sábado, 10 de julho de 2021

Estante de Livros (A Dama do Encantado, de João Antônio)

João Antônio, esse (des)conhecido
Artigo por Tania Celestino de Macêdo

João Antônio foi um escritor com grande número de livros publicados, uma militância atilada na imprensa, mas, infelizmente, seus textos não foram best seller. Talvez fosse tempo de perguntar a razão e, ao mesmo tempo, conhecer esse autor duas vezes contemplado com o prêmio Jabuti, com obra traduzida para vários idiomas, mas de quem apenas alguns já ouviram falar e poucos leram.

O contista João Antônio foi aclamado pela crítica e público já no seu primeiro livro: Malagueta, Perus e Bacanaço. O ano era 1963 e com esses contos a literatura brasileira via surgirem em suas páginas heróis que pouco tinham sido destaque até então: os malandros, os operários, os jogadores de sinuca, crianças abandonadas e prostitutas. O cenário privilegiado dessa ficção era a periferia das grandes cidades, os salões de sinuca e a zona do meretrício. Ou seja, espaços e personagens marginalizados, apresentados sem nenhuma idealização, sem que, no entanto, se ausentasse uma simpatia por eles.

Após esse livro, seguir-se-iam outros, sempre focalizando a realidade sofrida, às vezes sórdida, daqueles que têm que batalhar (e muito) para viver. Talvez esteja aqui uma das razões da pouca repercussão dos textos de João Antônio junto ao grande público: os contos do autor atiram seus leitores de frente com um mundo que os cerca cotidianamente, mas que insistentemente eles se negam a encarar. Ocorre que todo esse batalhão de personagens marginalizadas, não pede a compaixão do leitor. Antes, pelo contrário, o desafia, quer pelas situações apresentadas, quer pela linguagem a qual, sem se descolar do mundo da marginalidade, revela truques e traquejos, solicitando uma leitura atenta.

Sob esse aspecto, o crítico Alfredo Bosi, na apresentação de O conto brasileiro contemporâneo (São Paulo: Cultrix, 1974), observa: "desse fundo torvo tirou João Antônio a linguagem lírico-popular das histórias (…). Tudo nelas é breve, intenso e sintético como o narrador imagina ser o andamento vital daquelas criaturas apertadas entre a urgência pícara de vencer a fome e o medo agudo da polícia ou do malandro mais forte."

Em outras palavras, João Antônio coloca seus leitores em contato com espaços, situações e personagens que constituem a outra face das imagens bem comportadas das novelas de televisão ou de uma certa literatura cheia de finais felizes. Ora, se fosse essa apenas a nota característica da escrita do autor, já seria um grande mérito. Mas há mais: sua linguagem.

Sob esse aspecto, ler João Antônio é participar de um jogo em que, malandramente, a fala dos marginalizados se cruza com o português-padrão, driblando o leitor desatento. Assim, encontramos, ao lado de gírias e palavras de baixo calão, estruturas gramaticais (sobretudo no que se refere às orações subordinadas) que apenas grandes mestres do idioma utilizam. E isso sem que ocorra um estranhamento, pois existe um intenso trabalho de dar um ritmo certo à frase, de procura de elegância vocabular. Há, portanto, que se ter cuidado ao ler João Antônio. Talvez, também por isso, ele seja um escritor de poucos.

Vale notar que essas características estão presentes também nos numerosos artigos escritos para a imprensa. Seus textos jornalísticos trazem a marca de uma escrita ágil, cuidada, que além de fornecer a informação, não deixa de lado a reflexão. As entrevistas por ele realizadas (com o professor e antropólogo Darcy Ribeiro ou a cantora popular Aracy de Almeida, por exemplo) procuram sempre desenhar o perfil da personalidade em foco, indo além do fato e do que o público já conhece. As crônicas, quer sejam sobre Noel Rosa ou o conjunto habitacional da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, procuram sempre um traço característico, um olhar novo sobre o objeto.

Acontece que toda essa produção jornalística não foi realizada para os grandes jornais populares. Ainda que tenha escrito para veículos como o Jornal do Brasil, João Antônio colaborou, sobretudo, com a imprensa alternativa, com a "imprensa nanica" (para usar uma expressão inventada por ele), tendo sido inclusive diretor de algumas publicações, como o Livro de cabeceira do homem. É que para o autor, a badalação que cerca determinados círculos era insuportável.

