sábado, 29 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 362

 


Aparecido Raimundo de Souza (A Lampadazinha Voadora)


Para Luana Aparecida Melo de Souza (Minha “Lulu”)

NUM DOMINGO À TARDE, eu passeava com a minha filha Luana,  de seis anos, pelo sítio imenso de meu avô João, em Sorocaba,  interior de São Paulo, quando, de repente, a minha princesinha se deparou com uma espécie de luz muito pequena, quase imperceptível, piscando continuamente em meio as enormes  árvores frondosas que enfeitavam a quinta:

— Pai, pai,  — observou ela, espantada e atônita. — Veja  aquela luzinha que está fazendo um monte de pisca-pisca e fica voando pra lá e pra cá no meio do matagal!

Olhei apressado para a minha criança e indaguei:

— Onde, filha? Não estou vendo nada. Mostra para o papai.

— Ali, pai, ali... É uma lampadazinha voadora...

Ao desviar as vistas para onde o indicador apontava, e então mais atentamente prescrutar o ponto nevrálgico do tal achado, percebi que se tratava de um simples e solitário vagalume. Tentei explicar dizendo à minha menina, que aquilo estava longe de ser uma luzinha piscando; se tratava de um animalzinho invertebrado conhecido como lanterninha, ou pirífora.

Em palavras simples e sem rebusques,  pontuei que por obra do Criador da natureza, Deus, tinha aquele pequenino ser, a capacidade mágica de produzir, no escuro, uma ínfima e contínua luminosidade, graças a uma substância que carregava no corpo, conhecida como luciferase.  

Todavia, apesar dessa explicação, a minha mocinha insistiu na ideia da lampadazinha voadora. Bateu pé, o que de certa forma achei de bom alvitre concordar. A garotinha tinha, logicamente, uma visão diferente da que eu expusera. Em outras palavras: via inspiração e ardor em uma coisa bucólica, onde criaturas comuns (como eu) simplesmente não enxergavam nada além da ponta do nariz.  

Por outro ângulo, Luana pequena demais, inocente aos extremos, incapaz, eu sabia, para entender o que significava um vagalume, ou pior, o que vinha ser essa tal de luciferase. Quando se tornasse adulta, certamente o dom que lhe era nato, fluiria. Ela seria uma poetisa, quem sabe uma escritora brilhante, a engendrar versos e textos bonitos e maviosos para enfeitar e colorir a vida das pessoas que encontrasse pelos seus caminhos.

Ainda um pouco espantada com a minha explicação (animalzinho invertebrado, lanterninha, pirífora, vagalume, luciferase...) senti que tudo o que falei entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Sem mais delongas, e batendo na tecla da lampadazinha voadora, inquiriu  com um sorriso maroto nos olhos castanhos claros que refletiam toda a ternura meiga que emanava de dentro da sua alma literalmente em festa:

— Papai, e à noite, na hora de dormir?

— O que tem minha linda?

— Ele, o vagalume?!

— Eu sei, gatinha! O que tem o vagalume à noite, na hora de dormir? Fala...

— Ele fica no claro ou prefere ir pra caminha no escuro?!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Cecília Meireles (Poesias para Crianças) 2


BOLHAS

Olha a bolha d’água
no galho!
Olha o orvalho!

Olha a bolha de vinho
na rolha!
Olha a bolha!

Olha a bolha na mão
Que trabalha!

Olha a bolha de sabão
na ponta da palha:
brilha, espelha
e se espalha.
Olha a bolha!

Olha a bolha
que molha
a mão do menino:

A bolha da chuva da calha!
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LEILÃO DE JARDIM!

Quem me compra um jardim
com flores?

borboletas de muitas
cores,

lavadeiras e
passarinhos,

ovos verde e azuis
nos ninhos?

Quem me compra este
caracol?

Quem compra um raio
de sol?

Um lagarto entre o muro
e a hera,

Uma estátua da
Primavera?

Quem me compra este
formigueiro?

E este sapo, que é
jardineiro?

E a cigarra e a sua
canção?

E o grilinho dentro
do chão?

(Este é o meu leilão!)
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O CAVALINHO BRANCO

À tarde, o cavalinho branco
está muito cansado:
mas há um pedacinho do campo
onde é sempre feriado.

O cavalo sacode a crina
loura e comprida
e nas verdes ervas atira
sua branca vida.

Seu relincho estremece as raízes
e ele ensina aos ventos
a alegria de sentir livres
seus movimentos.

Trabalhou todo o dia, tanto!
desde a madrugada!
Descansa entre as flores, cavalinho branco,
de crina dourada!
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PESCARIA

Cesto de peixes no chão.
Cheio de peixes, o mar.
Cheiro de peixe pelo ar.
E peixes no chão.

Chora a espuma pela areia,
na maré cheia.

As mãos do mar vêm e vão,
as mãos do mar pela areia
onde os peixes estão.

As mãos do mar vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
aos peixes do chão.

Por isso chora, na areia,
a espuma da maré cheia.
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TANTA TINTA

Ah! Menina tonta,
toda suja de tinta
mal o sol desponta!

(Sentou-se na ponte,
muito desatenta...
E agora se espanta:
Quem é que a ponte pinta
Com tanta tinta?...)

A ponte aponta
e se desaponta.
A tontinha tenta
limpa a tinta,
ponto por ponto
e pinta por pinta...

Ah! A menina tonta!
Não viu a tinta da ponte!

Fonte:
Cecília Meireles. Ou isto ou aquilo. Publicado em 1964.

Vilma Medina (O Coelhinho Pirracento)

Vivia no bosque verde um coelhinho doce, meigo e macio, mas pirracento. Sempre que via algum animal do bosque tirava sarro dele. Um dia, quando estava sentado à sombra de uma árvore, aproximou-se dele um esquilo, e disse: “Olá senhor coelho!”  O coelho não respondeu.

Olhou, mostrou a língua e saiu correndo. Que mal educado! Pensou o esquilo. A caminho da sua toca, o coelho encontrou um cervo, que também quis saudá-lo. “Bom dia, senhor coelho!” De novo o coelho mostrou a língua ao cervo e saiu correndo.

Assim aconteceram várias vezes com todos os animais do bosque que o coelho encontrava pelo caminho.

Um dia todos os animais decidiram dar uma boa lição no coelho mal educado, e fizeram um acordo para que, quando algum deles visse o pirracento coelho, não o cumprimentasse. Iriam fazer como se não o tivessem visto.

E assim aconteceu. Nos dias seguintes todo mundo ignorou o coelho. Ninguém falava com ele, nem o saudava. Um dia, todos os animais do bosque organizaram uma festa e o coelho ouviu onde iriam celebrar e pensou em ir, mesmo não sendo convidado.

Naquela tarde, enquanto todos os animais se divertiam, apareceu o coelho no meio da festa. Todos fizeram de conta que não o tinham visto. O coelho, constrangido pela falta de atenção dos seus companheiros, decidiu ir embora com as orelhas baixas.

Os animais, com pena do coelho, decidiram ir até a sua toca e convidá-lo para a festa. Não sem antes fazê-lo prometer que nunca mais faria pirraça a nenhum dos animais do bosque.

O coelho, muito contente, prometeu nunca mais pirraçar dos seus amiguinhos do bosque, e todos se divertiram muito na festa e viveram felizes para sempre.

FIM

Moral da estória: Procure nunca pirraçar seus pais, seus irmãos, nem amiguinhos.

