sábado, 24 de julho de 2021

Adega de Versos 36: Hegel Pontes

 

Carolina Ramos (O Vencedor)

Filho de alfaiate, Robson não era um Petrônio porque a natureza não o ajudava. Baixinho... sem maiores predicados que o cabelo cheio e encaracolado, supria a ausência de atributos adicionais, sempre trajando-se com o mais cuidadoso apuro.

A profissão do pai colaborava... E muito! Havia também interesses profissionais... impossível negar. O filho era, indiscutivelmente, fator de publicidade ambulante, dos mais autênticos, para os negócios daquele pai que nele investia, conscientemente. Por sua vez, a baixo custo, Robson promovia a alfaiataria do pai.

O investimento interessava, portanto, a ambas as partes – autêntico negócio de família para ninguém botar defeito.

Robson escovou e alisou, cuidadosamente, o terno retirado da mala. Vestiu com ele o cabide e dependurou-o no lado esquerdo do guarda-roupa, como se aquele fosse lugar previamente reservado.

Custava-lhe ter de dividir espaço com aquele companheiro de quarto, imposto pelas circunstâncias. Olhou-o de soslaio. Baixinho como ele e, como ele... caladão.

A procura comum de um quarto, num hotel barato, unira interesses de ambos os lados. O moço de cabelos encaracolados, com pretensões a Petrônio, viera de Catanduva para enfrentar o vestibular da Faculdade de Direito, disposto a gastar o quanto menos possível. O que teria pela frente, após bater asas e deixar o ninho, exigia prudência e contenção de despesas.

Na portaria, aquele rapazote de jeito simplório, que não conseguia uma vaga, acabara por lhe vencer a resistência, levando-o a renunciar à independência de ter um quarto só para si. De mais a mais, quarto com duas camas, partilhado entre dois, pesaria menos nos bolsos de qualquer um. Por isso, ali estavam: - um, esvaziando a bagagem com desenvoltura; o outro, meio constrangido, ajeitando sacolas como quem não tem pressa de exibir-lhes o conteúdo.

Num impulso de cordialidade, Robson tentou quebrar o gelo:

- Olhe... eu fico com três cabides e você com os outros três. Tá bom?

O outro concordou com a cabeça, sem alterar a situação das sacolas.

- Meu nome é Robson. Sou de Catanduva. Você vem de onde?

- Altamiro... meu nome é Altamiro. Vim de Sergipe. Tô procurando meu pai que veio de Aracaju pra cá faz uns oito anos... e ele não voltou mais.

- ...E você não tem algum endereço para chegar até ele?

- Tenho, não... mas tenho o de um tio... irmão do meu pai, que também mora por aqui, há muito tempo.

Foi tudo. O sergipano fechou- se outra vez em copas.

Ajeitado o canto do seu guarda-roupa, o moço de Catanduva acariciou num último olhar o terno impecável, feito pelo pai "com agulha de ouro" para que o filho não cruzasse as tradicionais arcadas do Largo São Francisco menos apresentável do que os demais.

O segundo cabide estava vestido com a camisa que trazia no bolso a etiqueta "Winner", presente da mãe. Sabia que, por detrás dessa marca otimista, estavam as orações dela e das irmãs em busca da cumplicidade do Altíssimo para que ele, realmente, se tornasse um "Vencedor".

Insistiu, dirigindo-se ao companheiro que continuava indefinido a remexer sacolas.

- Como é... você vai ficar por aqui? Eu vou forrar o estômago. Quer que lhe traga alguma coisa?

- Não, não... obrigado. Pode deixar... não estou com fome... vou descansar um pouco... Não dormi nada esta noite.

Já que o moço não fazia questão de companhia, Robson despediu-se:

- Então, tchau! Fique à vontade. Durma bem!

Sozinho, solto na capital paulista, não teve pressa em retomar ao hotel. A rápida refeição estimulou-o a perder-se no burburinho da metrópole, encantado com o esplendor das luzes... arrebatado pelo dinamismo da noite sem sono.

Livre, como um coelho em campo aberto, e, ao mesmo tempo, receoso dos perigos embutidos nessa liberdade, Robson sentia-se como um pássaro em gaiola aberta, hesitante em cruzar os limites do desconhecido. Só quando o cansaço lhe pesou sobre os passos, noite alta, decidiu retomar ao Hotel Paratodos. Denominação eufêmica para um casarão mal cuidado, a esconder segredos em cada quarto, devendo, quando muito, ser chamado de Pensão Paratodos, embora o eufemismo ainda prevalecesse.

Pediu a chave ao porteiro sonolento.

- Está lá em cima com o seu companheiro.

Não chegou a bater... Percebeu que o quarto estava fechado por fora enquanto a chave permanecia na fechadura. Lamentou intimamente a negligência do sergipano. Saíra deixando o quarto praticamente aberto! Que imprudência! Por certo desconhecia os perigos da cidade grande!

Girou a chave, empurrou a porta e acendeu a luz. Não viu o companheiro e nem sequer seus pertences. Sobre a sua cama, apenas um bilhete: - Desculpe.

Sobre a cadeira, única, a sua maleta... aberta e vazia!

Correu para o guarda-roupa. Vazio também! Nem o terno "feito com agulha de ouro"! Terno feito pelo carinho paterno, especialmente para aquela ocasião! A camisa "Winner" também ali não estava, numa evidente demonstração de que tampouco as preces da mãe e das irmãs haviam tido força suficiente para conter a avidez do larápio!

Desceu as escadas aos saltos e, mais uma vez, sacudiu os sonhos do porteiro sonolento.

- Onde está o rapaz?

- Que rapaz?

- Que rapaz há de ser?! O que dividia o quarto comigo, ora!

Os olhos do porteiro sonolento mostravam perplexidade:

- Ele não está lá em cima?! Por aqui é que ele não passou, não!

- Como não passou?! Pulou a janela?!... Quem é ele, afinal? – Robson impacientava-se.

- Quem é não sei... ele subiu com o senhor e ficou de descer em seguida para trazer os documentos e assinar a ficha. Mas... ainda não desceu.

- Como não desceu, cara? Desceu, sim... e levando tudo o que era meu!

Os olhos do porteiro arredondaram-se afinal, vencendo o sono. Robson percebeu que dali não sairia nada a seu favor. A rua escura e deserta desestimulava qualquer busca.

Deu meia volta, irritado... e enfurnou-se no quarto, remoendo maus pensamentos:

- Se eu pego aquele infeliz!!!...

Na manhã seguinte, o moço de Catanduva gastava as parcas economias na compra de roupas novas apresentáveis, embora não tecidas com "agulha de ouro". Roupas que não o envergonhariam perante os colegas do vestibular.

Logo teve certeza de não terem sido totalmente vãs as pretensões da mãe e das irmãs – Foi aprovado!

Pouco mais de um mês, quando voltava das primeiras aulas de temo e gravata como exigiam os Estatutos das Arcadas vislumbrou, numa das filas de ônibus, o seu terno desaparecido e obviamente dentro dele, o sergipano confuso, que também já o vira e tudo fazia para esgueirar-se sem ser pego.

De um salto, Robson agarrou-o pela lapela do paletó. Não reagiu. A fila tumultuou-se. Aglomerada à volta dos dois, gente curiosa... pronta a fazer justiça.

A raiva, até então contida, subiu à cabeça de Robson.

- Seu... seu... Então é assim que se faz?! Confiei em você — Dividi com você meu quarto... e foi isto o que me aprontou, cara?!

A turma que os rodeava, disposta a fazer justiça, recuou desconcertada... Receio de imiscuir-se em questões íntimas.

Agarrado e aterrorizado ante a fúria do estudante, o faltoso encolhia-se, trêmulo, dentro daquele terno que tinha as exatas medidas de ambos.

Ante a ausência de reação... e ao ver o medo estampado nos olhos do rapaz, Robson acalmou-se um pouco mais, afrouxando a mão:

- Como é... encontrou seu pai?!

- Meu pai morreu... há quase um ano!... Meu tio, também, alguns meses depois – foi o que me contou o vizinho.

A mão que agarrava a lapela afrouxou um pouco mais.

- Lamento. - E o que você vai fazer agora?...

- ...Eu ia voltar pra minha terra... pra minha mãe... que precisa muito de mim... mas... se o doutor me entregar...não sei o que vai acontecer...

No olhar acuado, um misto de angústia... de temor... até de vergonha, quem sabe?! O paletó aberto deixava ver no bolso da camisa a marca - "Winner".

Robson sorriu... sem reprimir as cócegas da ironia. A raiva sumira completamente. Largou a lapela.