Bem, sob esse aspecto, a biografia do autor talvez também auxilie na compreensão de seu pequeno número de leitores. Deve-se lembrar que João Antônio se negou a fazer concessões. Com uma visão pessimista dos governantes do país e descrédito com o mundo das letras, ele sempre se recusou a participar de cerimônias oficiais e reuniões com autoridades e rodinhas literárias. Era um solitário que, decisivamente, odiava o protocolo, a gravata e os tapinhas nas costas. Se alguém queria encontrar João Antônio, não o procurasse junto à oficialidade, mas sim em bares e restaurantes populares, rodas de samba e outros lugares em que havia gente simples, com uma vida sofrida mas a alegria forte de quem tem pouca chance de ser feliz. Nesses ambientes era fácil ver o sorriso de João Antônio, os olhos brilhantes e atentos, a sua mania de mexer no bigode, enquanto registrava mentalmente gestos, palavras e atitudes que, muitas vezes, transformavam-se em contos. Provavelmente somente nesses momentos ele se abandonava à felicidade, porque compartilhava com o povo as pequenas vitórias do cotidiano.

Assim sendo, João Antônio nunca participou de cargos públicos ou do círculo daqueles autores que são badalados pela mídia. Ele sobreviveu, num país de parco público leitor, apenas de sua literatura. Foi com ela seu maior compromisso. E por isso, provavelmente, sua admiração para com os professores de língua e literatura. João Antônio via nesses profissionais o mesmo amor que ele próprio possuía pelas palavras, a mesma luta árdua e a falta de reconhecimento pelo trabalho realizado. Em função desse respeito, o escritor nunca recusou o convite de um professor para debater suas obras com os alunos. Delicado, simples, acessível, percorreu praticamente todo o Brasil conversando com os jovens, ouvindo sugestões, críticas e opiniões, incentivando a leitura e a produção de textos.

Enfim, João Antônio pode ser definido como um autor que fez uma opção pela literatura, pelo povo, pelo Brasil. Ler suas obras é conhecer melhor a nossa face, os nossos valores e também os imensos problemas que enfrentamos. Mas, sobretudo, conhecer a boa literatura produzida no país.
Fica aqui nosso convite: vamos, finalmente, ler João Antônio?
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Tania Celestino de Macêdo é professora de Literatura Portuguesa da UNESP/Assis
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Dama do Encantado

João Antônio


...Que o subúrbio é ambiente
De completa liberdade
(Voltaste, Noel Rosa, 1934)

Há quem diga que é no Encantado que se come o melhor bacalhau da cidade. E eu não estou aqui para desdizer.

A partir do seu nome, esse subúrbio da Central do Brasil, antes de Madureira, capital do samba, e depois do Méier, carrega ares singelos, descansados; são as casas, os sobrados, os gradis. O ritmo ali é pausado. Sua população pobre é típica do Rio mais carioca, a Zona Norte — negros, mulataria, mestiçados que, na pobreza, vivem num ambiente de espontaneidade e pouca correria. Depois, tem que se chama Encantado...

Chegou ao noticiário nacional pela força de duas mulheres nascidas ali, Aracy de Almeida, a sambeira de muitos cognomes ditos e repetidos — "O Samba em Pessoa", "A Dama da Central", "A Arquiduquesa do Encantado". Bem. Exagerações à parte ou exageração nenhuma, Aracy era uma fidalga, dessa fidalguia carioca, sestrosa, picarda, encharcada de silenciosa dignidade, alta em si mesma, e a que pertenceram Pixinguinha, Clementina de Jesus, Cartola, Nélson Cavaquinho, Heitor dos Prazeres... e, claro, Paulinho da Viola, hoje em dia. A segunda dama de nomeada, para muitos, é a primeira do nosso teatro de bom nível, Fernanda Montenegro.