Fonte:
Guia Infantil

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 361

 


Cláudio de Cápua (Quadrinhos) 2

O Indianópolis, 17 de fevereiro de 1979

Texto: Cláudio de Cápua
Desenho: Luis Antonio Adensohn

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Hiran, do latim ao clarinete


Na Rua do Rosário, em Ponte Nova de Minas, acabara de nascer uma criança. Menino ou menina? Professor. De quê? De tudo. Um nome chique lhe deram: José Hiran Salée.

No Departamento de Letras da UEM, onde fomos colegas durante uns bons anos, minha mesa ficava ao lado da dele na sala dos professores. Ali, de papo em papo, em meio a intermináveis discussões sobre sinédoques e anaptixes, acabei conhecendo tintim por tintim sua movimentada biografia. Um dos personagens mais queridos da história de Maringá.

O menino foi crescendo, concluiu o grupo escolar na terra natal, fez o ginásio em Lorena, até que de repente um estalo lhe disse que sua vocação era para o sacerdócio. No seminário salesiano (não me lembro se em São João Del Rei ou Cachoeira do Campo), fez o clássico, depois Filosofia e Pedagogia. Um currículo da pesada: português, francês, inglês, espanhol, grego, latim, além de várias outras disciplinas – e os padres professores não davam moleza. Mas havia tempo também para curtir música e praticar esportes. E foi pelo seu amor à música que o garoto de Ponte Nova tornou-se logo uma grande atração, tocando flauta, saxofone e clarinete nos eventos festivos do seminário. Chegou a tocar harmônica em missas solenes.

Já na Teologia, próximo da ordenação, deu-se, porém, um fato que o obrigou a mudar os planos. Seu pai morreu e ele precisou deixar o seminário para ajudar no sustento da família. Nesse período deu aulas em vários colégios no Rio, Niterói e em outros lugares. Em Goiânia, fez concurso num colégio para ser professor de latim. Foi aprovado com louvor, porém ao se apresentar ficou sabendo que de início teria que dar aulas de desenho e trabalhos manuais. O jeito foi aceitar, mas acabou fazendo sucesso mesmo foi como instrutor da fanfarra.

Numa das férias de verão passou um mês no Rio de Janeiro. Por força do seu ideal, deu aulas de catecismo numa favela. Para ganhar uma graninha, fez bicos desenhando cenários em teatros de revista e trabalhando como ajudante na pintura de carros alegóricos para o carnaval. Foi nessa ocasião que ouviu falar de Maringá. Decidiu arriscar. Valeu o risco. Veio, ficou.

Era o ano de 1955. Com pouco dinheiro, antes de vir comprou uma rede para o caso de não poder pagar hotel. Chegando, preferiu ficar no hotel mesmo e vendeu a rede para pagar as diárias. Por indicação de um dos hóspedes, passou a fazer refeições na Cantina do Zitão, onde o conheci.

Daí para a frente todo maringaense conhece a bela história do inesquecível mestre José Hiran Sallée. Pilotando seu famoso DKV-Vemag, lecionou português e latim em quase todos os colégios da cidade, foi diretor do Gastão Vidigal, secretário municipal da Educação, organizador e regente de fanfarras, músico de banda e orquestra, desenhista e pintor nas horas vagas. Aposentou-se aos 70 anos, como professor da UEM. Mora no céu desde 2009. Aqui deixou saudade à beça.

Fonte:
texto enviado pelo autor

Samuel da Costa (Poemas Escolhidos) IV


FLORESCER
Para Flaubert Brutus

Estou aqui!
Não dobrei a esquina!
Não desapareci por completo,
Não sangrei até morrer...
Em praça pública,
Como alguns bem queriam.

Estou aqui...
Não evanesci mata adentro!
Não fugi para o Quilombo...
Não ouvi os cães ladrarem.

Ainda estou aqui!
Florescendo a cada dia...
Que passa!
Cada vez mais belo...
Cada vez mais forte...
Não desapareci completamente.
Não sumi das memórias das pessoas.
Floresci em pela luz do dia...
Não fui tragado!
Pelas areias do destino.

Ainda estou aqui...
Bem vivo!
Ainda não desapareci.
No meio da multidão resoluta...

Ainda estou aqui!
E não fui embora...
O tumbeiro não me levou.

Ainda estou aqui!
Negro como a noite...
Mas puro como o dia.
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NÃO! EU NÃO PLANTEI FLORES

Eu não plantei flores!
E nunca vou plantá-las!
Para não vê-las morrerem...
Abruptamente!
Pisoteadas cruelmente,
Pelas botas asseadas...
E lustradas.
Dos soldados desumanizados!
Fortemente armados,
Que em descompassados...
E uniformizados!
Passam em marcha.

Não! Eu não vou semear!
Flores algumas...
Para não vê-las...
Serem arrancadas...
Tiranicamente!
Da floresta negra em chamas.
Pelas mãos inumanas,
Para suprir um mercado em fúria.
Para serem vendidas...
A posteriori!
Em um ávido mercadejo qualquer!

Não! Eu não vou plantar flores!
Para não me desumanizar...
Em demasiado...
Para não ter que levá-las!
No campo-santo...
Em homenagem sepulcral.
Para aqueles que partiram,
Para o além vida...
E nunca mais voltarão!
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AO NASCER DE UM NOVÍSSIMO DIA
(Da série o amor em vermelho)

Ao nascer de um novo dia
Vamos nós dois
Sacrossanta negra musa
Até o vergel das almas perdidas
Sagrar o nosso etéreo amor

No alvor
Ao nascer de um novíssimo dia
Minha musa de ébano
Consagramos
O nosso hialino amor
À beira do místico lago encantado

No amanhecer
Na alvorada nova
Ao nascer de um novo dia
Sagrarmos o nosso divinal amor
Consorte minha
No cósmico altar
Dos deuses e deusas imortais
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DA ÁRVORE DOS ACONTECIMENTOS
(Da série o amor em vermelho)

Não se arvores negra ninfa
Dos nevoentos bosques
Eu fiz as minhas próprias escolhas
Alheias as tuas ignotas vontades

São mãos invisíveis do destino
A te guiar na celestial escuridão
Para longe de mim

Não se arvores aedo de ébano
Tu fizeste as tuas próprias escolhas
Alheias as minhas próprias vontades
Alheias as tuas sibilinas ambições
De ficar ao lado meu

Não se arvores poeta de ébano
Pois são as mãos impossíveis
A me guiar pelas álgidas
Imensidões cósmicas sem fim
Para longe do teu ebúrneo palácio
Das memórias perdidas

Não nós arvoremos negra ninfa
Somos nós dois
Flanando livremente para o além
Das imensidões astrais do hiperespaço

Somos nós dois
Enclausurados no hipertexto
Para todo o sempre
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O EQUILÍBRIO EQUIDISTANTE ENTRE NÓS
(Da série o amor em vermelho)

Pergunte-me tudo
Eu não vou me esquivar de nada
Só não me pergunte
De ontem à noite

Pergunte-me
Tudo o que quiseres
Para mim
Só não me pergunte o que fiz
Ontem à noite
Quando eu tentei em vão
Esquecer-te por completamente

Sobre o ontem à noite
Refugiei-me em mim
Eu não queria te ver novamente
Nem ouvir a tua eufêmica voz
Eu não queria rever a cena dantesca
De nós dois dançando
Na minha mente outra vez