- Vai... vai embora. E vê se não esquece, nunca mais, do que aconteceu aqui. Da próxima vez... pode ser bem pior! Ah! se pode!!! Lembra bem disto rapaz!... Lembra mesmo!

O garoto ganhou vida! Agradeceu, respirando fundo: – Obrigado, doutor! - e sumiu no ônibus estacionado no ponto.

E aquele moço de cabelos encaracolados, que já envergava outro terno feito com "Agulha de Ouro", continuou seu caminho, num passo seguro de quem tinha plena consciência de ser, indiscutivelmente, um - Vencedor!

- Sequer tinha Diploma... e, em tão poucos minutos, fora chamado de "Doutor'' por duas vezes!...

Inflou o peito, confiante: - Com certeza... aquela não haveria de ser a última vez!!!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Jérson Brito (O Plantador de Sonhos)

I
Na casa de pau a pique
No sopé da serrania
Nonato, Rosa e mais seis
Tinham sua moradia,
Lutando pelo sustento,
Enfrentavam sol e vento
Com coragem, noite e dia.

II
Tinha cinquenta de idade
Seu Nonato, o lavrador,
Quarenta e dois tinha aquela
Que ele chamava de amor,
Uma incansável parceira,
Há vinte e três companheira
Daquele batalhador.

III
Roberto, Antônio, Marcelo,
Laurinha, Luiz e Rita
Eram os nomes dos filhos
De uma galera bonita,
Temente a Deus e valente,
Naquele solo inclemente
Tinha esperança infinita.

IV
Um pequeno galinheiro
E uma roça bem cuidada
Eram a fonte de renda
Da família abençoada:
Para manter cada filho,
Feijão, mandioca e milho
Era a colheita aguardada.

V
Beto e Tonho, adolescentes,
Fora do horário escolar
Ajudavam o seu pai
Nas tarefas e a cuidar
Da pequena plantação,
Conscientes da missão
Que cumpriam no lugar.

VI
As outras quatro crianças
Ficavam com Dona Rosa,
Atenta às coisas de casa,
Sempre muito carinhosa,
Mesmo envolta em afazeres,
Não esquecia os deveres
Que tem uma mãe zelosa.

VII
A vida era dura ali
Pra nunca faltar no prato,
Mas sempre, ao amanhecer,
Demonstrando ser bem grato,
Fazia sua oração
No seu pedaço de chão
O devotado Nonato.

VIII
Certa vez, a sequidão
Fez mirrar todo o plantio,
Oito meses se passavam
E não acabava o estio,
Um estirão de tristeza
Tomou lugar da beleza
No leito seco do rio.

IX
Nonato não se abalou
E preparou novamente
Aquele solo rachado:
Revirou, pôs a semente...
O velho chapéu de palha
Protegia, na batalha,
O rosto do combatente.

X
O rendimento da venda
De seus produtos na feira
Acabou ficando pouco,
Mas surgiu uma maneira
De fazer algum trocado,
Após Rosa ter lembrado
Seus dotes de costureira.

XI
O povo do vilarejo,
Por causa da pandemia
Que já vinha se alastrando
Decerto precisaria
Evitar a enfermidade
Procedente da cidade,
A todos assustaria.

XII
Compraram materiais
Com sua parca poupança
Para Rosa fazer máscaras,
Na torcida e na esperança
Do negócio florescer
E que pudessem vender
Nas casas da vizinhança.

XIII
Com o risco de Covid
Atormentando o local,
Suas vendas deram certo,
Até mais do que o normal;
Depois da boa surpresa,
Quanta alegria na mesa
Sentiu aquele casal.

XIV
A paixão pela lavoura
Era ainda firme e forte;
Apesar de algum abalo,
Nonato tinha suporte
Naquela fé nordestina
Na providência Divina,
No trabalho duro e sorte.

XV
Todo dia, em uma prece,
Contemplando o firmamento,
Pedia as águas de volta
Para aquele chão sedento;
A solução provisória
Louvava na rogatória,
Mas precisava de alento.

XVI
O Senhor não desampara
Um filho temente, honesto
E, assim, a bênção chegou
Para aquele lar modesto:
A chuva tão esperada
Deixou a terra encharcada,
Os risos contam o resto…

Contos e Lendas do Mundo (A Mirra)

A mirra é um corpo seco de homem que foi amaldiçoado. A terra não come a carne e esta vai ressecando em cima dos ossos.

Um rapaz muito vivo e engraçado entrou num cemitério com seus companheiros e ao sair viu uma mirra. Lembrou-se de dizer, por chiste:

— Está magra de fome. Venha daí cear comigo !

— Irei — disse a mirra, com uma voz fanhosa, toda passando pelo nariz. O rapaz ficou assombrado e foi dali lançar-se aos pés do vigário a quem tudo contou.

— Tens que cumprir o convite. Depois da ceia te convidará e aceitarás sem sinal de medo. Volta cá que te darei outro conselho.

O rapaz preparou a ceia e a mirra foi-lhe bater à porta à meia noite, sentando-se á mesa e comendo até não mais poder. Depois falou para o dono da casa:

— O bem que me recebeste em tua casa, devo retribuir de qualquer modo. Amanhã esperar-te-ei onde me convidaste.

E se foi embora. O rapaz não dormiu e pela manhã estava na casa do vigário que lhe deu um rosário indulgenciado, com o perdão da hora da morte e emprestou-lhe a capa com que saía.

O rapaz foi para o cemitério e encontrou a mirra.

— Está bem. Deixa a capa aqui e o rosário de que não tens necessidade lá dentro.

— Não, que está frio e do rosário não me separo!

A mirra teimou e o rapaz não cedeu. Estiveram debatendo esse ponto, quando a mirra declarou:

— Assim não te posso levar para cear comigo. Não posso ficar junto da capa dos ministros de Deus e das armas de Nossa Senhora. Vai-te, e não tornes a brincar com os que não vivem…

O rapaz pôs-se fora o mais depressa que pode e nunca mais disse graças com os mortos.
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Essa versão reforça uma opinião de Gustavo Barroso sobre o ciclo de Don Juan. A lenda, como a conhecemos e tem sido aproveitada em romance, teatro, poema e pintura, é uma concordância de dois elementos independentes: a) a conquista de mulheres; b) o convidado do morto, caveira, estátua, etc. Esta historieta pertence ao segundo elemento, assim como A Mirra que Teófilo Braga colheu no Algarve, e A estátua que come, do Sardoal. Não há país europeu ou americano que não possua uma variante.

Na estátua que come, Teófilo Braga obtém um elo português na tradição do convidado de pedra. Aristóteles fala na estátua de Mitis, em Argos, que tombou sobre o assassino de quem representava, esmagando-o (La Poetique, cap. IX, 23, trad. de Ch. Emile Ruelle, Paris). Em Lisboa, no ano de 1610, um clérigo obteve a proibição de S. Jorge acompanhar a procissão de Corpus Christi instalado num cavalo. Ante os protestos do povo, o bispo dom Miguel de Castro autorizou a inclusão do santo mas este não perdoou ao intrigante. É tradição que, no domingo imediato, quando o clérigo que levara o Prelado a decretar a proibição dizia missa no altar de S. Jorge, caiu ao Santo a lança e feriu-o na cabeça! (Jaime Lopes Dias, Festas e Divertimentos da Cidade de Lisboa, Lisboa, 1940).


Fonte:
Os melhores contos Populares de Portugal. Org. de Luís da Câmara Cascudo. Dois Mundos Editora, 1944. Disponível em Consciência.org

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Varal de Trovas n. 515

 


Sammis Reachers (O meu vizinho)

Ontem o gritei, enquanto eu voltava da mercearia, onde fora comprar um real de pão e um quilo de açúcar Guarani – aquele intermediário entre o União e o Caravelas.

Ele passara por mim há pouco com sua bicicleta de carga e suas roupas indefectivelmente sujas, como de estivador. Eu queria dar-lhe alguns remédios que comprara para um dos gatos da casa, e que agora ficaram sem uso, e poderiam estar fazendo falta para alguém.

Ele é um desses alguéns e conhecedor de muitos outros como ele – um protetor de animais, um zelador da criação numa luta dantesca contra tantos gigantes – da coisificação dos animais ao discurso dos politicamente corretos de sofá & plantão – “Tanta gente precisando de ajuda, e você salvando cães?”.

Ele, que tem emprego fixo, após o expediente engata no segundo batente – coletor de reciclagens, cuja boa parte do lucro, eu o sei, é destinado a alimentar e cuidar de animais sob a guarda dele e de outros. Lida com lixo – o lixo humano que não entende a nobreza de suas ações, e o lixo produzido com tão desembestada fartura pelo bicho homem, a quem até nisso ele ajuda, recambiando os materiais para que a Terra, brevemente poupada, tenha um quilo a mais de fôlego.

