domingo, 18 de julho de 2021

Evely Libanori (A gente sabe que ele não vai viver...)

Um bebê recém-nascido e abandonado. Era um gato largado no chão, na calçada.

Foi assim: ele estava caído sozinho na calçada em frente à AABB numa manhã de quarta-feira. Não é possível saber como ele foi parar nessa calçada. O comportamento humano... Era uma manhã de quarta-feira de setembro, quando um menino fazia o seu caminho diário de menino que volta da escola. Então ele viu que, na calçada, uma vida se mexia. Olhou atento e viu... Extraordinariamente, era um gato!

Um gato tão pequeno como ele nunca vira antes na vida. Um gato tão gatinho e tão vulnerável... O gato no meio da calçada, perdido, do tamanho de uma semente, abandonado, sozinho. A sorte do gatinho: foi achado por um menino bom.

O menino levou o gato para casa, mas lá havia cachorros. E então o menino, como menino que é, procurou a mãe: "Mãe o que fazer com o que me aconteceu?" A mãe orientou. E ele, de algum jeito desses jeitos que meninos têm para se mexer (a pé, de ônibus, de bicicleta), levou a vidinha nas mãos para a Sociedade Protetora dos Animais. É verdade que os gatos são animais fortes; o gatinho viveu todo o tempo do salvamento dele.

O menino chegou lá com o gatinho e falou tudo o que viveu. O menino começava a virar homem. Quando o gatinho chegou, ele estava embrulhadinho num cobertor que foi do menino quando o menino tinha sido bebê: um cobertor azul antigo e quentinho de calor e de amor. Eu acho que era por isso o gatinho vivia, do amor que cercava todo ele. Chegou vivo, Eles olharam e falaram: "Meu Deus, um gato tão pequeno, o que fazer com ele?" A Rayssa, que estava lá, disse: "Tenho uma amiga que sabe cuidar".

Então trouxeram para mim. Eu estava quieta na minha casa, lendo no computador, quando chegou o carro branco, Eu vi da janela e fui atender. Era uma moça no portão com um bebê num manto azul. Antes de saber tudo, pensei que era filho dela. Quando abri o portão ela me mostrou o gato no manto, e meu universo mental se abriu para a explicação. A explicação é a história acima.

Eu olhei para ele e vi um borrãozinho, uma manchinha cinzenta. A gente não via direito os bracinhos e as perninhas. Era feio, indefinido. Não se mexia, parecia uma mariposa, mas era um gato, E então eu pus a mão nele. Gelado, gelado. Ele estava todo molhado, totalmente molhado, e eu sabia o motivo: ele está fazendo xixi e não estão secando, Eles não sabiam de nada, não tinham a menor ideia do que fazer com o gatinho que acabava de pular para dentro da vida. Por isso vieram até minha casa.

Eu tive medo. Ele estava muito fraco. Eu disse:

"Não sei se ele vai viver", E então a moça respondeu: "A gente sabe que ele não vai viver, mas pelo menos alguém se preocupou com ele".

Peguei o bebê no manto azul e entrei. Fiz o que devia fazer, mas não tinha certeza se ele viveria. Ele estava tão gelado, quieto, tão pequenino... Mas então... Bem, ele era um gato! E se recuperou como se recuperam os gatos, esses seres que são como pequenos tratores de potência e vigor.

Depois que sequei e aqueci o corpo dele, ficou quentinho e bebeu bastante leite, E foi crescendo, crescendo, dobrando de tamanho a cada semana. Pois nunca até hoje na vida ele teve uma febre, com exceção uma vez quando ele foi atropelado. Mas isso já é uma outra história do gato que a gente pensava que não viveria, eu e a moça da Sociedade Protetora. Ele, não sabendo de nada da sua biografia, não sendo o culpado de nada do que lhe acontecia, queria mais era o calor, o leite, a vida.

Aí, a vida tem umas coisas que a gente não sabe como explicar: se com o Destino, o Deus, ou se com o destino, o acaso. Seja pela via divina, seja pela via do acaso, fiquei sabendo que o nome do salvador menino do meu gato é "Luã". Quando eu fiquei sabendo disso, já tinha posto o nome do meu gato de "Lua", O meu gato se chama "Lua". O manto azul que embrulhou o Luã e o Lua ficou na minha casa por um tempo. Até que ele foi embora junto com uma cachorrinha que largaram aqui e que eu encaminhei para a costureira que mora no bairro vizinho. O cobertor do Luã e do Lua agora está com a Sanchinha, a cachorra adotada pela vizinha.

E é o ritmo da vida. Só sei que o Lua, não sabendo que era o gatinho que ia morrer, viveu. E vive. Alegre, cinza, saltitante no jardim.
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Evely Libanori é mestre e doutora em Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa. É professora de Literatura Brasileira na graduação e de Literatura Latino-americana na pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá. É líder do Grupo de Atividades Interdisciplinares sobre os Animais-GAIA. Escreve artigos acadêmicos sobre os animais na Literatura e também narrativas sobre libertação animal.

Fonte:
Evely Libanori. Nós, animais. SP/RJ: Livro Expressão, 2013.
Livro enviado pela autora.

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