Ontem à noite eu fugi
De nós dois
Não queria ser uma sibilina imagem
Presa em uma moldura digital
Nos teus estribilhos

Ontem à noite
Ao som de músicas impossíveis
Ao sabor do destino
Eu fugi de nós dois
*************************************

A MEDIDA DE TODAS AS COISAS
(Da série o amor em vermelho)

Nas medidas de todas as coisas
De todos os inaudíveis sons
Ao redor
De todas as abstratas cores
E de todas negras múltiplas
Escuridões ao meu redor

Nas medidas de todas as coisas
De todos os sintéticos sons
Ao redor
De todas as cores e as não-cores
Ao meu redor
Um simples bom dia teu
Para mim
Já não me basta
Mussulinosa negra ninfa

Nas medidas de todas as coisas
Do meu multiverso apoplético
Minha dulcíssima negra musa
Eu espero que tenhas venerado
Profundamente
De todos os vagos versos agrafos
Que a ti eu dediquei
A beira da fossa abissal

Nas medidas de todas as coisas
Eu espero que tu vás até as janelas
Do ebúrneo palácio das memórias perdidas
E contemple todos os ruidosos ruídos
E todos os silêncios profundos
Ao teu redor
De todas as cores e as escuridões
Ao teu redor

Nas medidas de todas as coisas
Espero que mergulhes
Os teus delicados pés
Nas ebúrneas áreas da praia desolada
Que esvoaces o trigal dos teus cabelos
Ao sabor dos ventos outonais atlântico

Nas medidas de todas as coisas
Espero que não interrompas
As tuas nevoentas quimeras
Nunca mais divina Luna

Fonte:
Poemas enviados pelo poeta.

Nelson Rodrigues (Quem Morre Descansa)


Ela batia à máquina quando Norberto apareceu. Fez a pergunta:

— Pode-se bater um papinho contigo?

— Quando?

— Depois do serviço?

— OK. E onde?

Ele vacilou: “Olha, eu te espero naquele bar da esquina”. Julinha, com o coração disparado, balbuciou: “Eu estarei lá. Batata”. E não trabalhou mais direito. Findo o expediente, correu no reservado das moças, e espiou-se no espelho; retocou a pintura dos lábios e passou pó no nariz; muito lustroso. Norberto a esperava, num canto do bar, com uma garrafa na frente. Deu-lhe a cadeira e requisitou o garçom. Perguntou à pequena:

— Você toma o quê?

Julinha, que não estava passando bem do estômago, pediu: — “Água tônica”. Enquanto o garçom ia e vinha, Norberto foi direto ao assunto: — “Você sabe, não sabe, que eu sou casado?”. Suspirou:

— Sei.

E ele:

— Muito bem. Sabe, também, que eu gosto muito de você?

Disse que não tinha certeza, mas desconfiava. Ele insistiu: — “Pois gosto e muito, mais do que você pensa”. E, súbito, fez-lhe a pergunta que a surpreendeu e deixou sem fala: — “Quer casar comigo?”.

A ESPOSA

Durante alguns momentos, ela não soube o que dizer, não soube o que pensar. Balbuciou:

— Quer dizer, queria. Mas como? E sua mulher?

Mas Norberto estava preparado para a pergunta: — “O negócio é o seguinte, meu anjo: minha mulher está muito mal”. E era verdade. A mulher de Norberto era muito franzina, um peito cavado, asmática, tinha uma vida de sacrifício. No inverno, pagava todos os pecados, qualquer resfriado bobo a deixava sem ar e tinha sufocações tremendas. Vivia em casa, estiolando-se, cada dia pior. Há coisa de oito meses, fizera uma radiografia do estômago. Constatara-se a úlcera; e, depois, uma do pulmão que revelara a tuberculose. Chocada com essas variedades de doenças, de provações, Julinha deixou escapar a exclamação: — “Que horror!”. Norberto prosseguiu:

— Queres ver uma coisa? Hoje eu a deixei pondo sangue pela boca. E não se sabe se a hemorragia é da úlcera do estômago ou do pulmão.

— Coitada!

— O médico já avisou que ela não dura muito. Uns três ou quatro meses. E talvez morra antes, de um colapso. Uma calamidade. Mas o que eu queria te dizer era o seguinte: tu gostas de mim e eu de ti; e te dou minha palavra que, logo que possa, me casarei contigo. Tu esperas?

Julinha ergueu o rosto e disse, com muita doçura:

— Espero.

O OUTRO

A partir de então, sua vida foi uma espera de todos os dias, horas e minutos. Havia no escritório um outro companheiro interessado em conquistá-la. Era o Queiroz. Tomara-se de amores pela menina e, muito obstinado, não a deixava em paz. Não fosse a súbita declaração de Norberto, que ela preferia, e talvez tivesse admitido um namoro, a título experimental, com o Queiroz. Mas Norberto, vendo o assédio do outro, se antecipara. E, no dia seguinte, quando o Queiroz reiterou um antigo convite para um “cineminha”, a garota pôs as cartas na mesa:

— Tem santíssima paciência, mas não pode ser. Eu gosto de outro.

— Não acredito!

E ela: “Te juro”. Como o rapaz teimasse na incredulidade, fez o juramento extremo: “Quero ver minha mãe morta, se não é verdade”.

Atônito, ele balbuciou a pergunta: “Mas quem é o cara?”.

— Segredo.

— Ué!

Julinha acabou se irritando: “Além disso, eu não tenho que dar satisfação de minha vida”. O rapaz saiu dali amargo, depois de rosnar: “Esse negócio está me cheirando a homem casado”. E o fato é que, desde então, ele passou a vigiar ferozmente a pequena. Soube que Norberto e Julinha tinham sido vistos, depois do serviço, no bar da esquina.

Esbravejou:

— Cachorro!

O MARTÍRIO

Sempre que chegava ao emprego, Julinha olhava para a mesa de Norberto. Quando ele não vinha, perguntava a si mesma: “Será que ele não veio porque a mulher dele morreu?”. Corria ao contínuo:

— Quedê seu Norberto?

— Foi tomar café.

Ela sabia então que a outra estava viva. Por causa do controle do Queiroz, os dois procuravam disfarçar tanto quanto possível. Com sua lógica de mulher, Julinha ponderava: “Afinal de contas, você é um homem casado e eu sou uma moça de família”. Por outro lado, o sigilo que era obrigada a manter constituía um elemento de mistério, interesse, excitação. E assim, dias após dias, Julinha acompanhava à distância o martírio da outra. Às vezes, Norberto ia à rua telefonar para ela e dramatizava: “Minha mulher está que é só pele e osso. Não sei como ainda vive”. A princípio, Julinha tinha escrúpulos de esperar e mesmo desejar a morte da infeliz. Mas, com o correr dos dias, o hábito de falar no assunto a sensibilizou. E, um dia, surpreendeu-se a si mesma: “No duro, no duro, me responde. Ela vai até quando, mais ou menos?”. Norberto fez os cálculos:

— Uns quinze dias.

Em casa, no quarto, Julinha pôs-se a imaginar: ”Quinze dias. Mais uns seis meses etc. Daqui a um ano posso estar casada”. Mas os quinze dias se passaram. E nada. No telefone, ela perguntou, com uma irritação que procurava dissimular: “Como é, fulano? Você disse quinze dias e quando acaba...”. Do outro lado do fio ele desabafava:

— Pois é. Que espeto! Sabe que eu estou besta com a resistência? O médico disse hoje que, assim, nunca viu.