É um camarada excepcionalmente fora da curva – ao menos da curva que nossos cansados e míopes olhos suburbanos alcançam. Arredio a festas e maiores confraternizações ou infernizações sociais, diz não pertencer “a nenhum sistema”; acredita na força superior que a tudo gerou e sustém.

Construiu sua grande casa praticamente sozinho, e nela vive sem aporrinhar ninguém, em nenhum dos trezentos e tantos dias do ano. Como acontece aos demais de sua espécie, a incompreensão leva os demais a cognominá-lo de “maluco”. Bem, até eu já carreguei essa bandeira nas costas. Em certos momentos ela vira até menção honrosa, escudo. Mas voltemos ao nosso homem. Ele se incomoda com carros largados em sua porta, ou a venda de drogas perto a seu portão? Sim. E você, não? Tem um pouco menos de medo que o normal dos homens, mas nada que o faça um Superman. A ninguém aborrece, a todos cumprimenta, e vive como pode sua inadequação.

Enquanto conversávamos em meu portão, vizinho ao dele, um casal de também vizinhos passou pela rua e lhe agradeceu – pela ajuda prestada, vim a saber, com um cachorrinho da tal família que havia ferido internamente o ouvido. Ele, com quem as pessoas têm pouca paciência de conversar – o abençoado insiste em não se enquadrar nos padrões, e olha que cada um de nós tem centenas de padrões pré-programados para engarrafar os outros – disse que fazia aquilo por missão, por senso de missão.

O homem, já senhor de seus sessenta e poucos anos, mas com cara de 45, firme calibre, disse não ser digno de agradecimentos. Pois é apenas um ser humano cumprindo seus propósitos de vida. E que o que fazia nada era, e que já fora, ele também, muito ajudado por muitas pessoas. “Dente da engrenagem, elo da corrente de Gaia”, pensei.

Sendo aguardado pela patroa, tive que me despedir. Enquanto trancava o portão, me surpreendi silenciosamente feliz por um homem de exceção como aquele, misantropo que tão bem conhece a miséria humana, mas a peita e contradiz, ter um tão grande e incompreensível carinho por mim. Oxalá eu, outro gauche na vida, como ele, como Drummond, esteja no caminho certo, seja um dos humílimos remadores contra a corrente?

Sérgio é o nome dele. Um dos muitos gonçalenses anônimos que sustentam essa terra de pé – reserva moral, reserva de amor, reserva de proatividade pró-vida – reserva sem reservas. Um dos quais o mundo não é digno, como diz a Bíblia (Hb 11.38) acerca de santos.

Ronnaldo de Andrade (Caderno de Trovas) – 3 –

Amor, você me conduz
a uma infinita paixão,
feito um cego guiado à luz
e o justo pela razão.
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Ao seu sorriso, querida,
não resisto e mal não tem.
Sendo ele fonte de vida,
ninguém resiste, ninguém!
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Canta, canta passarinho,
para alegrar o meu dia,
pois eu me encontro sozinho,
e a solidão me judia.
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Com seu sorriso de santa,
que a mim encanta e diverte,
e essa voz que me acalanta,
qualquer ateu se converte.
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Da moldura, teu retrato
rir para mim com desdém.
Quero odiar-te, isso é fato,
mas não consigo, meu bem.
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Daria tudo que tenho,
nadaria em mar de espinhos...
Deus sabe o quanto me empenho
por um só dos seus carinhos.
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Deus lhe pôs no meu caminho,
pra não me ver sofrer mais.
Você, rosa sem espinho,
calou todos os meus ais.
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Ela partiu e deixou
minha alma crucificada,
no vestido que ficou
no degrau da velha escada.
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Ensaio a cada minuto,
pedir você em casamento,
mas em pensamento escuto
o não do seu pensamento.
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Eu e você bem juntinhos,
na rede se balançando,
parecemos passarinhos,
quando estão acasalando.
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Eu lhe quero em minha frente
para falar o que sinto,
pois tudo está diferente...
Creia, o amor chegou, não minto.
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Feito esse jardim imenso
que luta contra esse outono,
eu , também, luto e não venço,
o teu cruel abandono.
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Meu coração – em pedaços –
reclama a ausência do seu...
E eu, amor, sem seus abraços,
sou qualquer um, menos eu.
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Meu dedo sem aliança...
E na cama eu sem ninguém.
E quanto mais a hora avança,
chamo você que não vem.
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Não faça assim... Não maltrate
este pobre trovador.
Oh, linda flor, se retrate,
não por mim, por esse amor...!
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Ó coração, não reclama.
Maior do que Deus ninguém,
pois, hoje quem nos difama,
viveu na lama também!
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O nosso amor, meu Amor,
é romance que se encerra
sem mágoa, tristeza, dor...
E sem páginas de guerra.
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O nosso caso acabou,
e eu me questiono em vão:
– Errei? Errei, Amor, ou
nosso amor não tem razão?
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Para a sua e minha glória,
um sentimento surgiu;
temos hoje a mesma história:
– Somos dois que o amor uniu.
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Para você fui ingrato,
fui dor, tristeza, agonia...
Fui tudo, menos sensato,
pois te amei, e não devia.
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Por mais que eu queira não posso,
esconder coisas assim:
felicidade, remoço
e um amor chegado ao fim.
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Quando amanheço ao seu lado,
sinto um frenesi sublime.
Não me seria pecado
não lhe amar; seria crime!
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Quando me chamas de amor,
eu sinto alguns arrepios;
meu rosto muda de cor,
meus olhos se tornam rios…
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Relendo as cartas de amor
que para mim escreveu,
eu senti a maior dor...
Nosso amor, Amor, morreu!
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Se eu lhe beijei com prazer
e dei o néctar da flor,
como é que irei esquecer
nossos momentos de amor?
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Sempre que o amor ganhar a forma
de algo pesado e ruim,
claramente se transforma
em grande infortúnio em mim.
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Sou homem, porém eu cismo
não viver nova paixão,
porque conheço a abismo
que existe entre ela e a razão.
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Tens um perfil que encanta,
deixa-me bobo e disperso.
És para mim uma santa
e a inspiração do meu verso.
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Tudo estava ao nosso alcance,
tanta chance o amor nos deu.
Leiamos hoje o romance
"que a própria vida escreveu...".

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) A santa “cola”

A turminha do terceiro ano do ginásio entrou assustada na sala. Haveria prova de matemática na primeira aula. O professor distribuiu a folha com as questões. Momentos após flagrou um dos alunos entregando um papelzinho ao colega que estava na carteira ao lado e que parecia muito nervoso. O mestre foi lá, pegou o papel, enfiou no bolso, deu a maior bronca: “Vão os dois para a diretoria. Tudo admito, mas cola não. E logo você, Valtinho, que sempre me pareceu um aluno exemplar. Já para fora os dois. Nota zero”.

Os meninos tentaram explicar, não adiantou, saíram os dois chorando. Só então o professor tirou do bolso a “cola” e leu o que estava escrito. Empalideceu de vergonha. Era só um bilhetinho de encorajamento de colega para colega: “Entregue suas preocupações ao Senhor” (Salmo 55:22). Bem sem graça ao reconhecer seu ato falho, chamou de volta os garotos e mandou que fizessem a prova. Pediu desculpas na frente de todos. A classe aplaudiu. Valtinho, como de costume, ganhou 10; o colega que recebeu o bilhetinho com o salmo ganhou nota 8.

Passaram-se os anos. Já morando em Maringá, fiquei sabendo que Valtinho se tornara pastor. Hoje ele mora no céu e de lá certamente continua recomendando a cada amigo: “Entregue suas preocupações ao Senhor”.

Essa historinha aconteceu há mais de 70 anos, mas continua nítida em minha velha memória. Toda vez que me lembro dela fico pensando no sofrimento daquele professor. Ele tinha fama de bravo, porém no fundo era muito gente boa. Deve ter perdido algumas preciosas horas de sono remoendo remorsos pela injustiça involuntariamente cometida.

Por ser a ”cola” uma prática tão antiga quanto a própria escola, qualquer professor, vendo um aluno passar um papelzinho a outro durante a prova, de pronto supõe tratar-se de uma tentativa desleal de ajuda ao colega. Todavia no caso não era. E deu no que deu.

Decerto foi para evitar situações embaraçosas como essa que Jesus, o máximo sábio, alertou os seus discípulos: “Cuidado... não julguem pelas aparências”. As aparências muita vez enganam. Daí a generalizada aceitação do princípio segundo o qual “in dubio pro reo” (na dúvida, decida-se a favor do réu), ou seja: “melhor um culpado solto do que um inocente preso”. Claro: há sempre o risco de alguém desvirtuar o “in dubio”, usando-o indevidamente em benefício de pessoas comprovadamente culpadas. Mas, mesmo assim, até em nome da civilização, é fundamental que se mantenha válida a bela máxima jurídica.

