito,
palavras nem explicam
a economia doméstica,
amordaçam lágrimas ditas femininas,
derramadas pelo sexo másculo.
Há sempre um atrás nos versos
a libertar rostos, mostrar pegadas viscosas
em direção ao seu quarto.
Minhas balas nunca explodiram,
a navalhada espanhola é barbeador elétrico.
Tento ser eclético, abarcar o continente.
Fui Navajo no Arizona,
joguei pôquer em cartas marcadas,
dou nó em pespontos,
lavo louça sem nenhum interesse.
De onde surgem estas formigas minúsculas?
Deus displicente, esmago-as sem pena,
almas sem micróbios e baratas são desprezíveis.
Do satélite, só avisto a muralha da China
e a floresta amazônica em chamas.
Meu carro tem pontos de ferrugem,
o aço se transforma em marrons abstratos,
alguns botões da camisa fecham ao contrário,
marca feminina do contraste.
Sigo cego o rumo coletivo deste ônibus.
Passam cenhos cerrados,
proíbem beijar de língua nas bibliotecas,
trocar roupas nos alpendres,
casar filhas com negros,
gargalhar no tribunal togado.
A morte vai batendo de porta em porta,
vendendo bilhetes irrecusáveis
aos guardiães da sociedade.
Eu me escondo no banheiro,
disfarço lendo histórias em quadrinhos
e escapo.
= = = = = = 

Quadra de
PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR, 1944 – 1989

Tem horas que é caco de vidro 
Meses que é feito um grito 
Tem horas que eu nem duvido 
Tem dias que eu acredito.
= = = = = =

Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

A jangada

Ei-la singrando a imensidão dos mares
tão frágil, tão veloz e independente,
deixando a praia, busca outros lugares
sem medo, sem temor, inconsequente...

Lançada ao mar... As ondas pelos ares...
Vai conquistando o mar azul, fremente,
não há tristezas, dores, nem pesares...
Só a jangada deslizando à frente.

As ondas vêm e vão... E chega a tarde,
aflora um sentimento de saudade
e ela retorna cheia de emoções...

Quantos sonhos viajam na jangada?
mas ao raiar da fresca madrugada
vai para o mar repleta de ilusões!
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Trova de
AMARYLLIS SCHLOENBACH
São Paulo/SP

Contra a angústia e o contratempo,
eu vivo de sobreaviso...
Pelos meandros do tempo,
perdeu-se meu pobre riso!
= = = = = =

Poema de
MARIA EFIGÊNIA MALLEMONT
Petrópolis/RJ

Amor em poesia

Sobre a mesa,
livros, canções,
odes e sonetos,
onde me debruço,
aconchegando,
meus sonhos.
Na face da noite,
a voz do poeta,
murmurando sonhos
em meu coração deserto!
Aos seus devaneios,
me entrego invisível,
nua, sem resposta.
Deixa-me amar,
do mundo alheia,
nas frágeis torrentes
da tua poesia.
= = = = = = = = =  

Soneto de
MIGUEL RUSSOWSKY
Santa Maria/RS (1923 – 2009) Joaçaba/SC

Receita de saúde e felicidade

Não antecipe nunca o sofrimento!...
Diga “Bom Dia!” ao sol que lhe saúda.
Seja qual um discípulo de Buda:
- É mister se gozar cada momento.

No “que será...será” que não se muda,
se abrigam primaveras...(mais de um cento!)
os “depois” nem podem ser tormento
se os “agoras” lhe derem boa ajuda.

“Cara feia” - sinal de enfermidade -
com certeza, costuma sobrepor
mais pesos aos obstáculos da idade.