Julinha suspirou: “Paciência. Paciência”. Mas já começava a admitir mesmo que o estado da outra não fosse tão grave assim. E, por fim, interpelou Norberto: “Quem sabe se você não está me tapeando?”. Ele jurou que não, deu a palavra de honra. Julinha, deprimida, fez a revelação:

— Olha que eu já estou fazendo despesas com o enxoval. Comprei muita coisa. Veja lá!

Ele, seguro de si e do destino, foi categórico: “Ótimo, ótimo. Pode ir comprando tudo. É bom, sim. E o vestido de noiva eu faço questão de te dar. Quero um bacana”.

AGONIA


Mais quinze dias e a esposa de Norberto, apesar da úlcera, da tuberculose e da asma, resistia. Ele, desesperado e sentindo que a pequena duvidava, propôs-lhe: “Vamos fazer o seguinte: vou arranjar um pretexto do serviço e te levo lá em casa. Queres?”. Julinha, que já se julgava vítima de uma mistificação, disse: “Pois quero”. No dia seguinte, entrava na casa da rival. E seu estômago se contraiu quando viu a outra no fundo da cama. Era, de fato, um esqueleto. Um esqueleto com um leve, muito leve, revestimento de pele. Parecia incrível que aquela criatura ainda estivesse respirando, ainda vivesse. Na primeira oportunidade, Norberto soprou-lhe:

— Não te disse? Batata, meu anjo. É um fenômeno de resistência. Qualquer dia, morre.

Coincidiu que o médico aparecesse e, falando com Norberto e Julinha, foi terminante: “É um milagre, sua mulher já devia estar morta”. Julinha, impressionada, sugeriu: “Deve ser um sacrifício a vida dessa criatura. Um martírio”. O médico admitiu com a voz cava:

— Natural.

E continuou a espera. Então, pouco a pouco, Julinha se desesperou. Começava a admitir na sua meditação que a outra não morresse nunca, que se tornasse definitivamente uma múmia. O Queiroz, teimoso, não cessava o assédio. E, sem querer, ela já o tratava de outra maneira, quase com afeto. Ele era positivo: “Eu me caso contigo em dois meses”. Julinha adotou uma atitude que não deixava de ser um estímulo. Disse: “Deixa o barco correr”. Dias depois, foi mais longe:

— Te dou a resposta dentro de um mês.

A MORTE

Esperava que, dentro desse prazo, a outra morresse. Pois bem. Passou-se o mês e nada. Perdeu a paciência: “Não interessa. Estou bancando a palhaça”. O Queiroz, que contava os dias na folhinha, esperou-a sôfrego: “Como é? Já decidiste?”. Julinha teve um fundo suspiro:

— Já.

— E então?

— Sim.

Combinaram ali mesmo, em voz baixa, tudo. Ele, agitado, queria o máximo de rapidez, e batia sobretudo numa tecla: “Dois meses, no máximo”. Esfregou a mão, feliz, quando soube que Julinha já preparara muita coisa do enxoval. Acabou soprando: “Vem cá um instantinho”.

Levou-a ao corredor e deu-lhe um beijo na boca. Voltando ao escritório, saiu de mesa em mesa, anunciando: “Estamos noivos”. Foi uma farra entre os colegas. De repente, bate o telefone: Julinha atende e... Teve um choque, quando reconheceu a voz de Norberto. Falando baixo, com a boca encostada no telefone, Norberto anunciava:

— Minha mulher entrou em agonia. Agora é batata. Questão de minutos. Um beijo pra ti. — E desligou.

Por alguns instantes ela não soube o que fazer. Numa alegria lancinante, tinha os olhos marejados, já esquecida do compromisso com o Queiroz. E, quando este veio lhe falar, ela não teve o mínimo tato. Disse-lhe à queima-roupa: — “Olha, nada feito. Você me desculpa” etc. etc.

Ele, branco, ainda insistiu: — “Você não pode fazer isso comigo. Eu não sou nenhum moleque”. Mas quando se convenceu que a tinha perdido, não teve dúvidas. Era nortista, afundou-lhe o punhal num dos seios. Julinha expirou, ali mesmo, antes que a assistência chegasse.

Pouco depois, batia o telefone. Era de novo Norberto, que vinha avisar que a esposa morrera, afinal. Mas ninguém, ali, teve cabeça para atender. Norberto acabou desistindo. Voltou para junto da esposa morta, com a natural compostura de um viúvo. E fez, para os presentes, o seguinte comentário:

— Quem morre descansa.

Fonte:
Nelson Rodrigues. A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é...; seleção de Ruy Castro. SP: Cia das Letras, 1993.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 360

 


Luís da Câmara Cascudo (Barba Ruiva)



Aqui está a lagoa de Paranaguá, limpa como um espelho e bonita como noiva enfeitada.
 

Espraia-se em quinze quilômetros por cinco de largura, mas não era, tempo antigo, assim grande, poderosa como um braço de mar. Cresceu por encanto, cobrindo mato e caminho, por causa do pecado dos homens.

Nas Salinas, ponta leste do povoado de Paranaguá, vivia uma viúva com três filhas. O rio Fundo caía numa lagoa pequena no meio da várzea.

Um dia, não se sabe como, a mais moça das filhas da viúva adoeceu e ninguém atinava com a moléstia. Ficou triste e pensativa. Estava esperando menino e o namorado morrera sem ter ocasião de levar a moça ao altar.

Chegando o tempo, descansou a moça nos matos e, querendo esconder a vergonha, deitou o filhinho num tacho de cobre e sacudiu-o dentro da lagoa.

O tacho desceu e subiu logo, trazido por uma Mãe-d'Água, tremendo de raiva na sua beleza feiticeira. Amaldiçoou a moça que chorava, e mergulhou.

As águas foram crescendo, subindo e correndo, numa enchente sem fim, dia e noite, alagando, encharcando, atolando, aumentando sem cessar, cumprindo uma ordem misteriosa. Tomou toda a várzea, passando por cima das carnaubeiras e buritis, dando onda como maré de enchente na lua.

Ficou a lagoa encantada, cheia de luzes e de vozes. Ninguém podia morar na beira porque, a noite inteira, subia do fundo d'água um choro de criança, como se chamasse a mãe para amamentar.

Ano vai e ano vem, o choro parou e, vez por outra, aparecia um homem moço, airoso, muito claro, menino de manhã, com barbas ruivas ao meio-dia e barbado de branco ao anoitecer.

Muita gente o viu e tem visto. Foge dos homens e procura as mulheres que vão bater roupa. Agarra-as só para abraçar e beijar. Depois, corre e pula na lagoa, desaparecendo.

Nenhuma mulher bate roupa e toma banho sozinha, com medo do Barba Ruiva. Homem de respeito, doutor formado, tem encontrado o Filho da-Mãe-d'Água, e perde o uso de razão, horas e horas.

Mas o Barba Ruiva não ofende a ninguém.

Corre sua sina nas águas da lagoa de Paranaguá, perseguindo mulheres e fugindo dos homens. Um dia desencantará, se uma mulher atirar na cabeça dele água benta e um rosário indulgenciado. Barba Ruiva é pagão, e deixa de ser encantado sendo cristão.

Mas não nasceu ainda essa mulher valente para desencantar o Barba Ruiva. Por isso ele cumpre sua sina nas águas claras da lagoa de Paranaguá.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto LpT (Livro para Todos).