A fala, o som, o sotaque, o gosto com que carregava as palavras, a alegria de viver, a linguagem carioca de Aracy, debochada na primeira aparência, era em si mesma um depoimento vivo da alma do subúrbio. Mas subúrbio universal. Sua conversa tinha cor e plástica, além da bossa, obliquidade e ginga. Falava, se quiserem, em diagonal, mas o resultado era uma linha reta. Usava, abusava e deliciava o interlocutor com propriedade tão fina e tal franqueza a aparentar até rusticidade. Os adjetivos perderam um tanto o sentido quando se meteram a situar sua personalidade. Autêntica, genuína, irreverente, desconcertante, livre, impulsiva, afetiva, ética e franca... no caso de Aracy são palavras e nada mais. Ela era voz, uma voz da terra e do povo. E uma sambeira nada simples. No fundo, mulher fina e lida, leitora frequente da Bíblia e ouvinte de Mozart, vocacionada profissionalmente para indicar caminhos a jovens músicos. Foi certeira nessas previsões: sabia ouvir. Lia bastante sobre medicina e desenvolveu um gosto refinado pela pintura e artes plásticas. Captava o sentido trágico, quase grego da vida, mais de se notar ao cantar Noel Rosa.

— Nasci no Encantado, fui criada ali, tenho lá minha casa com minhas flores e meus cachorrinhos de estimação. Ali eu fui menina, fui pobre, dormi em cima de esteira. É uma casa térrea, minha, cheia de azaleias na primavera e de caramanchões; eu lá vou me sujeitar a viver dentro de um apartamento? Não, compadre, não é por nada,.não. Mas esse babado de Zona Sul, apartamento, quarto-e-sala... a sua tia aqui não embarca nessa canoa. Depois, me criei no Encantado. Sabe, a gente sente o calor de tudo isso.

Sua casa térrea, à Rua Almeida Bastos, número 294 foi e é a própria Aracy e tanto quanto a sua voz no disco é o seu melhor retrato. Bom gosto por dentro e singeleza suburbana por fora. Aracy jamais quis outra casa, embora cortejada pelas ondas da Zona Sul carioca. Não lhe era fácil ou cômodo sair do Encantado e cantar em Copacabana... Cantava, cantava. Mas pousava na casa do Encantado. Lá dentro, muita atmosfera e pintura, quadros de Aldemir Martins (que chegou a retratá-la) e Di Cavalcanti, uma cabeça de Aracy esculpida por Bruno Giorgio, mobília de bom gosto, nada de falso antigo e como Araca adorasse cachorros, havia uma atmosfera humana e movimentada. Não casou. Tinha uma tese:

— Solteira, sempre. Acho esse babado de casamento uma onda bastante enrolada. No começo, são flores e mais flores. Depois, pedras e espinhos. É a rotina, não é, filhinho? Todo o dia a mesma toalha, o mesmo sabonete. É fogo. Além de que, esse assunto é maçante. Vamos deixar para o próximo número.

A sua afilhada portuguesa, que depois de adulta a secretariou, a quem Araca quis ver médica mas que acabou vendo advogada, ainda hoje vive lá com seu nome fidalgo, Maria Adelaide Serra Bragança.

Um dos cachorros de Aracy se chamava Feijão.

— Sério, compadre, ninguém gosta de cachorro como eu.

Além do uso do cigarro importado, americano, a mania de um regime alimentar que não cumpria. Costumava fazer a feira, pessoalmente, à Rua Cruz e Souza, a feira do Encantado. Aparentemente ranzinza, esquiva:

— Ih, meu tio, eu estou sem tempo até pra me coçar.

Desculpa esfarrapada. Adorava o bate papo, era mestra na arte espontânea de prosear. Tinha carisma e conversa sua surpreendia, maravilhava ou arrepiava os pelos do braço pela autenticidade e franqueza. De memória invejável, quando sua parolagem remontava ao tempo de Noel, então, mais envolvia, devido aos detalhes e rasgos. Quando moça jogou sinuca, falou palavrão, acompanhou Noel em andanças pelos cantos por onde o poeta circulava e até pelo Mangue:

— Apesar da minha pouca idade, achava Noel um fenômeno. Passei a andar atrás dele porque estava interessada em aparecer — quando você tem pouca idade acredita nessas besteiras. Ele pegava da viola e eu cantava, em casas suspeitas, atrás do Mangue, no baixo meretrício. Sua voz era fraca e ele estava a fim daquelas mulatas. Os dias em que convivi com Noel nesta terra foram dias muito engraçados.