"Alegre-se e sorria, por favor!
Um sorrisinho dá felicidade,
pois contagia e ativa o bom humor"
= = = = = = = = =  

Trova de
JESSÉ F. NASCIMENTO
Angra dos Reis/RJ

Tempo em louca disparada,
- isso me causa terror -
a vida na autoestrada
pisa no acelerador.
= = = = = =

Soneto de
PAULO VINHEIRO
(Paulo Vieira Pinheiro)
Monteiro Lobato/SP

Quimera

Quimera, alguma esperança mantenho
Cantilena, monotônica toada trovoa
Do boi o carro carroçando vai cantando
À vera trocam letras tropeçando pedras
Escrevo sem sentidos, abstraio teus olhos
Perdoe o perverso que rabisco a toa
Enxugo lágrimas que não nasceram
Em vão de página… Quem sabe em vão
= = = = = = = = =  

Trova de 
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

"Casamento... - alguém já disse – 
é chegar à encruzilhada
onde acaba a criancice 
e começa...a criançada..."
= = = = = =

Poema de
JOSÉ FELDMAN
Floresta/PR

Velho Teatro

Velho teatro abandonado,
que tantos sucessos houve,
palco de um tempo passado…

Hoje só restam cadeiras vazias,
quebradas, num canto jogadas,
memórias daqueles dias
de glórias conquistadas.

A parede carcomida
com cartazes, página rasgada
no livro de uma outra vida,
num passado condenada.

Na estação da saudade
cinzas de um fado,
testemunhas da verdade.
= = = = = = = = =

Trova de
FRANCISCO JOSÉ PESSOA
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

Nos quatro dias de momo
ante tanta bebedeira,
eu estarei, não sei como,
quando chegar quarta-feira!
= = = = = =

Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

Índios,
Ao longo
Dos séculos
Sambaquis
De almas...
Na natureza,
A vida
Clama
Em silêncio.
= = = = = = = = =  

Trova de
AUROLINA ARAÚJO DE CASTRO
Manaus/AM (1933 – 2004)

Ao reler o livro antigo,
grande emoção me tomou:
deu-me a impressão de um amigo
que de repente voltou.
= = = = = = 

Poema de
CARLOS FERNANDO BONDOSO
Alcochete/ Portugal

Canto à flor

germinam sementes
e outras secam por incúria

nascem trepadeiras e uma flor 
que guardo no espaço
e no tempo
é o cheiro do mundo 
num momento de silêncio

é a flor da buganvília
que cresce sempre primeiro
histórias escritas
e rasuradas
contadas como contos verdadeiros

pinceladas
aquarelas
tintas trabalhadas
com cheiros de verdade

é a flor
que se solta no tempo
com a fúria do temporal
mas que não se quebra
nas asas do vento

é a tristeza e a dor
num canto simples e triste
que se funde na alma
onde só os sonhos podem morar

é este o meu canto à flor 
aqui nesta folha de papel
= = = = = = = = =  

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Inimigo do trabalho,
é meu primo, o “Paraíba;” 
seu emprego é no baralho: 
buraco, truco e biriba.
= = = = = = 

Poema de 
MÁRIO JSL LOUREIRO
Ourém/ Portugal

Amo-te como quem ama uma trajetória lunar
como quem mata a sede na areia do deserto
Amo-te como à luz do sol que aquece a terra
sempre terno e empenhadamente marítimo 
E como não haveria eu de amar dos teus lábios
a mais eloquente poesia
Dos teus olhos encantados risos 
e os mais coloridos sonhos de amor
Amo-te nua
sem outra decoração que a do teu coração
Sólida sensual como um axioma que é livre
pedra filosofal da alegria ou de uma lágrima
que repousa funda na verdade que nunca foi dita
= = = = = =

Trova do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/ RN

Morre a flor na flor da idade,
padece a planta de dor;
a ausência deixa saudade,
até na morte da flor!
= = = = = = 

Hino de
RONDONÓPOLIS/MT

Quão rebento brotastes radiantes, 
como estrela de raro fulgor
Tão sonhada na força que emana, 
fruto terno de nosso suor
Neste solo de seiva gigante, 
esta linda cidade floriu
Dando brilho as cores que marcam, 
a bandeira do amado Brasil.