SPINA – Nova Forma Poética (Antologia Poética) 2


Ana Cláudia Gonçalves

DO BRILHO QUE TRAGO NOS OLHOS

Menina tecendo sonhos
Em cada giro
De um cata-vento...

Ainda tenho brilho nos olhos.
Ainda acredito em minha magia.
Sigo projetando fantasias no firmamento.
Tenho poeira de estrelas, guardadas
Impregnadas em cada bom sentimento.

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Ana Meireles

SENSAÇÕES!

Transbordo, a vida
Me faz transbordar.
Sou tristezas, alegrias!

A conta dos dias pesa
Subtraído desejos, subtraído os sonhos
Tudo passa envolto em melancolias
Sem cores , dores pulsam, acinzentam
Entornam sensações, disparam emoções, agonias.
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Antonio Queiroz

ABNEGADO CALOR


Ensope meu mundo
com seu abnegado
calor, fazendo-me inflamar.

Alague minha alma com ondas
quentes, espumosas suas, regando com
salgadas chuvas meu desmedido mar.
Detenha sol abrasador, repondo-me lua
cintilante, noites a lhe amar.
****************************************

Carla Bueno Oliveira

UM NOVO AMANHECER

Contemplo novo dia
Observando sol radiante
com muito esmero!

Converto minha tristeza em alegria,
sentindo nova esperança no amanhã!
De repente, chega sorriso sincero,
um ânimo dizendo para lutar
repetindo: terei futuro que espero.
****************************************

Edith Vargas

ABUSO INFANTIL


Criança abusada, triste
A pensar. Segredos
Doloridos, para guardar.

Sua infância despirá a fantasia,
Soturno, nebuloso, será seu viver.
Momentos servís, sempre a lembrar,
Sobras de infância então  viverá.
Abuso infantil, ciranda a  castigar.
****************************************

Ronnaldo de Andrade

SÓ A MORTE SILENCIA MEU GRITO

Renego o poder
se exclui aquilo
que tenho direito;

se anula minhas condignas conquistas
alcançadas com muitas lutas, sangue;
fere-me, ignora o secular preconceito.
Eu esconjuro firmemente o retrocesso,
toda, qualquer, violência – Não aceito!
****************************************

Symone Elyas

SOBREVIVI


Armada... Sem pistolas
Nem munições. Encaro
A emboscada revestida.

Enjeito seu amor lancinante. Recuso
Migalhas do que intitula sentimento.
Alto lá... Insignificância não intimida!
Blindei mente, corpo, coração contra
Seu contempto. Pronta, bem resolvida.
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Valéria Gurgel

ESPERANÇA


Aurora Boreal cintila,
Verde no firmamento,
Cor da esperança.

Doce expectativa, o céu espelha.
Sentimento último que se morre,
Porque quem espera tudo alcança.
Quem bem semeia, planta, colhe.
Acredite nos frutos da bonança.

Fonte:
Facebook – Spina, Nova forma poética

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Onze


FETO DE ÚTERO RESSENTIDO

O AVÔ DE JULINHO, SEU LISBÓRIO, é um homem na casa dos sessenta anos. Possui os cabelos grisalhos e o rosto bastante enrugado. Viaja de ônibus leito, do Rio de Janeiro para São Paulo, acompanhado de seu inseparável neto, um guri de  seis anos, esperto e tremendamente traquinas.

Em face do pequeno ser muito levado e extremamente desobediente, ninguém aguenta ficar com ele. Em razão disso, para onde seu Lisbório precise se locomover, leva a tira colo, o alegre ganapo (garoto).

Órfão da mãe, que morreu com seu nascimento, desde então o cacafelho (pirralho) passou a ser criado e cuidado por esse avô. O pai da criança, com o óbito repentino da mulher (filha de seu Lisbório), se mandou, tomando lugar incerto e não sabido. Nunca mais deu as caras, sequer para saber se o pirralho precisava de alguma coisa.

Dona Geringonçinha, a esposa de seu Lisbório, mais nova que ele três anos, ajuda no que pode. A mulher ama o menino como se filho de seu sangue fosse. Todavia, como o moleque se mostra levado da breca e apronta todas, ela não lhe dá muita trela.

Seu Lisbório, maquinista aposentado da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, em face de possuir algumas propriedades de aluguel em Santíssimo, bairro situado na Zona Oeste do Rio de Janeiro, todo mês carece estar presente na cidade maravilhosa e, claro, com ele vem o infante sapeca de contrapeso.

Na verdade, apesar do avanço e da disparidade dos anos, igualmente o espevitado ama o avô, gosta dele de coração e, dentro das suas limitações de criança, ajuda o velho quando o mesmo necessita de ajuda.

Ocupando as poltronas um e dois, tardão da noite, enquanto o Tribus segue seu destino, o párvulo (criança) passa o tempo sem pregar os olhos, se entretendo com seus joguinhos preferidos no celular do avô. O longevo dorme a sono solto, roncando e babando.  

No meio da estrada, seu Lisbório acorda com sede. Espia pela janela e percebe, estar o ônibus relativamente um pouco distanciado da parada Graal Alemão, em Queluz. Para variar, aquela noite, em face de um acidente envolvendo duas carretas, a Via Dutra se faz morosa e lenta, com ambas as vias bastante congestionadas.

—  Julinho, acha aqui na bolsa a caneca do seu avô e vai pegar água. Estou com uma sede danada.

Obediente, o petiz sobe na poltrona, alcança o bagageiro e dele retira a caneca acondicionada numa sacola de plástico e corre até os fundos, buscar o líquido precioso para o avô.

Dois ou três minutos depois, retorna com o recipiente cheio, até a boca:

— Toma, vô.

Seu Lisbório passa a mão na caneca e toma tudo de uma só golada:

— Meu lindo, volta lá e enche de novo...

O pequerrucho não espera segunda ordem. Sai tropeçando corredor adentro, se segurando entre as poltronas, sumindo em direção ao banheiro. Não imprime delongas em retornar. Da mesma forma que a primeira, o pequerrucho vira tudo de uma só vez:

— Chega, vô?

— Ainda não, meu gatinho lindo. Sem fazer muito barulho, me arranja mais um pouquinho. Cuidado para não perturbar os demais passageiros, ou cair e se machucar, ou pior, dar um banho em alguém:

— Tá bom, vô.

Julinho reaparece, e novamente entrega a caneca ao senhorzinho que bebe com gosto e sofregamente:

— Se eu falar pra você que ainda sou capaz de beber umas dez... Você faria a gentileza de ir lá, de novo, e atender seu velho avô chato?

O miúdo ralha com o abrandecido fazendo um gesto de contrariedade a estas palavras:

— O senhor não é chato, vovô. Eu vou buscar quantas canecas o senhor quiser...

Julinho volta a desaparecer por mais alguns minutos, todavia, desta vez, retorna ao ponto de partida com a caneca vazia. O avô indaga o que aconteceu:

— O que houve, meu piá?  Não me diga que a água acabou?

O rapazinho vacila antes de responder.

— Fale, Julinho, a fonte secou?

Julinho, então, faz a revelação surpreendente e imprecisa, o que deixa o avô literalmente furioso e descontroladamente fora de si:

— Acabou não, vô!

— Então, por que não me trouxe a água?

— Quando eu abri a porta do banheiro, topei com uma moça sentada no poço!