Sua voz sofreu restrições, devido à característica anasalada. Mas como intérprete ela foi a cantora que mais fundamente captou e transmitiu a essência rítmica do samba — a cadência.

Enquanto cantou e gravou, sua vida virou terreno do diz-que-não-diz em que era mais atacada do que atacava. As suas apresentações, de scripts livres, em boates e teatro, acabavam levantando críticas azedas, pois Aracy, em matéria de franqueza, não falava a meia verdade. Depois desabafava, jamais em tom de resposta ou desforra, mas usando inteiramente o seu direito de falar:

— Alguém escreveu por aí que eu exagero nas histórias que conto. Exagero coisa nenhuma, é tudo verdade. Conto o que é pra se contar. Tinha mais, é que não me deixam abrir o verbo. E essa coisa de Noel Rosa é preciso deixar claro que, se não fosse ele, eu não estaria aqui cantando. Só ele acreditou em mim, os outros me achavam uma escurinha que queria... Bem. Uma escurinha qualquer. E teve gente que disse até que eu desafinava, coisa que eu nunca consegui fazer em mais de 40 anos de profissão!

Uma vez, lhe perguntaram, cara a cara:

— Noel roubava música, Aracy?

E Araca, pronta:

—Ao contrário. Roubavam dele. Vi muito samba ser consertado pelo Noel e, se duvida, tem muito samba mesmo. Você está interessado na relação?

Àqueles que achavam que ela foi reduzida, com os anos, a uma cantora que interpretava exclusivamente Noel Rosa:

- Eu não me fixei em Noel e a prova disso é que cantei muitos outros grandes compositores, Caymmi, Ari Barroso, Joel e Gaúcho, Antônio Maria. A lista iria longe. Mandei pra o alto uma porção de sucessos carnavalescos que nada tinham a ver com Noel. Canto as músicas mais por sentimentalismo, por gostar do que ele fez, do que para forçar o cartaz, como uns sabidinhos já escreveram e disseram por aí. Acresce, meu tio, a seguinte circunstância: eu estou fazendo um espetáculo, cantando numa boate, num teatro, e logo o público começa pedindo: canta o Feitiço da Vila, canta O X do Problema. Manda os Três Apitos, canta a Conversa de Botequim. Aí, eu vou lá e atendo. Pego o embalo e vou indo, indo, indo de Noel. Não tenho culpa, não, compadre.

Como se tem no país a mania das classificações, ela foi considerada uma das maiores, senão a maior, das intérpretes de Noel. E a sambista mais respeitada do país. Aceitava, e não, tudo isso e explicava que Noel foi o seu mestre na arte de cantar sambas. Ninguém poderia, por exemplo, cantar melhor Gago Apaixonado, uma obra-prima, do que ele próprio. Coisas assim. Mas o fato é que desde moça foi famosa nacionalmente. E houve lendas.

Cronistas apressados viram em Aracy apenas irreverência. A gana de reportar o pitoresco e até o picaresco esteve mais preocupada com a fofocagem da suposição de que com a obra, a ponto de confundirem nomes e locais. Até se envolveu o nome de Getúlio Vargas, no Palácio do Catete, Rio de Janeiro, a prestar uma homenagem à cantora e a receber uma de suas respostas irônicas.

Na verdade, Araca esclareceu que o caso se deu quando ela recebeu um banquete em homenagem aos seus "25 ou 30 anos de rádio, eu nem me lembro". Evidente, no entanto, que a cantora omitia a data exata, para evitar o enfoque direto de um governador paulista.

O banquete era oficial e o político, sem a mínima propriedade, lhe teria feito um elogio rasgado, sem nenhuma convicção. Araca recebeu na linguagem oficial e despachou na sua linguagem típica, aberta, convicta:

— Ora, deixe isso pra lá. Isso são lantejoulas de sua parte.

Mas Getúlio Vargas, na época, nem estava em São Paulo.

Falou-se também que, uma vez, Aracy passava pela ex-Galeria Cruzeiro, hoje Edifício Avenida Central, no centro do Rio, e teria sido saudada assim por Ari Barroso:

- Olá, Aracy, como vai?