Rondonópolis, Rondonópolis
Surgiste oh... brasão imponente
Praza Deus que em ti paire a graça
Que envolve de amor tua gente

Nas belezas das matas e montes, 
nas entranhas de vales e rios
Na nobreza do denso cerrado, 
foi assim que este sonho seguiu
Brasileiros de plagas distantes, 
cá vieram trazer seu labor
E na luta perene e vibrante, 
construímos solene penhor

Rondonópolis, Rondonópolis
Surgiste oh... brasão imponente
Praza Deus que em ti paire a graça
Que envolve de amor tua gente

Rio vermelho e majestoso, 
lenda viva que a todos encanta
Onde a balsa Rosa Bororo, 
navegou transportando esperança
Foi sustento do índio que viu, 
tudo isso gestar e nascer
E o presente nos passa o comando, 
pra fazer essa terra crescer

Rondonópolis, Rondonópolis
Surgiste oh... brasão imponente
Praza Deus que em ti paire a graça
Que envolve de amor tua gente

Todos que precederam essa história, 
salve, salve a nobre missão
Pois sabiam que a nossa vitória, 
era certa na força do chão
E cantamos tuas maravilhas, 
em memória do marechal
Novos passos teu povo palmilha, 
pelas trilhas do seu ideal.

Rondonópolis, Rondonópolis
Surgiste oh... brasão imponente
Praza Deus que em ti paire a graça
Que envolve de amor tua gente
= = = = = = = = =  

Poema de
CÉLIA EVARISTO
Lisboa/ Portugal

A última vez

Nunca soube
quando seria a última vez
que te beijava,
que te abraçava,
que te tocava.

Nunca soube…
Vivi tudo tão intensamente,
pensando apenas no presente
e nunca num futuro fugidio.
Porque, se soubesse
que seria a última vez,
tudo teria sido diferente.

Mas nunca soube,
nunca me despedi,
levaram-te os ventos,
fiquei sem ti.
= = = = = = = = =  

Trova de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/ SP

Eu juro, mas com loucura, 
minha emoção num relance, 
abre a porta, quebra a jura 
e a ti concede outra chance.
= = = = = = = = = 

Márcia Barbieri (O homem do terno de vidro)

“O tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo, o tempo se espreguiçava provocadoramente, era um tempo só de esperas, me guardando na casa velha por dias inteiros (…)
(Raduan Nassar – Lavoura Arcaica)”


Sentia o perfume indiscreto do concreto fresco da nossa casa. De fora, um cheiro forte de peixe me entupia as narinas. Era estranho, porque o mar estava tão longe dos nossos olhos faiscados de areia. Apenas um minúsculo aquário inabitado enfeitava meus pensamentos. A gordura mórbida da solidão. Morávamos numa ilha e jamais tivemos saudades ou necessidade do mar. O mundo ia e vinha, holístico, tão alheio a tudo… Indústrias fabricavam sonhos de novos amores e nós comíamos do pão mofado de cada dia. Vinte mil léguas submarinas. Não entendia as engrenagens engolindo monstros e crianças disformes, mas me dava por satisfeita por não ser devorada, faltavam somente alguns pedaços inúteis, que provavelmente não sentirei falta no futuro. Juntos, planejávamos viagens que nunca faríamos. Contabilizávamos filhos já perdidos nos labirintos ocos e fétidos do ventre. Não compreendia o motivo do nascimento se localizar tão à margem da lama. Bocas de lobo desaguam em mim. Encaramujo. Nas horas de monotonia crio larvas raras e até agora nenhuma se transformou em borboleta, serviram apenas para engolir nossos jardins, em seu tímido, porém grotesco gigantismo. Olho-te. Côncavo. Um relógio de pêndulo ameaça a paz das paredes caiadas. Tempo hemorrágico maculando meus olhos em andrajos de sangue e tédio. Palito os dentes e retiro restos de cadáveres. Venho me alimentando da vileza humana. Caranguejos esnobes de subúrbio.

Arrasto os pés pelos corredores ruidosos. Tudo que é velho range e dói, apenas nossos corpos se perdem num silêncio constrangedor e destrutivo. Rasgos. Você se foi. De repente. Entre os vãos. Deslizes. Não te culpo da ausência dessa paixão furta-cor. Mas peço que traga algo para estancar o sangue da minha garganta. Fisgadas. Ainda convulsiono pelo assalto ao eco das minhas palavras. Narcisos.

Torço os dedos e desfaço antigos nós. Você sempre fora forte. Viril. Um peixe grande. Observo, no entanto, a incoerência dos seus trajes. O homem do terno de vidro. 
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MARCIA BARBIERI é paulista. Tem textos publicados nas revistas literárias Cronópios, Germina, Escritoras Suicidas, O Bule, Meio Tom. Colunista das revistas literárias Caos e Letras e Sinestesia Cultural. Edita o blog: 
http://www.avidanaovaleumconto.blogspot.com.