Fonte:
Texto enviado pelo autor, do livro
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

Manuel Bandeira (Antologia Poética) 4

 


A ESTRELA

Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Porque da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Porque tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.
****************************************

A MORTE ABSOLUTA

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento.
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.
****************************************

BELO BELO (1)

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo - que foi? passou - de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.
****************************************

BELO BELO (2)

Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.
****************************************

CHAMA E FUMO

Amor - chama, e, depois, fumaça...
Medita no que vais fazer:
O fumo vem, a chama passa...

Gozo cruel, ventura escassa,
Dono do meu e do teu ser,
Amor - chama, e, depois, fumaça...

Tanto ele queima! e, por desgraça,
Queimado o que melhor houver,
O fumo vem, a chama passa...

Paixão puríssima ou devassa,
Triste ou feliz, pena ou prazer,
Amor - chama, e, depois, fumaça...

A cada par que a aurora enlaça,
Como é pungente o entardecer!
O fumo vem, a chama passa...

Antes, todo ele é gosto e graça.
Amor, fogueira linda a arder
Amor - chama, e, depois, fumaça...

Porquanto, mal se satisfaça,
(Como te poderei dizer?...)
O fumo vem, a chama passa...

A chama queima... O fumo embaça.
Tão triste que é! Mas... tem de ser...
Amor?... - chama, e, depois, fumaça:
O fumo vem, a chama passa...

Teresópolis, 1911.

Fonte:
Manuel Bandeira. Poesia Completa e Prosa". 1967.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 359

 


Carlos Drummond de Andrade (Diálogo de Todo Dia)


— Alô, quem fala?

— Ninguém. Quem fala é você que está perguntando quem fala.

— Mas eu preciso saber com quem estou falando.

— E eu preciso saber antes a quem estou respondendo.

— Assim não dá. Me faz o obséquio de dizer quem fala?

— Todo mundo fala, meu amigo, desde que não seja mudo.

— Isso eu sei, não precisava me dizer como novidade. Eu queria saber é quem está no aparelho.

— Ah, sim. No aparelho não está ninguém.

— Como não está, se você está me respondendo?

— Eu estou fora do aparelho. Dentro do aparelho não cabe ninguém.

— Engraçadinho. Então, quem está fora do aparelho?

— Agora melhorou. Estou eu, para servi-lo.

— Não parece. Se fosse para me servir, já teria dito quem está falando.

— Bem, nós dois estamos falando. Eu de cá, você de lá. E um não conhece o outro.

— Se eu conhecesse não estava perguntando.

— Você é muito perguntador. Note que eu não lhe perguntei nada.

— Nem tinha que perguntar. Pois se fui eu que telefonei.

— Não perguntei nem vou perguntar. Não estou interessado em conhecer outras pessoas.

— Mas podia estar interessado pelo menos em responder a quem telefonou.

— Estou respondendo.

— Pela última vez, cavalheiro, e em nome de Deus: quem fala?

— Pela última vez, e em nome da segurança, por que eu sou obrigado a dar esta informação a um desconhecido?

— Bolas!

— Bolas digo eu. Bolas e carambolas. Por acaso você não pode dizer com quem deseja falar, para eu lhe responder se essa pessoa está ou não aqui, mora ou não mora neste endereço? Vamos, diga de uma vez por todas: com quem deseja falar?

Silêncio.

— Vamos, diga: com quem deseja falar?

— Desculpe, a confusão é tanta que eu nem sei mais. Esqueci. Chau.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis.

Machado de Assis (Evolução)


Chamo-me Inácio; ele, Benedito. Não digo o resto dos nossos nomes por um sentimento de compostura, que toda a gente discreta apreciará. Inácio basta. Contentem-se com Benedito. Não é muito, mas é alguma coisa, e está com a filosofia de Julieta: “Que valem nomes? perguntava ela ao namorado. A rosa, como quer que se lhe chame, terá sempre o mesmo cheiro.” Vamos ao cheiro do Benedito.

E desde logo assentemos que ele era o menos Romeu deste mundo. Tinha quarenta e cinco anos, quando o conheci; não declaro em que tempo, porque tudo neste conto há de ser misterioso e truncado. Quarenta e cinco anos, e muitos cabelos pretos; para os que o não eram usava um processo químico, tão eficaz que não se lhe distinguiam os pretos dos outros — salvo ao levantar da cama; mas ao levantar da cama não aparecia a ninguém. Tudo mais era natural, pernas, braços, cabeça, olhos, roupa, sapatos, corrente do relógio e bengala. O próprio alfinete de diamante, que trazia na gravata, um dos mais lindos que tenho visto, era natural e legítimo, custou-lhe bom dinheiro; eu mesmo o vi comprar na casa do... lá me ia escapando o nome do joalheiro; — fiquemos na Rua do Ouvidor.

Moralmente, era ele mesmo. Ninguém muda de caráter, e o do Benedito era bom, — ou para melhor dizer, pacato. Mas, intelectualmente, é que ele era menos original. Podemos compará-lo a uma hospedaria bem afreguesada, aonde iam ter ideias de toda parte e de toda sorte, que se sentavam à mesa com a família da casa. Às vezes, acontecia acharem-se ali duas pessoas inimigas, ou simplesmente antipáticas; ninguém brigava, o dono da casa impunha aos hóspedes a indulgência recíproca. Era assim que ele conseguia ajustar uma espécie de ateísmo vago com duas irmandades que fundou, não sei se na Gávea, na Tijuca ou no Engenho Velho. Usava assim, promiscuamente, a devoção, a irreligião e as meias de seda. Nunca lhe vi as meias, note-se; mas ele não tinha segredos para os amigos.

Conhecemo-nos em viagem para Vassouras. Tínhamos deixado o trem e entrado na diligência que nos ia levar da estação à cidade. Trocamos algumas palavras, e não tardou conversarmos francamente, ao sabor das circunstâncias que nos impunham a convivência, antes mesmo de saber quem éramos.

Naturalmente, o primeiro objeto foi o progresso que nos traziam as estradas de ferro. Benedito lembrava-se do tempo em que toda a jornada era feita às costas de burro. Contamos então algumas anedotas, falamos de alguns nomes, e ficamos de acordo em que as estradas de ferro eram uma condição de progresso do país. Quem nunca viajou não sabe o valor que tem uma dessas banalidades graves e sólidas para dissipar os tédios do caminho. O espírito areja-se, os próprios músculos recebem uma comunicação agradável, o sangue não salta, fica-se em paz com Deus e os homens.

— Não serão os nossos filhos que verão todo este país cortado de estradas, disse ele.

— Não, decerto. O senhor tem filhos?

— Nenhum.

— Nem eu. Não será ainda em cinquenta anos; e, entretanto, é a nossa primeira necessidade. Eu comparo o Brasil a uma criança que está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro.

— Bonita ideia! exclamou Benedito faiscando-lhe os olhos.

— Importa-me pouco que seja bonita, contanto que seja justa.

— Bonita e justa, redarguiu ele com amabilidade. Sim, senhor, tem razão: — o Brasil está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro.