Julgar é muito difícil – implica enorme responsabilidade. Um mínimo erro de interpretação pode levar o julgador a tomar decisões gravemente defeituosas.

E todos nós, por algum lapso, ou mais frequentemente por boa-fé, estamos sujeitos a cair nas teias de enganosas aparências. Conclusões apressadas são, portanto, arriscadas demais. Nem sempre o que parece “cola” é realmente “cola”. Pode ser um belíssimo salmo.

Obrigado, Valtinho. Valeu a lição.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 15.7.2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Versejando 67

 


Renato Benvindo Frata (A Pá de Polenta)

Meu pai não era de trabalhos manuais. Como caixeiro-viajante saía na madrugada de segunda com o primeiro ônibus e retornava somente no escurecer da sexta. Vinha cansado, suarento, empoeirado e doido para encontrar os amigos e limpar a goela com uma branquinha, e mais uma e mais outras...

Sua mala de couro cheirava a roupa suja e sua maleta de pedidos cheirava a papéis e fumo; é que ele às vezes fazia seus próprios cigarros enrolando uma palha dita especial que um amigo fornecia. O fumo vinha de Minas, mas catingava tanto que servia para espantar pernilongos.

Pois bem, naquele fim de sexta ele trouxe na bagagem algo diferente: era um pedaço de madeira branca, serrada, que não tinha cheiro.

- Vá até o senhor Jacinto e tome emprestado uma verruma com ponta fina, uma grosa e um formão curvado de mais ou menos 3 centímetros. Nós dois faremos um presente para sua mãe - ordenou.

- O que dá para fazer com esse pedaço de pau?

– Vá buscar as ferramentas e na volta você fica sabendo. Veja bem: um pé lá outro cá!

- Sim senhor. E saí desembestado até a casa do dono das ferramentas que me atendeu com gentileza, colocando-as num embornal de lona.

Quando cheguei, a surpresa: ele havia desenhado o presente na ripa branca, Seria uma bela colher de pau.

- Pra quê servirá, pai?

- Ué, você não come polenta toda hora? Será a nova pá de polenta da sua mãe, ué. Tá na hora dela deixar de mexer o fubá com a espumadeira de alumínio que esquenta demais e machuca a mão. Entendeu?

- Sim. Ela vai gostar.

- Então, ao trabalho. - E se pôs a cortar com o canivete bem afiado e a desbastar a ripa com as ranhuras de aço da grosa. E, vai daqui e vai dali, em minutos - ou seria em horas? - com a camisa empapada, as mãos cheias de bolhas, ele admirou o objeto contra a luz, sorriu por ter conseguido o intento e disse com a cara alegre: - Passe-me a verruma - pondo-se a fazer um furo no cabo.

Instantes depois a nova pá ficou pronta. Branquinha, lisa, com os contornos suaves e no tamanho ideal. Talvez tenha sido o primeiro (e último) instrumento que ele tenha feito em toda a vida,

- Ficou linda pai.

- Linda e perfeita! Chame sua mãe, quero ver a reação dela.

- Santo Deus que bagunça! - Espantou-se ao chegar. - Quem vai limpar a sala agora? Porca miséria... - disse ela arrepiada de braba, com a sujeira de cepilho e pó de madeira espalhados sobre os móveis.

- Veja mãe, o que o pai fez para você. Uma pá de polenta! Novinha!

- Oh! Filho, que maravilha... - Pegou a pá, olhou para ele que aguardava o maior dos agradecimentos, fechou a cara e rumou para a cozinha sem mais nada a dizer. Ouvimos apenas o barulho da pá jogada sobre as panelas vazias do fogão apagado.

- Que fizemos de errado?

- Só Deus é capaz de entender as mulheres. - E foi pro bar, para retornar à noitinha, manguaçado como sempre, triste e com cara de vítima.

A sala brilhava com os móveis limpos, o chão encerado e a toalha da mesa trocada. Até um vaso de flor enfeitava o tudo.

Sobre a mesa da cozinha, um prato de costelinhas de porco, fritas, uma salada de couve temperada no alho, arroz e uma tábua redonda de polenta fumegante. Ao lado, um pedaço de cordonê que ele usava para cortar em fatias o alimento que sempre foi a base das nossas refeições.

– A pá ficou boa, muito boa e bonita. – disse – e sorriu se aproximando dele para um abraço.

Do outro lado da mesa e assistindo a cena, notei que ele piscou de um olho e sorriu para mim como se repetisse:

- Só Deus, mesmo, para entender as mulheres...

Fonte:
Renato Benvindo Prata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXV

AQUI NESTE PROFUNDO APARTAMENTO

 
Aqui neste profundo apartamento
Em que, não por lugar, mas mente estou,
No claustro de ser eu, neste momento
Em que me encontro e sinto-me o que vou,

Aqui, agora,  rememoro
Quanto de mim deixar de ser
E, inutilmente, [....] choro
O que sou e não pude ter.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

AS LENTAS NUVENS FAZEM SONO
 
As lentas nuvens fazem sono,
O céu azul faz bom dormir.
Boio, num íntimo abandono,
À tona de me não sentir.

E é suave, como um correr de água,
O sentir que não sou alguém,
Não sou capaz de peso ou mágoa.
Minha alma é aquilo que não tem.

Que bom, à margem do ribeiro
 
Saber que é ele que vai indo...
E só em sono eu vou primeiro.
E só em sonho eu vou seguindo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

AS NUVENS SÃO SOMBRIAS

As nuvens são sombrias
Mas, nos lados do sul,
Um bocado do céu
É tristemente azul.

Assim, no pensamento,
Sem haver solução,
Há um bocado que lembra
Que existe o coração.

E esse bocado é que é
A verdade que  está
A ser beleza eterna
Para além do que há.
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A 'SPERANÇA, COMO UM FÓSFORO INDA ACESO
 
A 'sperança, como um fósforo inda aceso,
Deixei no chão, e entardeceu no chão ileso.
A falha social do meu destino
Reconheci, como um mendigo preso.

Cada dia me traz com que 'sperar
O que dia nenhum poderá dar.
Cada dia me cansa de Esperança ...
Mas viver é sperar e se cansar.

O prometido nunca será dado
Porque no prometer cumpriu-se o fado.
O que se espera, se a esperança e gosto,
Gastou-se no esperá-lo, e está acabado.

Quanta ache vingança contra o fado
Nem deu o verso que a dissesse, e o dado
Rolou da mesa abaixo, oculta a conta.
Nem o buscou o jogador cansado.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

BASTA PENSAR EM SENTIR
 
Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de  parar de andar,
Depois de ficar e ir,  
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.

Viver é não conseguir.

Nilto Maciel (A Música)

Após banhar-se e jantar, ligou a vitrola, pôs sobre o prato em rotação o primeiro disco do dia e levou a agulha à borda. Correu para a poltrona e se deitou. Quando cruzava os braços sob o pescoço, sentiu na cabeça uma dor. Não exatamente uma dor, mas uma sensação estranha. Ora, não se lembrava daquela música. Não a conhecia

Há anos, quase todo dia, praticava os mesmos gestos e sentia as mesmas sensações. Irritava-se quando a chuva deixava lento o trânsito de veículos e o impedia de chegar à casa na hora de costume. Mas diante da eletrola esquecia o incidente e desligava o telefone. Não queria ser importunado por ninguém. Se algum vizinho batesse à sua porta, pulava da cadeira feito uma fera, pronto a esmurrá-lo. Quando o sono chegava, desfazia todo o processo, lentamente, como num ritual. Punha os discos no final da fila, para voltar a tocar neles dias e dias depois. Apagava as luzes e se deitava, deliciado.

Naquela noite, porém, todo o seu “modus vivendi” começou a se esfacelar inexplicavelmente. Ora, como podia ouvir uma composição que não conhecia ou não constava em sua pequena discoteca? Alguém teria ido à sua casa e deixado aquele objeto. Quem? Um dos filhos, um primo, um amigo? Rememorou todas as visitas recebidas nos últimos dias. Olhou  para a capa da gravação: nenhuma palavra, apenas um desenho. Não, aquilo não lhe pertencia. De quem seria, então? Passeou pela sala, dirigiu-se à cozinha, bebeu água, se irritou com a barata que se escondeu atrás do fogão. Ora, por que não escutar as outras músicas do disco? Pôs a vitrola para funcionar de novo desde o começo e se deitou na poltrona. Decididamente não conhecia aquela peça. Uma polca de Strauss? Talvez não. A segunda faixa lhe pareceu mais estranha ainda. E assim se deu por quase uma hora.