Araca retificou. Foi defronte à Livraria Jaraguá, em São Paulo, na Rua Marconi, nos tempos em que havia o famoso chá da tarde, reunindo desocupados, ricaços, esnobes e gente sem emulação cultural alguma, ruminando ideias importadas e despejando frases feitas. A saudação partiu do ator Maurício Barroso, que, estando num grupo de grã-finos, pretendeu esnobar Aracy com a inflexão "olá" de pouco caso. O que mais a ofendeu é que Maurício parecia estar fazendo um favor ao cumprimentar cantores populares, gente de uma profissãozinha qualquer, uns boêmios inconsequentes.

Ah, pra quê! Ela fez meia volta, encarou-o. E a resposta:

— Eu não sou mulher de olá!

Mas Ari Barroso não teve nada a ver com a história.

Um indisfarçável medo de avião:

— Pra não dizer que eu sinto medo, vou dizer que tenho receio. Ou, melhor ainda, que eu tenho um distúrbio neurovegetativo que não me deixa viajar de avião. Eu embarco no Rio e chego a São Paulo tontinha. Prefiro o trem, que é na base do antigo e do seguro.

Sempre uma mulher do povo. Gostava de futebol, sempre passional:

— Amo o Vasco, no Rio, mas adoro o Palmeiras, em São Paulo. Sou vascaína podre. Sou palmeirense podre. Morro. Sou palmeirense doente mesmo.

Vai daí, viveu e como. Houve duas passagens legítimas que recordava nos momentos de melhor humor e que havia dado briga. Sustentava:

— Uma vez, o Kid Pepe me encostou uma faca deste tamanho na barriga, querendo me obrigar a gravar uma batucada de autoria dele, chamada O Que Tem Iaiá. Eu gravei, compadre, com a faca na barriga e tudo.

O famoso Amélia, samba tido e havido como um dos hinos nacionais de nossa música popular, tem uma revelação da parte de Aracy. Já foi motivo de briga entre a cantora e o autor dos versos, Mário Lago:

— O Mário fica doido de raiva quando eu digo, mas a ideia de Amélia fui eu quem deu. Um dia, sugeri uma frase, "Amélia é que era mulher de verdade", ao Wilson Batista. Ele disse que andava sem tempo para compor e então o Ataulfo, que estava perto, pediu a frase para o Mário, e o samba foi feito. Tem mais. Dou até o local onde aconteceu: na Leiteria Nevada, ali na Rua Bittencourt da Silva. Na esquina ficava o Café Nice.

Sempre saltava do ataque para a defesa. Sobre a velha guarda:

— A verdade clarinha, compadre, é que nos tempos antigos, principalmente na minha fase de RCA Victor, havia mais camaradagem e todos os artistas torciam pelo sucesso de um cantor. O Orlando Silva, a Aurora Miranda, o Francisco Alves, todo mundo ajudava no coro. A gente tinha uma dificuldade bárbara para gravar. Então, se dava outro valor, né?

Mas com solene serenidade, Aracy, quando aborrecida, costumava declarar ao empresário:

— Veja. Eu moro longe, tenho os meus cachorrinhos de estimação e não preciso me aborrecer para trabalhar. Já enjoei de cantar e tem mais: o ambiente não ajuda, e no momento o mingau anda grosso.

Já veterana, sua figura continuou desconcertante também em público. Aparecia de minissaia, botinhas e boina na cabeça. Não se definiu até que ponto ela estava na moda ou ridicularizando os costumes.

Tocava o telefone. Um empresário, do lado de lá do fio, a convidava para receber uma homenagem. Ela deveria cantar, inclusive.

— Homenagem me dá muito trabalho, meu filho. Eu ando cansada. Imagine só: eu passei a manhã inteira cuidando do jardim, tive de tirar tanta terra de lá pra cá e você me vem com essa história de homenagem... Hem, e quanto vocês me pagam para cantar?

Vem a resposta.

— O quê? Olha aqui, meu filho, quem canta de graça é galo!

Desligando o telefone, voltava aos cachorros:

— Na outra encarnação, eu devo ter sido cachorro. Porque ainda não conheci no mundo quem gostasse mais de cachorro do que eu. Sério, compadre. Flor e cachorro é comigo. Imagine que eu cuido do Feijão, da Bela Lola (uma homenagem que eu fiz a um filme de Sarita Montiel), da Gorda e da Mundica. A Mundica, não desfazendo das outras, é minha grande considerada. Mas o fato é que eu já criei muito cachorro e pretendo criar muitos ainda.