Chegamos a Vassouras; eu fui para a casa do juiz municipal, camarada antigo; ele demorou-se um dia e seguiu para o interior. Oito dias depois voltei ao Rio de Janeiro, mas sozinho. Uma semana mais tarde, voltou ele; encontramo-nos no teatro, conversamos muito e trocamos notícias; Benedito acabou convidando-me a ir almoçar com ele no dia seguinte. Fui; deu-me um almoço de príncipe, bons charutos e palestra animada. Notei que a conversa dele fazia mais efeito no meio da viagem — arejando o espírito e deixando a gente em paz com Deus e os homens; mas devo dizer que o almoço pode ter prejudicado o resto. Realmente era magnífico; e seria impertinência histórica pôr a mesa de Luculo na casa de Platão. Entre o café e o conhaque, disse-me ele, apoiando o cotovelo na borda da mesa, e olhando para o charuto que ardia:

— Na minha viagem agora, achei ocasião de ver como o senhor tem razão com aquela ideia do Brasil engatinhando.

— Ah!

— Sim, senhor; é justamente o que o senhor dizia na diligência de Vassouras. Só começaremos a andar quando tivermos muitas estradas de ferro. Não imagina como isso é verdade.

E referiu muita coisa, observações relativas aos costumes do interior, dificuldades da vida, atraso, concordando, porém, nos bons sentimentos da população e nas aspirações de progresso. Infelizmente, o governo não correspondia às necessidades da pátria; parecia até interessado em mantê-la atrás das outras nações americanas. Mas era indispensável que nos persuadíssemos de que os princípios são tudo e os homens nada. Não se fazem os povos para os governos, mas os governos para os povos; e abyssus abyssum invocat. Depois foi mostrar-me outras salas. Eram todas alfaiadas com apuro. Mostrou-me as coleções de quadros, de moedas, de livros antigos, de selos, de armas; tinha espadas e floretes, mas confessou que não sabia esgrimir. Entre os quadros vi um lindo retrato de mulher; perguntei-lhe quem era. Benedito sorriu.

— Não irei adiante, disse eu sorrindo também.

— Não, não há que negar, acudiu ele; foi uma moça de quem gostei muito. Bonita, não? Não imagina a beleza que era. Os lábios eram mesmo de carmim e as faces de rosa; tinha os olhos negros, cor da noite. E que dentes! verdadeiras pérolas. Um mimo da natureza.

Em seguida, passamos ao gabinete. Era vasto, elegante, um pouco trivial, mas não lhe faltava nada. Tinha duas estantes, cheias de livros muito bem encadernados, um mapa-múndi, dois mapas do Brasil. A secretária era de ébano, obra fina; sobre ela, casualmente aberto, um almanaque de Laemmert. O tinteiro era de cristal, — “cristal de rocha”, disse-me ele, explicando o tinteiro, como explicava as outras coisas. Na sala contígua havia um órgão. Tocava órgão, e gostava muito de música, falou dela com entusiasmo, citando as óperas, os trechos melhores, e noticiou-me que, em pequeno, começara a aprender flauta; abandonou-a logo, — o que foi pena, concluiu, porque é, na verdade, um instrumento muito saudoso. Mostrou-me ainda outras salas, fomos ao jardim, que era esplêndido, tanto ajudava a arte à natureza, e tanto a natureza coroava a arte. Em rosas, por exemplo, (não há negar, disse-me ele, que é a rainha das flores) em rosas, tinha-as de toda casta e de todas as regiões.

Saí encantado. Encontramo-nos algumas vezes, na rua, no teatro, em casa de amigos comuns, tive ocasião de apreciá-lo. Quatro meses depois fui à Europa, negócio que me obrigava a ausência de um ano; ele ficou cuidando da eleição; queria ser deputado. Fui eu mesmo que o induzi a isso, sem a menor intenção política, mas com o único fim de lhe ser agradável; mal comparando, era como se lhe elogiasse o corte do colete. Ele pegou da ideia, e apresentou-se. Um dia, atravessando uma rua de Paris, dei subitamente com o Benedito.

— Que é isto? exclamei.

— Perdi a eleição, disse ele, e vim passear à Europa.

Não me deixou mais; viajamos juntos o resto do tempo. Confessou-me que a perda da eleição não lhe tirara a ideia de entrar no parlamento. Ao contrário, incitara-o mais. Falou-me de um grande plano.

— Quero vê-lo ministro, disse-lhe.

Benedito não contava com esta palavra, o rosto iluminou-se-lhe; mas disfarçou depressa.

— Não digo isso, respondeu. Quando, porém, seja ministro, creia que serei tão somente ministro industrial. Estamos fartos de partidos: precisamos desenvolver as forças vivas do país, os seus grandes recursos. Lembra-se do que nós dizíamos na diligência de Vassouras? O Brasil está engatinhando; só andará com estradas de ferro...

— Tem razão, concordei um pouco espantado. E por que é que eu mesmo vim à Europa? Vim cuidar de uma estrada de ferro. Deixo as coisas arranjadas em Londres.

— Sim?

— Perfeitamente.

Mostrei-lhe os papéis, ele viu-os deslumbrado. Como eu tivesse então recolhido alguns apontamentos, dados estatísticos, folhetos, relatórios, cópias de contratos, tudo referente a matérias industriais, e lhos mostrasse, Benedito declarou-me que ia também coligir algumas coisas daquelas. E, na verdade, vi-o andar por ministérios, bancos, associações, pedindo muitas notas e opúsculos, que amontoava nas malas; mas o ardor com que o fez, se foi intenso, foi curto; era de empréstimo. Benedito recolheu com muito mais gosto os anexins políticos e fórmulas parlamentares. Tinha na cabeça um vasto arsenal deles. Nas conversas comigo repetia-os muita vez, à laia de experiência; achava neles grande prestígio e valor inestimável. Muitos eram de tradição inglesa, e ele os preferia aos outros, como trazendo em si um pouco da Câmara dos Comuns.

Saboreava-os tanto que eu não sei se ele aceitaria jamais a liberdade real sem aquele aparelho verbal; creio que não. Creio até que, se tivesse de optar, optaria por essas formas curtas, tão cômodas, algumas lindas, outras sonoras, todas axiomáticas, que não forçam a reflexão, preenchem os vazios, e deixam a gente em paz com Deus e os homens.

Regressamos juntos; mas eu fiquei em Pernambuco, e tornei mais tarde a Londres, donde vim ao Rio de Janeiro, um ano depois. Já então Benedito era deputado. Fui visitá-lo; achei-o preparando o discurso de estreia. Mostrou-me alguns apontamentos, trechos de relatórios, livros de economia política, alguns com páginas marcadas, por meio de tiras de papel rubricadas assim: — Câmbio, Taxa das terras, Questão dos cereais em Inglaterra, Opinião de Stuart Mill, Erro de Thiers sobre caminhos de ferro, etc. Era sincero, minucioso e cálido. Falavame daquelas coisas, como se acabasse de as descobrir, expondo-me tudo, ab ovo; tinha a peito mostrar aos homens práticos da Câmara que também ele era prático. Em seguida, perguntou-me pela empresa; disse-lhe o que havia.

— Dentro de dois anos conto inaugurar o primeiro trecho da estrada.

— E os capitalistas ingleses?

— Que tem?

— Estão contentes, esperançados?

— Muito; não imagina.

Contei-lhe algumas particularidades técnicas, que ele ouviu distraidamente, — ou porque a minha narração fosse em extremo complicada, ou por outro motivo. Quando acabei, disse-me que estimava ver-me entregue ao movimento industrial; era dele que precisávamos, e a este propósito fez-me o favor de ler o exórdio do discurso que devia proferir dali a dias.