Na noite seguinte se postou diante da discoteca, certo de que era a noite de uns noturnos. No entanto, não os localizou. Teriam roubado aquela preciosidade? Quem seria o gatuno? Insultou filhos, primos, amigos. Bando de ladrões! No frenesi da raiva, não viu os noturnos ao lado do objeto desconhecido e se lembrou da noite anterior. Ora, por que não ouvir novamente aquelas músicas incógnitas? Um dia descobriria toda a verdade. Repetiu o ritual e aguardou o início da execução da primeira polca. No entanto, para espanto seu, não ouviu uma polca, mas uma valsa. Ora, ora, ora. Que significava aquilo? Sentiu medo, angústia, raiva. Ergueu-se e se postou diante da eletrola, olhos no disco a girar. Desvairava-se o homem, tremia da cabeça aos pés, febril, alucinado. Estaria louco? A música seria capaz de enlouquecer, mesmo os mais sensíveis, os mais tranquilos, os mais sensatos seres? De onde surgira aquela valsa? Quem a gravara de um dia para o outro? Ou se tratava de outra gravação? Mas onde se achava a primeira?

Correu à estante e, descontroladamente, se pôs a mirar e remirar um a um os discos. Não, não havia nenhum novo, apenas os antigos, os conhecidos, os Tchaikovsky, os Grieg, os Bach, os Haendel, os Listz, os principais clássicos, todos ouvidos repetidas vezes, cem vezes, mil vezes. Súbito inicia-se a “Dança Eslava nº 2”, de Dvorak.

Espantou-se mais uma vez o homem. Restaurava-se a normalidade em sua casa, em sua sala, em seus ouvidos, em seu ser. O seu Dvorak reaparecia belo, pujante, perfeito. Aquela dança constava de um de seus Dvorak antigos. Seguiram-se obras ignotas, mas belas. Apesar disso, o cidadão não se tranquilizava. De quem seriam elas? E por que a mesma gravação, o mesmo objeto, de um dia para o outro se havia transformado?

Nos dias seguintes o fenômeno se repetiu: as músicas eram sempre diferentes das composições ouvidas nas noites passadas, umas conhecidas, outras não. E o homem se foi acostumando àquilo. Passados alguns meses, tinha conhecido centenas de novas melodias. E isso o conformava. Pelo menos não precisava comprar mais discos nem escutar as mesmas obras, embora aqui e ali também ouvisse as mais conhecidas peças dos mais famosos compositores, tudo na mesma gravação.

Pensou em procurar os jornais, as rádios, as televisões. Seria a mais fantástica reportagem. E se o chamassem de louco? Convocou os filhos para a confidência. Os rapazes saíram acabrunhados da casa do pai. Desistiu de dar publicidade ao fenômeno. Melhor permanecer em casa, calado, entregue à música, como sempre quis. Ouviria toda a obra musical composta até então. Coisa de que nenhum vivente seria capaz. Poderia escutar a peça nunca composta. E disso ninguém saberia. Somente ele, privilegiado ouvinte.

Porém, um dia o disco desapareceu, sumiu, evaporou-se, com capa e tudo. E o pobre homem não soube mais o que fazer em casa, na sala, na cozinha, no quarto, na rua. Não soube mais o que fazer da vitrola, da poltrona, da geladeira, dos ouvidos. E desapareceu, sumiu, evaporou-se, sem deixar rastros nem notícia. E nunca mais se ouviu falar dele. Como se nunca tivesse existido.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Arquivo Spina 40: Antonio Queiroz

 


Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 11–

A cruz, por velha que seja,
no mais tristonho abandono...
Nem pensa quem te apedreja,
que, és a dor do eterno sono!
= = = = = = = = = = =

Adeus, palavra tão breve,
dois fonemas; e, ademais...
se já dói em quem escreve,
em quem diz, dói muito mais!
= = = = = = = = = = =

Ante os rumores de guerra
e em meio a tantos deslizes...
Ouço os murmúrios da terra
no clamor dos infelizes!
= = = = = = = = = = =

A saudade, cor de arminho,
toda tarde se distrai;
chega e se arrancha em meu ninho
e do meu ninho não sai!
= = = = = = = = = = =

De volta ao meu chão, sozinho,
a saudade se completa,
na voz de um redemoinho
com minha alma de poeta!
= = = = = = = = = = =

Distante do filho ausente,
meu olhar, perdendo o brilho,
sinto a dor que o cego sente
por não poder ver o filho!
= = = = = = = = = = =

Em meio a sobras e orgias,
a ganância continua,
e esquece as almas vazias
pedindo sobras na rua!
= = = = = = = = = = =

Enquanto o ocaso sepulta
a cor rubra do poente,
o manto da noite oculta
o fim da tarde da gente!
= = = = = = = = = = =

Enquanto o sol, não se acalma,
e, antes que a luz se desfaça;
parece até que tem alma
no sol de minha vidraça!
= = = = = = = = = = =

Fiz essa ponte na infância
unindo nascente e foz,
para encurtar a distância
dessa distância entre nós!
= = = = = = = = = = =

Meu olhar se for preciso,
querendo se desculpar...
Pede a esmola de um sorriso
que há no teu jeito de olhar!
= = = = = = = = = = =

Nosso amor, não foi em vão;
vive ainda bem guardado,
na aliança em minha mão,
unindo o nosso passado!
= = = = = = = = = = =

Num mundo carente e pobre,
para afastar tanta dor,
Deus pôs o sabor mais nobre,
na massa do pão do amor!
= = = = = = = = = = =

Num velho rancho de palha
a vida não passa em vão;
sobra de amor se agasalha
numa esteira pelo chão!
= = = = = = = = = = =

Nunca me causa empecilho
manter sempre um livro aberto;
mesmo fechado, meu filho,
mostra a luz com passo certo!
= = = = = = = = = = =

O amor, que tudo conquista,
que afasta a cegueira e a dor,
faz com que cego de vista
enxergue a chama do amor!
= = = = = = = = = = =

O encanto do teu sorriso,
e a minha dor, por enquanto...
Mostram-me a fonte do riso
ninando a fonte do pranto!
= = = = = = = = = = =

Ouço o velho coração,
dizer segundo a segundo:
– Poupe o piso deste chão
que é terra de todo mundo!
= = = = = = = = = = =

Pai, não herdei nada em vão;
e, ainda sinto, por suposto...
Em minha mão, tua mão
e o teu suor no meu rosto!
= = = = = = = = = = =

Percebo, por teus deslizes,
que entre nós, algo incomum,
quer fazer dois infelizes,
sem haver motivo algum!
= = = = = = = = = = =

Percebo que as mãos divinas,
logo após o entardecer,
fecham no céu, as cortinas
para a noite adormecer!
= = = = = = = = = = =

Por vivermos tão distantes,
disfarço a minha alegria,
porque nem mesmo os amantes
são felizes todo dia!
= = = = = = = = = = =

Quando a luz do sol declina,
a saudade se revela,
no choro da chuva fina
batendo em minha janela!
= = = = = = = = = = =

Quando a trova não me acalma,
depressa a torno mais bela
pondo um pouco de minha alma
no corpo dos versos dela!
= = = = = = = = = = =

Quando a voz, atrapalhada,
chega à fronte embranquecida;
são sinais da longa estrada
por todos nós, percorrida!
= = = = = = = = = = =

Revendo a cartilha antiga
junto à velha tabuada...
Não sei qual foi mais amiga
nem sei qual foi mais amada!
= = = = = = = = = = =

São tantas as evidências
em decisões desiguais...
Que o choro das indecências
põe nódoas nos tribunais!
= = = = = = = = = = =

Se em meio a tantas ciladas,
há lamentos, pranto e dor;
que em vez de balas trocadas,
haja intercâmbios de amor!
= = = = = = = = = = =

Sinto no infinito brilho,
da aurora, cor de maçã
que, a luz dos olhos do Filho,
brilha no Sol da manhã!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (Preta Velha)

Numa humilde rua de um bairro do Nordeste brasileiro, vivia uma mulher negra de idade avançada chamada Rosária. Filha de escravos, passou mais da metade da vida em quase completa miséria. Trabalhava como doméstica, mas ganhava pouco. Se muitas mulheres de pele branca já eram exploradas nas ditas casas de família, imagina as de pele preta. É uma vergonha, mas em pleno 2020, isso ainda acontece muito!

Depois da infância pobre, da adolescência limpando a casa de exploradores, ela acreditava que sua vida iria melhorar após o casamento. Que nada: piorou. O marido logo revelou-se um sujeito violento e alcoólatra.