Fontes:
Literatura sem fronteiras. 11 fev 2013.
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com.br/2011/02/o-homem-do-terno-de-vidromarcia.html.
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Olivaldo Júnior (Um trovador)

Todas as horas são horas extremas! 
Mário Quintana, in Pequeno Poema Didático

Era uma vez um trovador que se perdeu quando tentou atravessar a própria sombra. Não sabia (coitado) que os trovadores não tem que perguntar, nem se indagar, mas, simplesmente, retratar o que eles veem pelo caminho. O caminho de um trovador não é mais o mesmo de antigamente. E mente quem diz outra coisa. Salvem Jorge, mas também os trovadores, que um trovador tem poemas onde antes não havia quase nada.

Um trovador, distraído de tudo e de todos, perdeu-se quando foi atravessar a própria sombra e nunca mais voltou de lá. Lá é onde se perdem os que se põem a querer testarem o sim e o não de Deus. Deus não é de brincadeira, embora tenha muito senso de humor. Basta olhar o que Ele cria, sim, pois que o mundo não foi criado, o mundo é criado. Esse trovador sabia disso, e é por isso que ele ia ter com Deus assim que tudo ficasse mesmo insuportável. Leve, como se flutuasse, um trovador, sem cavalo, nem magrela, mesmo sendo gordo, flutuava pelo céu da consciência e não achava quem o trouxesse de volta: Deus. Se bem que teve aquela vez… Não, melhor que isso fique em segredo. O segredo é a alma do negócio, e o negócio é mesmo a alma. Um trovador, voando atrás de Deus, pensava que, finalmente, houvesse ganhado as asas que queria!

Passado um tempo, depois de muito voar e de mais um tanto pensar sobre o que havia feito ao se atrever a ver além da própria sombra, um trovador resignou-se e pôs-se, enfim, a fazer trovas. Tem uma que ele fez que é bem assim, eu bem me lembro:

Ao perder a sua sombra, 
se perdeu na sua vida, 
pois a morte só o assombra 
quando a vida é dividida.

Pondo-se a escrever, ele esquecia um pouco de toda a dor que acumulara. Porém, como tudo tem fim (em todos os casos e sentidos), um trovador, tão jovem quanto um sonho não vivido, ao ver o reflexo dele nas águas de um lago (eram seis horas da tarde) tal e qual Narciso, pulou no sonho que teve, pois vira a sombra, a sombra dele ali. Lírios brancos, indicando a paz sem a virem, soluçaram baixo. E uma libélula, tarde, pousou.
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Olivaldo Júnior nasceu em Aguaí/SP, mas se radicou em Mogi Guaçu/SP desde menino. Formado em Letras e Radialismo, compõe poemas, contos, músicas e outros, com diversas classificações em Concursos.

Fontes: 
Texto enviado pelo autor. 
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Estante de Livros (“Histórias sem Data”, de Machado de Assis) – 2, final


10) Uma senhora

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 27 de novembro de 1883 e republicado na edição semanal de 4 de dezembro. Perfil de uma mulher que (com a ajuda da natureza) se recusa a envelhecer. Ao primeiro fio de cabelo branco, ela se horroriza. Retarda o casamento da filha para não virar “avó”, e quando enfim vira, mais parece mãe do neto. Se Machado quis escrever histórias sem data, que não se restringiam à sua época, aqui acertou em cheio: a busca da eterna juventude não é incomum na sociedade contemporânea.

TRECHO: Ela era, porém, daquela casta de mulheres que riem do sol e dos almanaques. Cor de leite, fresca, inalterável, deixava às outras o trabalho de envelhecer. Só queria o de existir.

11) Anedota Pecuniária

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 6 de outubro de 1883 e republicado na edição semanal de 9 de outubro. Perfil satírico-caricatural de um homem avarento, possuído pela “voracidade do lucro” ou, em outras palavras, “erotismo pecuniário”.

TRECHO: Entendamo-nos: ele faz arte pela arte, não ama o dinheiro pelo que ele pode dar, mas pelo que é em si mesmo!