— Está ainda em borrão, explicou-me; mas as ideias capitais ficam. E começou: No meio da agitação crescente dos espíritos, do alarido partidário que encobre as vozes dos legítimos interesses, permiti que alguém faça ouvir uma súplica da nação. Senhores, é tempo de cuidar exclusivamente, — notai que digo exclusivamente, — dos melhoramentos materiais do país. Não desconheço o que se me pode replicar; dir-me-eis que uma nação não se compõe só de estômago para digerir, mas de cabeça para pensar e de coração para sentir. Respondo-vos que tudo isso não valerá nada ou pouco, se ela não tiver pernas para caminhar; e aqui repetirei o que, há alguns anos, dizia eu a um amigo, em viagem pelo interior: o Brasil é uma criança que engatinha; só começará a andar quando estiver cortado de estradas de ferro...

Não pude ouvir mais nada e fiquei pensativo. Mais que pensativo, fiquei assombrado, desvairado diante do abismo que a psicologia rasgava aos meus pés. Este homem é sincero, pensei comigo, está persuadido do que escreveu. E fui por aí abaixo até ver se achava a explicação dos trâmites por que passou aquela recordação da diligência de Vassouras. Achei (perdoem-me se há nisto enfatuação), achei ali mais um efeito da lei da evolução, tal como a definiu Spencer, — Spencer ou Benedito, um deles.

Fonte:
Machado de Assis. Relíquias da Casa Velha. Publicado originalmente pela Editora Garnier (RJ) em 1906.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 358

 

Carla Rejane Silva (Sonhos Desfeitos)


Você me fez sentir bela,  viçosa, formosa, amorosa,  gostosa, uma rosa em botão. Transformou, de maneira eloquente, em realidade plena, pequenos sonhos  meus, imutando  em amor abundante, quase às raias do torrencial, meu coração completamente despedaçado.

Me deu seus beijos, me ofertou seus carinhos e abraços. Aqueceu  meu corpo inerte e adormecido  pelo tempo... Pelo tempo  esquecido, desfeito em voragem. Você criou, em mim, sentimentos novos, afetos e entusiasmos que fazia muito  igualmente se perderam  num redemoinho inexplicável.

Num outro momento inesquecível, você enxugou minhas lágrimas sentidas, lágrimas amargas, oriundas  de uma dor consternada e suspeitosa.

Eu não me sentia feliz. O meu âmago estava preso e algemado, acorrentado dentro de uma vida vazia, acabrunhada e literalmente ferida.

Você trouxe, como se fosse um toque de magia, um brilho terno de uma estrela  distante, e a sua luminosidade, embora intocável, foi tão imensa. Se fez tão intensa para meus olhos, que o meu viver tristonho e acabrunhado criou uma nova esperança e forma.

E não parou ai. Você foi mais além. Aquém. Me devolveu sorrisos  aos  lábios, ternura à alma, felicidade e calma aos meus sentidos, notadamente aqueles  em que a vida  fez questão de escurecer e mergulhar num negrume quase sem saída.

Por fim, você me enviou para um mundo novo. Um mundo até então inimaginável. Com ele, me fiz completa, repleta, cheia, contente, alegre... Saltitante... Certamente outra mulher...

Uma nova mulher. Sim, uma nova mulher. Cheguei a ficar fora de mim, absolvida em meio a devaneios bucólicos.  Me peguei flutuando em espaços abissais... Até que um dia, de repente, num repente, você  se faz ausente. Fugiu, sumiu, se esvaiu num indiferentemente sem tamanho.  

Então tudo voltou ao ontem esquecido. Eu caí feia, tropecei de corpo e fragilidade na real e o pior de tudo, eu entendi: sim, eu entendi. Pra você... Meu Deus, pra você,  pra você jamais cheguei a ser realmente importante.

Fonte:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza.

Antonio Cabral Filho (21º Colar de Trovas) Tema: Servidão voluntária


01
Liberta-te das prisões,
de toda força contrária,
que a pior das servidões
é a servidão voluntária.
Elizabeth de Souza Cruz - RJ

02
É a servidão voluntária...
a pior escravidão,
muito mais que milenária,
a perfeita submissão.
Antonio Cabral Filho - RJ

03
A perfeita submissão
é para os alienados.
Os governantes não são,
pelos mesmos, questionados.
Oliveira Caruso - RJ

04
Pelos mesmos questionados,
numa submissão constante,
felizes escravizados,
presos por frágil barbante.
Antonio Cabral Filho - RJ

05
Presos por frágil barbante,
com força extraordinária,
conforma-se o elefante
em servidão voluntária.
Gilberto Cardoso dos Santos - RN

06
Em servidão voluntária
vou viver sempre contigo:
serás minha luz diária,
eu serei o teu abrigo.
Antonio Francisco Pereira - MG

07
Eu serrei o teu abrigo
e também teu protetor,
terás o meu ombro amigo
e, quem sabe, o meu amor?
Ester Figueiredo - RJ

08
E quem sabe o meu amor,
se esconda n'algum disfarce,
para espalhar seu calor:
liberdade é entregar-se!
Antonio Cabral Filho - RJ

09
Liberdade é entregar-se
à servidão voluntária
e não impor-se o disfarce
de uma norma autoritária.
Talita Batista - RJ

10
De uma norma autoritária
os escravistas se fartam
sobre a alma solitária
e, após sugá-la, descartam.
Antonio Cabral Filho - RJ

11
E, após sugá-la, descartam,
sem a mínima vergonha.
Tomara que não repartam
sem-vergonhice medonha.
Prof. Roque – RS

12
Sem-vergonhice medonha
é viver em servidão,
imitando até quem ponha
a dignidade em leilão.
Antonio Cabral Filho - RJ

13
A dignidade em leilão
é cisa que me apavora.
Mas se for seu coração
eu arremato na hora.
Antonio Francisco Pereira - MG

14
Eu arremato na hora,
porque meu coração diz,
e desbanco quem ignora,
tal qual Machado de Assis.
Antonio Cabral Filho - RJ

15
Tal qual Machado de Assis
eu escrevo a toda hora,
analisando os brasis
e tudo que me apavora.
Midhi Paixão - BA

16
Tudo quanto me apavora
é viver igual escravo
no tacão de quem explora
sem valer sequer centavo.
Antonio Cabral Filho - RJ

17
Sem valer sequer centavo,
me entreguei por nenhum preço.
Hoje canela sem cravo,
da escravidão eu padeço.
Fernando Tanajura - BA

18
Da escravidão eu padeço
na servidão voluntária,
pois ainda não conheço
uma arma libertária.
Antonio Cabral Filho - RJ

19
Uma arma libertária
cura a sede de irmãos.
E quando tudo escurece,
busco a fonte mansidão.
Major Wagner Trindade - MS

20
Busco a fonte mansidão
e lanço o meu forte verso,
contra qualquer servidão
seja qual for o universo.
Luiz Claudio - RN

21
Seja qual for o universo,
que tu tens por ligações,
não sinta o mundo perverso,
liberta-te das prisões.
Talita Batista - RJ

***

Trovas Fechamento

A
Seja qual for o universo,
que tu tens por ligações,
não sinta o mundo perverso,
liberta-te das prisões!
Talita Batista - RJ

B
Seja qual for o universo,
no mundo das ilusões,
quem tem amor faz o inverso
liberta-te das prisões!
Aurineide Alencar - MS

Fonte:
Trovadores do Brasil