Certo dia Rosária se perguntou: - Mas a escravidão não acabou em 1888? - No papel de esposa tornara-se mais escravizada do que as mulheres de seus antepassados, pois não tinha liberdade para expor vontades ou opiniões. Sequer tinha o direito de sair de casa. Seus dias resumiam-se em obedecer cegamente o seu esposo.

Depois de sofrer por muitos anos com o marido, o qual ela pensou que pudesse mudar sua triste realidade, finalmente começou a se libertar. O fígado do covarde bêbado não resistiu aos efeitos de tanta bebida e ele acabou morrendo.

As graças dos privilégios de uma boa vida, sempre fugiram do seu caminho. Estéril, nem filhos do seu ventre brotaram. Sentada numa calçada, triste, cabisbaixa, aquela senhora não sabia mais o que pensar de seu destino.

Repentinamente, como se um ser divino tocasse seu ombro, ela ergue os olhos para o céu e começa a conversar com Deus. À noite, ao repousar seu cansado corpo, um anjo aparece aos pés de sua cama. Pede a ela que, apesar das tristezas vividas, continuasse sendo uma pessoa doce, pois sua alma era bela e tinha muito o que oferecer ao mundo.

Ao raiar o dia, ela pensa que a visita do anjo tinha sido apenas um sonho. Mas não era. Sem família, muito sozinha, começou a cogitar a possibilidade de aprender alguma coisa, só não sabia bem o quê...

Com o passar do tempo, bateu uma enorme saudade de sua querida avó que, apesar de ter sido escrava, secretamente curou muita gente com suas rezas.

Sua memória relembrou alguns trechos de uma oração muito citada pela velha nas benzeduras que fazia:

“Deus os livre da praga que derruba.
Da aflição que chega.
Da decepção que assombra.
Da falsidade que ludibria.
Do esforço que esgota.
Da inclemência que afasta.
Da inveja que consome.
Da mágoa que adoece...

A partir de então ela buscou aprender a ler, passou a estudar as rezas curativas. E assim, a felicidade lhe abraçou com ternura. Se viu cercada de pessoas. Curou muita gente. Muitos passaram a lhe chamar de mãe. E assim a preta velha nunca mais sentiu-se triste e nem sozinha.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Adega de Versos 35: Amilton Maciel Monteiro

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) – 28 –

Juntar as ilhas culturais para fazermos um grande arquipélago de conhecimentos. Quanta identidade cultural, quanta riqueza cultural, quanto sabor cultural, quanta vivência cultural, quanta delícia cultural, quanto luzeiro cultural.

Grandioso estuário de pensares, de fazeres, de força motriz de dias melhores.

Junção de águas correntes claras, cristalinas. Lago azul, lago imenso, lago denso de aguapés a joeirar, a peneirar ideias e nutrientes do pensamento humano.

Águas claras, ideias puras, vidas luminosas.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Dorothy Jansson Moretti (Hablase, Cantase y Tocase)

Era só um churrasco. Nada demais... não fossem as circunstâncias.

Na chácara dos pais de Adriano e Carmen, ela namorada de meu filho. Lugar lindo! Bosque de pinheiros, grama verde, céu azul e tempo colaborando.

Em Curitiba , Adriano e meu filho possuem inúmeros amigos paraguaios. O Paulinho até foi hóspede por duas vezes na casa de um deles, o Carlos, em Asunción.

Era aniversário de um paraguaio, e os patrícios estavam lá para prestigiá-lo. Os carros chegaram quase todos juntos. Havia mesas e bancos no meio dos pinheiros e uma enorme churrasqueira. Todos se acomodaram.

Os paraguaios cantam. Os paraguaios tocam. E bem! É lindo! Vários violões não ficam calados um só instante. Quando um se cansa, passa o instrumento para outro e a festa continua. Cantam de todas as maneiras: sozinhos, em dupla, trio, quarteto, conjunto... E de tudo: guarânias, boleros, tangos, rock, samba, música popular de quanto país do mundo, canções de Roberto Carlos... nem sei mais o que! Uma beleza!

Sanchez, o que cuidava da carne, envergando um comprido avental branco, de repente largou do que estava fazendo e veio cantar uma canção para mim, acompanhando-se ao violão, juntamente com os outros. Belíssima voz! Depois pediu-me que cantasse. E daí também a turma não me deixou parar. Desenterrei tudo o que sabia, só faltou que eu cantasse ária de ópera...

O ambiente era convidativo. Era bom cantar.

Saí para andar com a Carmen pela chácara e aproveitei para perguntar-lhe quem eram as pessoas.

"Quem é aquele que está pondo a maionese na mesa?"

"É o Gildo, engenheiro da Itaipu, E o aniversariante,"

"Brasileiro?"

'"Não. Paraguaio. Mas a mulher dele é carioca. É a Lourdes, moça muito simpática. Ali, olhe".

"E aqueles dos violões?"

"São o Toni, o Firmin, o Victor, o Carlos, e Pomerito" (Não lembro todos os nomes).

"Brasileiros?"

"Não. Paraguaios."

"E aquela garota linda, de boina vermelha?"

"É a Kitty".

"Brasileira?"

"Não. Paraguaia."

"Poxa… pelo que estou vendo, hoje não ficou ninguém no Paraguai…"

Chamou-me a atenção outro casal.

"E aqueles quem são?"

"São o Gil e a esposa".

"Paraguaios?"

"Não. Brasileiros".

"Arre! Até que enfim!"

Enquanto a carne assava, foram jogar futebol. Brasil versus Paraguai, naturalmente. Só que para completar o time dos brasileiros... faltou gente. Dois paraguaios tiveram que jogar no nosso time. E nós perdemos...

A carne ficou pronta. Estava muito boa. Havia todos os outros elementos que acompanham um bom churrasco. Por último, bolo de aniversário. Delicioso!

A música não parou enquanto a turma comia. Dois ou três largavam os violões, outros dois ou três os empunhavam e continuavam cantando até que todo mundo almoçou.

E foi assim pela tarde afora, até a hora da partida.

Dia esplêndido! Em pleno município da tradicional Curitiba - população cabelo-de-milho-verde, uma alegre "fiesta" paraguaia com tudo a que tem direito, e toda cantada, tocada e hablada... em portunhol.

(Tribuna de Itararé —  01/11/89)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

Fabiano Wanderley (Glosas) – 1

 COMO DÓI, VER UM VELHINHO,
PELA RUA, ABANDONADO.


Ao relento, sem um ninho,
falseando, o caminhar,
tão tristonho, a mendigar,
como dói, ver um velhinho.

Solitário, sem carinho,
tão carente, amargurado,
sem ter um rumo traçado,
sem algo, que lhe conforte,
exposto às farpas da sorte,
pela rua, abandonado.
= = = = = = = = = = =

FECHANDO AS JANELAS DJALMA,
PUDE ESCONDER MINHA DOR.


Para disfarçar meu trauma,
ou não deixá-lo aparente,
só há, um meio, evidente,
fechando as janelas d'alma.

Só assim, o meu ser se acalma,
conforta-me o interior,
não permitindo se expor,
minha angustia, meu tormento,
com o doloroso argumento,
pude esconder minha dor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NESTA VIDA, QUEM PEGA O BONDE ERRADO,
VAI PARAR NA ESTAÇÃO DO DESENGANO.


Terá sempre o destino mal traçado,
sem turno, sem um sonho positivo,
jamais alcançará o objetivo,
nesta vida, quem pega o bonde errado.

Desista desse intento malogrado,
não deixe que essa escolha, cause dano,
reflita, mude o seu cotidiano,
para os trilhos da verdade e do alinho,
por que, quem o conduz ao descaminho,
vai parar na estação do desengano.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

DIZ BEHRING, O GRANDE POETA:
QUE BRILHO, TINHA O PERCY!


Com a verve de um esteta,
e a corda de um coração,
exaltando nosso irmão
diz Behring, o grande poeta.

E esse tema se completa,
por todos termos, que eu vi
e em todas frases, que eu li,
vi nos versos, a franqueza:
— "ele era uma luz acesa"...
que brilho, tinha o Percy.

O poeta, Behring Leiros, em seus versos,
definiu, que o Zé Percy,
"era uma luz acesa".

= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

CANTA CHARLES MADUREIRA,
COM O ARDOR, QUE O CANTO TEM.


Sua verve é prazenteira,
sua música é envolvente,
com carisma e som dolente,
canta Charles Madureira.

Com sua alma seresteira,
a poesia sobrevêm,
interpreta muito bem,
com grande discernimento,
expressando o sentimento,
com o ardor que o canto tem.