12) Fulano

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 4 de janeiro de 1884. Vida de um homem, Fulano Beltrão, pacato e reservado que, depois que um amigo publica uma nota elogiosa sobre ele na imprensa, toma gosto por se exibir e se autopromover na mídia. “A imprensa é uma grande invenção, disse ele à mulher”. Em 'Fulano', Machado revela como a imprensa, uma das tecnologias emergentes, poderia transformar hábitos e reputações. Um sujeito tranquilo como Fulano Beltrão virou um homem público. A autopublicação de seus feitos – mesmo que prosaicos – provocavam comentários na praça. Antecipando quase um século, Machado já sabia que o meio era a mensagem.” Enquanto aguarda a abertura do testamento de Fulano, o narrador rememora a trajetória do personagem.

TRECHO: Venha o leitor comigo assistir à abertura do testamento do meu amigo Fulano Beltrão.

13) A Segunda Vida

Publicado originalmente na Gazeta literária, v. 1, 1883-1884, pp. 146-9. Conto psiquiátrico-filosófico. Monsenhor Caldas recebe a visita de um louco (José Maria) que alega ter morrido décadas antes, mas sua alma foi agraciada com o privilégio de renascer e viver uma segunda vida. Porém, tendo ouvido tantas pessoas mais velhas exclamarem, ao verem um jovem: “Quem me dera aquela idade, sabendo o que sei hoje!”, pede para nascer com a experiência adquirida na primeira vida. O que parece ser uma coisa boa acaba se tornando uma maldição. “Para quem já desejou voltar a viver com a experiência passada, um conto desafiador.”

TRECHO: Como ia dizendo a Vossa Reverendíssima, morri no dia vinte de março de 1860, às cinco horas e quarenta e três minutos da manhã. Tinha então sessenta e oito anos de idade. Minha alma voou pelo espaço, até perder a terra de vista, deixando muito abaixo a lua, as estrelas e o sol; penetrou finalmente num espaço em que não havia mais nada, e era clareado tão-somente por uma luz difusa. Continuei a subir, e comecei a ver um pontinho mais luminoso ao longe, muito longe. O ponto cresceu, fez-se sol.

14) Noite de Almirante

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 10 de fevereiro de 1884. Um marinheiro (Deolindo Venta-Grande) volta de uma longa viagem de instrução e está ansioso por rever sua paixão, a caboclinha Genoveva de vinte anos, e passar com ela uma “noite de almirante” (no linguajar dos marinheiros), com quem trocou votos de fidelidade mútua. Surpreende-se ao descobrir que ela o deixou por um tal José Diogo, mascate de fazendas. E ela admite essa sua “traição” na maior inocência e ingenuidade, como se não tivesse feito nada de errado: “O coração mudou.”

TRECHO: Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva...

15) Manuscrito de um Sacristão

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 17 de fevereiro de 1884. Ironia do destino: Um padre místico e sua prima sonhadora descobrem que são almas gêmeas, mas não têm a coragem de assumir seu amor.

TRECHO: Ela, é claro que tinha achado o marido que esperava, mas saiu-lhe tão impossível como a vida que sonhou.

16) Ex Cathedra

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 8 de abril de 1884. Conto romântico. Um intelectual chamado Fulgêncio, viciado em livros, que vive numa casa solitária na Tijuca, na época um arrabalde distante, desde que perdeu a mulher educa sua enteada Caetaninha, que vive uma vida isolada, sem ir aos teatros nem bailes. Um dia chega do norte um filho natural do falecido irmão do Fulgêncio, para o tio criar. 

Até aqui temos, segundo o autor, todos os elementos de uma história romanesca: 'um velho lunático, uma mocinha solitária e suspirosa, e vemos despontar inopinadamente um sobrinho.” De fato, o próprio tio do moço e padrinho da moça acha por bem casá-los futuramente, e para tal resolve instruí-los para dotar o amor de uma base científica, ministrando, ex cathedra (ou seja, “com a autoridade e o conhecimento de quem possui um título”), lições sobre “noções gerais do universo, uma definição da vida, demonstração da existência do homem e da mulher, organização das sociedades, definição e análise das paixões, definição e análise do amor, suas causas, necessidades e efeitos”. E como nas boas histórias do romantismo (embora “oficialmente” Machado já tenha transposto o limiar do “realismo”), os jovens acabam trocando um "trovão de beijos”, ou dois, três, quatro.