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos.
Natal/RN, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Sílvio Romero (A lebre encantada)

Havia em um reino um rei que tinha um filho. Um dia o rei estava muito doente e disse ao filho que fosse matar uma caça para ele comer. O príncipe saiu com uma espingarda e quando viu, saiu do mato uma lebre toda branca.

O príncipe correu atrás dela para pegá-la, quando de repente abriu-se um buraco no chão e a lebre entrou, levando consigo o príncipe. Quando este viu, estava dentro de um palácio muito bonito e rico, tendo nele uma princesa também muito formosa. O príncipe ficou tão encantado da beleza da princesa, que nunca mais se lembrou do palácio do pai e nem deste.

Passado muito tempo, vai um dia o príncipe lavar as suas mãos e tira do dedo uma joia que o pai tinha lhe dado. Aí ele lembra de seu palácio e da família, e diz à princesa que ia vê-los.

A princesa insistiu muito para que não fosse, mas ele disse que ia e tornaria a voltar. A princesa então bateu com uma vara no lugar onde tinha entrado com o príncipe e o chão logo abriu-se e o príncipe passou.

Quando chegou ao palácio do pai, achou-o todo coberto de luto e abandonado, pois já tinha morrido toda a família de desgosto por causa do desaparecimento do príncipe.

Ficou muito triste e não quis voltar mais para o palácio da princesa. Saiu sem destino tendo trocado a roupa de príncipe por uma de um sapateiro, e foi a uma cidade que estava toda em festa. Perguntou que festa era aquela, então disseram que era porque a princesa deste lugar era a mais bonita do mundo.

O príncipe, que estava mudado em sapateiro, pediu que lhe mostrasse a princesa, e disse quando a viu que já tinha visto uma moça muito mais bonita.

Correram e foram logo dizer ao rei que aquele sapateiro disse que tinha conhecido uma princesa muito mais bonita do que a filha dele. O rei mandou chamar o sapateiro e disse que sob pena de morte ele havia de trazer a princesa à presença dele.

O sapateiro pediu o prazo de quinze dias e saiu. Quando chegou ao lugar onde a lebre tinha entrado com ele, principiou a cavar. Levou muito tempo cavando porque a terra estava muito dura, mas afinal conseguiu passar.

Aí encontrou o palácio da princesa todo fechado. Ele bateu na porta e apareceu uma criada. Quando esta viu o príncipe disse: “Príncipe meu senhor, a princesa esta muito doente por sua causa; só o que diz é: “Ah! Ingrato, que foste e nunca mais viste quebrar meus encantos.”

A criada disse mais, que naquele dia à meia-noite o mar crescia muito e afogava todo o palácio, e então entrava um peixe muito grande e engolia a princesa, mas se tivesse uma pessoa que matasse o peixe, quebrava os encantos da princesa.

O príncipe quis ir falar com a princesa, mas a criada disse que não, porque ela podia morrer mais depressa. Aí o mar principiou a crescer e a princesa a ficar pior. O príncipe pegou uma espada e escondeu-se atrás de uma janela. O mar foi tomando o palácio, e quando foi meia-noite, o peixe entrou para engolir a princesa, então o príncipe enfiou-lhe a espada e o matou.

O mar foi diminuindo outra vez e a princesa escapou. Então o príncipe apareceu e a princesa ficou muito alegre e houve muita festa.

Depois o príncipe disse: “Princesa, eu já lhe salvei a vida, agora é você que vai salvar a minha”. E contou que sob pena de morte havia de mostrar uma princesa mais bonita que a filha do rei. A princesa disse que ele fosse descansado.

Ele saiu e chegou no outro reino no dia marcado. Já estava a forca armada para ele morrer. Então ele pediu ao rei que esperasse mais um pouco. Quando apareceu uma nuvem de prata, que veio descendo, descendo, e quando chegou no meio do povo apareceu uma criada toda coberta de prata dizendo: “Arreda, povo, deixa botar a cadeirinha de minha sinhá.”

Aí o povo ficou pasmo. O sapateiro tornou a pedir ao rei que esperasse mais um bocadinho, que ainda não era aquela.

Apareceu outra nuvem, de ouro e foi descendo e quando chegou no meio do povo apareceu uma criada toda coberta de ouro e disse: “Arreda, povo, deixa eu botar a cadeirinha da minha sinhá.”

O sapateiro tornou a pedir ao rei que esperasse, quando apareceu uma nuvem de brilhante e foi descendo. Quando chegou no meio do povo apareceu uma moça linda e toda coberta de brilhantes, que era a princesa, e assentou-se no meio das duas criadas.

O povo ficou maravilhado. O rei e a princesa, quando viram aquela beleza incomparável, ficaram envergonhados e pediram muitas desculpas ao rapaz. Convidaram este e sua formosa noiva para se hospedarem no palácio. Mas os dois não aceitaram. Preferiram voltar para o seu reino, onde viveram alegres e felizes.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. 
Publicado pela primeira vez em 1885, em Lisboa.

domingo, 18 de julho de 2021

Varal de Trovas n. 514

 

Evely Libanori (A gente sabe que ele não vai viver...)

Um bebê recém-nascido e abandonado. Era um gato largado no chão, na calçada.

Foi assim: ele estava caído sozinho na calçada em frente à AABB numa manhã de quarta-feira. Não é possível saber como ele foi parar nessa calçada. O comportamento humano... Era uma manhã de quarta-feira de setembro, quando um menino fazia o seu caminho diário de menino que volta da escola. Então ele viu que, na calçada, uma vida se mexia. Olhou atento e viu... Extraordinariamente, era um gato!

Um gato tão pequeno como ele nunca vira antes na vida. Um gato tão gatinho e tão vulnerável... O gato no meio da calçada, perdido, do tamanho de uma semente, abandonado, sozinho. A sorte do gatinho: foi achado por um menino bom.

O menino levou o gato para casa, mas lá havia cachorros. E então o menino, como menino que é, procurou a mãe: "Mãe o que fazer com o que me aconteceu?" A mãe orientou. E ele, de algum jeito desses jeitos que meninos têm para se mexer (a pé, de ônibus, de bicicleta), levou a vidinha nas mãos para a Sociedade Protetora dos Animais. É verdade que os gatos são animais fortes; o gatinho viveu todo o tempo do salvamento dele.

O menino chegou lá com o gatinho e falou tudo o que viveu. O menino começava a virar homem. Quando o gatinho chegou, ele estava embrulhadinho num cobertor que foi do menino quando o menino tinha sido bebê: um cobertor azul antigo e quentinho de calor e de amor. Eu acho que era por isso o gatinho vivia, do amor que cercava todo ele. Chegou vivo, Eles olharam e falaram: "Meu Deus, um gato tão pequeno, o que fazer com ele?" A Rayssa, que estava lá, disse: "Tenho uma amiga que sabe cuidar".

Então trouxeram para mim. Eu estava quieta na minha casa, lendo no computador, quando chegou o carro branco, Eu vi da janela e fui atender. Era uma moça no portão com um bebê num manto azul. Antes de saber tudo, pensei que era filho dela. Quando abri o portão ela me mostrou o gato no manto, e meu universo mental se abriu para a explicação. A explicação é a história acima.

Eu olhei para ele e vi um borrãozinho, uma manchinha cinzenta. A gente não via direito os bracinhos e as perninhas. Era feio, indefinido. Não se mexia, parecia uma mariposa, mas era um gato, E então eu pus a mão nele. Gelado, gelado. Ele estava todo molhado, totalmente molhado, e eu sabia o motivo: ele está fazendo xixi e não estão secando, Eles não sabiam de nada, não tinham a menor ideia do que fazer com o gatinho que acabava de pular para dentro da vida. Por isso vieram até minha casa.

Eu tive medo. Ele estava muito fraco. Eu disse:

"Não sei se ele vai viver", E então a moça respondeu: "A gente sabe que ele não vai viver, mas pelo menos alguém se preocupou com ele".

Peguei o bebê no manto azul e entrei. Fiz o que devia fazer, mas não tinha certeza se ele viveria. Ele estava tão gelado, quieto, tão pequenino... Mas então... Bem, ele era um gato! E se recuperou como se recuperam os gatos, esses seres que são como pequenos tratores de potência e vigor.

Depois que sequei e aqueci o corpo dele, ficou quentinho e bebeu bastante leite, E foi crescendo, crescendo, dobrando de tamanho a cada semana. Pois nunca até hoje na vida ele teve uma febre, com exceção uma vez quando ele foi atropelado. Mas isso já é uma outra história do gato que a gente pensava que não viveria, eu e a moça da Sociedade Protetora. Ele, não sabendo de nada da sua biografia, não sendo o culpado de nada do que lhe acontecia, queria mais era o calor, o leite, a vida.

Aí, a vida tem umas coisas que a gente não sabe como explicar: se com o Destino, o Deus, ou se com o destino, o acaso. Seja pela via divina, seja pela via do acaso, fiquei sabendo que o nome do salvador menino do meu gato é "Luã". Quando eu fiquei sabendo disso, já tinha posto o nome do meu gato de "Lua", O meu gato se chama "Lua". O manto azul que embrulhou o Luã e o Lua ficou na minha casa por um tempo. Até que ele foi embora junto com uma cachorrinha que largaram aqui e que eu encaminhei para a costureira que mora no bairro vizinho. O cobertor do Luã e do Lua agora está com a Sanchinha, a cachorra adotada pela vizinha.

E é o ritmo da vida. Só sei que o Lua, não sabendo que era o gatinho que ia morrer, viveu. E vive. Alegre, cinza, saltitante no jardim.
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Evely Libanori é mestre e doutora em Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa. É professora de Literatura Brasileira na graduação e de Literatura Latino-americana na pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá. É líder do Grupo de Atividades Interdisciplinares sobre os Animais-GAIA. Escreve artigos acadêmicos sobre os animais na Literatura e também narrativas sobre libertação animal.

Fonte:
Evely Libanori. Nós, animais. SP/RJ: Livro Expressão, 2013.
Livro enviado pela autora.

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) X

ALVORECER


Num festival de luz, a madrugada
vem surgindo no céu, risonhamente;
a Estrela d'Alva brilha alcandorada
sobre a Terra, que a fita, resplendente!

A Natureza, então, qual namorada,
de flores se engalana, sorridente,
cigarras cantam, canta a passarada
agradecendo a Deus esse presente.

E a estrela que brilhava, já sombria
desaparece... E o mundo que dormia,
desperta, alegre, em meio dessa festa...

Não há beleza que se iguale a esta,
quando luzente o sol se manifesta
no começo feliz de um novo dia!...
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ANTES…

Antes que seja tarde, eu me pergunto:
- por que dói tanto a despedida, assim?
Meu coração, teimoso, já foi junto
sem entender por que foges de mim?

A minha vida agora sem assunto
não tem sentido e segue para o fim,
sem teu amor me sinto qual defunto
seguindo num caixão fechado, enfim.

Mas se voltares num abraço ardente
tu me acharás aqui, pois certamente
nosso amor é maior, assim eu penso.

E nunca mais hás de ficar com medo
nem haverá jamais algum segredo
que nos separe deste amor imenso!
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BARRA DO MENDES

Plantada no Sertão, Velha Chapada,
aos pés da bela Serra Santa Cruz,
Barra do Mendes cresce, abençoada,
sob o signo da Fé, cheia de Luz.

A Natureza esbelta foi talhada,
mas a Amizade é flor que nos seduz,
porque a cidade acolhe gente honrada
e a um futuro brilhante nos conduz.

Grutas, lagoas, rios, cachoeiras,
paisagens deslumbrantes, gameleiras,
riquezas naturais que tu deténs.

Bem haja o teu valor, Barramendense,
o teu progresso a todos já convence,
eu te saúdo, então, meus parabéns!
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BONDADE

Essa bondade que nasceu comigo,
herdei, um dia, de meu velho pai.
Até parece, às vezes, que é castigo
pra quem lutando pelo mundo vai...

Meu coração cansado é tão amigo
ajuda e ampara quem na vida cai.
Ninguém será feliz, sem ter abrigo,
- o egoísmo do mundo não me atrai.

Pode até parecer que sou um louco,
pois o amor verdadeiro é muito pouco
para expressar a força da Verdade.

Quero que Deus, então, me dê guarida
para que eu possa ser por toda a vida:
- emissário da Paz e da Bondade!
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CANTANDO O AMOR

É belo o amor sublime do meu sonho
que em minha vida já se fez real.
não há razão para viver tristonho,
se estás comigo eu venço o vendaval.

O céu está mais lindo e mais risonho,
saudando a nossa paz transcendental.
O tempo passará, mas - pressuponho,
nosso amor subirá ao pedestal.

Viver este momento tão singelo
sempre foi meu desejo e meu anelo
e sentir teu carinho e o teu calor.

Querer-te assim numa expressão sincera,
Verão, Outono, Inverno ou Primavera,
hei de te amar com todo o meu amor!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. 
São Paulo: Scortecci, 2011.
Livro enviado pelo autor.

Paulo Mendes Campos (Receita de domingo)

Ter na véspera o cuidado de escancarar a janela. Despertar com a primeira luz cantando e ver dentro da moldura da janela a mocidade do universo, límpido incêndio a debruar de vermelho quase frio as nuvens espessas. A brisa alta, que se levanta, agitar docemente as grinaldas das janelas fronteiras. Uma gaivota madrugadora cruzar o retângulo. Um galo desenhar na hora a parábola de seu canto. Então, dormir de novo, devagar, como se dessa vez fosse para retornar à terra só ao som da trombeta do arcanjo.

Café e jornais devem estar à nossa espera no momento preciso no qual violentamos a ausência do sono e voltamos à tona. Esse milagre doméstico tem de ser. Da área subir uma dissonância festiva de instrumentos de percussão - caçarolas, panelas, frigideiras, cristais - anunciando que a química e a ternura do almoço mais farto e saboroso não foram esquecidas. Jorre a água do tanque e, perto deste, a galinha que vai entrar na faca saia de seu mutismo e cacareje como em domingos de antigamente.

Também o canário-belga do vizinho, descobrir deslumbrado que faz domingo. Enquanto tomamos café, lembrar que é dia de um grande jogo de futebol. Vestir um short, zanzar pela casa, lutar no chão com o caçula, receber dele um soco que nos deixe doloridos e orgulhosos. A mulher precisa dizer, fingindo-se muito zangada, que estamos a fazer uma bagunça terrível e somos mais crianças do que as crianças.

Só depois de chatear suficientemente a todos, sair em bando familiar em direção à praia, naturalmente com a barraca mais desbotada e desmilinguida de toda a redondeza.

Se a Aeronáutica não se dispuser esta manhã a divertir a infância com os seus mergulhos acrobáticos, torna-se indispensável a passagem de sócios da Hípica, em corcéis ainda mais magníficos do que os próprios cavaleiros.

Comprar para a meninada tudo que o médico e o regime doméstico desaconselham: sorvetes mil, uvas cristalizadas, pirulitos, algodão-doce, refrigerantes, balões em forma de pinguim, macaquinhos de pano, papa-ventos. Fingir-se de distraído no momento em que o terrível caçula, armado, aproximar-se da barraca onde dorme o imenso alemão para desferir nas costas gordas do tedesco uma vigorosa paulada. A pedagogia recomenda não contrariar demais a crianças.

No instante em que a meninada já comece a "encher", a mulher deve resolver ir cuidar do almoço e deixar-nos sós. Notar, portanto, que as moças estão em flor, e o nosso envelhecimento não é uma regra geral. Depois, fechar os olhos, torrar no sol até que a pele adquira uma vida própria, esperar que os insetos da areia nos despertem do meio-sono.

A caminho de casa, é de bom alvitre encontrar, também de calção, um amigo motorizado, que a gente não via há muito tempo. Com ele ir às ostras na Barra da Tijuca, beber chope ou vinho branco.

O banho, o espaçado almoço, o sol transpassando o dia. Desistir à última hora de ver o futebol, pois o nosso time não está em jogo. Ir à casa de um amigo, recusar o uísque que este nos oferece, dizer bobagens, brigar com os filhos dele em várias partidas de pingue-pongue.

Novamente em casa, conversar com a família. Contar uma história meio macabra aos meninos. Enquanto estes são postos em sossego, abrir um livro. Sentir que a noite desceu e as luzes distantes melancolizam. Se a solidão assaltar-nos, subjugá-la; se o sentimento de insegurança chegar, usar o telefone; se for a saudade, abrigá-la com reservas; se for a poesia, possuí-la; se for o corvo arranhando o caixilho da janela, gritar-lhe alto e bom som: never more (*).

Noite pesada. À luz da lâmpada, viajamos. O livro precisa dizer-nos que o mundo está errado, que o mundo devia, mas não é composto de domingos. Então, como uma espada, surgir da nossa felicidade burguesa e particular uma dor viril e irritada, de lado a lado. Para que os dias da semana entrantes não nos repartam em uma existência de egoísmos.

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* Never more: referência ao poema "O corvo", de Edgar Allan Poe, escritor e poeta norte-americano (1809-1849), em que o pássaro repete por várias vezes o refrão never more (em português, "nunca mais").

Fonte:
Paulo Mendes Campos. O cego de Ipanema. RJ: Ed. do Autor. 1960.