TRECHO: Fusão, transfusão, difusão, confusão e profusão de seres e de coisas.

17) A senhora do Galvão

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 14 de maio de 1884. Perfil feminino. Maria Olímpia, a senhora do Galvão, recebe cartas anônimas insinuando que seu marido tem um caso com a “viúva do brigadeiro”, amiga da família. Durante todo o conto, paira a dúvida se a acusação é verídica ou falsa.

TRECHO: E por que é que a carta não seria uma calúnia? Naturalmente não era outra coisa: alguma invenção de inimigas, ou para afligi-la, ou para fazê-los brigar.

18) As academias de Sião

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 14 de maio de 1884. Conto fantástico. Enquanto o jovem rei de Sião (antigo nome da Tailândia), Kalaphangko, tem a alma feminina, sua concubina, a bela Kinnara, tem uma alma masculina. Um dia ela propõe que troquem de corpos: a alma dele passa para o corpo dela, e a alma dela passa para o corpo dele. Mas a troca tem um prazo determinado. O conto prenuncia as teses da ideologia de gênero.

TRECHO: Kinnara levantou-se agitada. Assim como o rei era o homem feminino, ela era a mulher máscula — um búfalo com penas de cisne.

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Histórias_sem_Data
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Carlos Leite Ribeiro (A maçã)

 
E eu aqui metida nesta ambulância, cheia de dores.

Nunca mais chegamos ao hospital! E tudo começou por causa de uma maçã!…

Era eu pequenita e andava na escola primária, e, no trajeto de regresso à minha pobre casa, passava sempre pela frutaria do pai do Artur.

Naquele dia, num dos expositores que ficavam em cima do passeio, estavam em exposição uma belas e lustrosas maçãs. Os meus pais eram pobres e eu já há muito que não comia fruta.

Parei extasiada a admirar as maçãs. Tive a tentação de roubar uma, mas hesitei. Foi quando atrás de mim apareceu o Artur, que me disse:

“Ana, estas maçãs devem ser muito saborosas!…”.

“Sim ! devem ser uma delícia, Artur …” – respondi ao meu colega de escola.

“Porque não compras uma ?!” – perguntou-me o Artur.

“Olha, porque não tenho dinheiro. Bem sabes que os meus pais são muito pobres” – disse-lhe já quando me afastava.

No outro dia, na hora do recreio, o Artur achegou-se de mim e, timidamente, entregou-me um saco de papel, dizendo:

“Toma, isto é para ti, Ana”.

Curiosamente, rasguei o saco e, lá dentro estava uma bela e lustrosa maçã!

As lágrimas saltaram-me e tive vontade de o abraçar.

Mas o Artur já se tinha retirado …

Durante anos, o Artur sempre me presenteou com saquinhos de papel, tendo lá dentro sempre uma maçã.

E, por causa da maçã, um belo dia casamos; e também por causa da maçã, vou aqui dentro desta ambulância a caminho do hospital, onde conto dar à luz o nosso primeiro filho.

Uma maçã dada pela Eva, dizem que atrapalhou o Adão; e uma maçã dada pelo Artur, está a atrapalhar-me e dar-me muitas dores.

Mas dentro em pouco o fruto do nosso grande amor nascerá, e, tudo voltará à normalidade.

E tudo isto por causa de uma maçã!!!
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CARLOS LEITE RIBEIRO, jornalista e escritor, nasceu em Lisboa, em 1937. Radicou-se em 1967, na Marinha Grande (concelho de Leiria). Trabalhou no Jornal do Comércio, em Lisboa, escrevendo “Nomes e Figuras que deram seu nome às ruas de Lisboa”. Editou "Uma Semana no Rio de Janeiro" e "As Horas do Destino" e muitos ebooks. Cursou Educação Física (1962), História (Politécnico 1964) com Mestrado em 1976, Geografia (Politécnico 1967) com Mestrado em 1984. Idealizador do Portal CEN - "Cá Estamos Nós", fundado em 1998. Membro Honorário e de Honra da ALMECE - Academia de Letras Municipais do Estado do Ceará (Brasil). Faleceu em 2018.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 31 março 2013.
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