Famosa, disputada, teve seus apaixonados. Um deles, em São Paulo, a apanhou no hotel, colocou-a num táxi, levou-a a passear pela cidade, enquanto a cortejava dizendo-lhe coisas doces. Ao passarem pelo Viaduto do Chá, Aracy saudou a paisagem, com ironia:

— Esta é a Ponte dos Suspiros.

Araca passou os seus derradeiros trinta anos sem gravar. E pouco cantava. Costumava repetir que o mingau estava grosso.
(Junho de 1989)

(1) Referência a um samba de autoria de Nilo Bom Cabelo, em que ele imitava a voz de Francisco Alves.
(2) ratatuia = corja, bando; gente mal-intencionada.
(3) gurufim = passatempo praticado durante os velórios de pessoas queridas (com jogos do anel e de adivinhações), típico dos morros do Rio de Janeiro.
(4) Vista Chinesa = ponto turístico na serra do Rio de Janeiro, com um quiosque em estilo chinês, e de onde se avista a baía da Guanabara; foi um recanto apreciado pelos namorados.
(5) queimar o pé (em) = beber muito.
(6) Referência à composição "As rosas não falam" que, gravada pela primeira vez em 1976, deu popularidade a Cartola ([...] "Queixo-me às rosas / Mas, que bobagem, as rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam / O perfume que roubam de ti" [...]).

Texto extraído do livro “Dama do Encantado”, Editora Nova Alexandria – São Paulo, 1996.
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João Antônio Ferreira Filho (1937-1996), nasceu de uma família de imigrantes portugueses de poucos recursos, na cidade de São Paulo (SP). Em 1949 publica seus primeiros contos no jornalzinho infanto-juvenil "O Crisol". Sem deixar de ler e escrever muito, em 1954 começa a freqüentar os salões de sinuca da cidade. Em 1958, ganha os concursos de contos da revista "A Cigarra" e do jornal "Tribuna da Imprensa", ambos do Rio de Janeiro. Inicia o curso de jornalismo. Em 1959, ganha o concurso de contos do jornal "Última Hora", de São Paulo. Os originais de seu livro "Malagueta, Perus e Bacanaço" são destruídos no incêndio de sua casa, em 1960. O livro só será publicado em 1963, totalmente reescrito. Ganha o Prêmio Fábio Prado e dois Prêmios Jabuti (revelação de autor e melhor livro de contos do ano). Muda-se para o Rio de Janeiro, para trabalhar no "Jornal do Brasil", em 1964. Em 1966 volta a São Paulo, onde fará parte da equipe criadora da revista "Realidade". Tem contos publicados na Alemanha, Venezuela e, naquela época, Tchecoslováquia. De volta ao Rio, em 1968, passa a colaborar com diversos jornais. Publica, em 1975, "Leão-de-chácara" (Prêmio Paraná de 1974) e "Malhação do Judas carioca". Edita o "Livro de cabeceira do homem" e cria a expressão "imprensa nanica" no jornal "O Pasquim". Ainda nesse ano, é agraciado com o Prêmio Ficção da APCA (SP). Em 1977, seu conto "Malagueta, Perus e Bacanaço" é adaptado para o cinema, recebendo o nome de "O jogo da vida". Outro prêmio: em 1983, seu livro "Dedo-duro" recebe o Troféu Calango do Prêmio Brasília de Ficção. Ganha também o Prêmio Pen Club. Nos mais de quinze livros que deixou mostra sua extrema habilidade em fundir a linguagem falada nas ruas e a escrita literária. Atuou intensamente na imprensa e foi um ardoroso defensor dos direitos do escritor no Brasil. Premiada, sua obra é objeto de análise dos mais importantes críticos literários brasileiros.

Outras obras do autor: "Casa de loucos" (1976), "Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de lima Barreto (1977), "Lambões de caçarola" (1977), "Ô, Copacabana" (1978), "Noel Rosa" (1988), "Meninão do caixote" (1983), "Dez contos escolhidos" (1983) e "Abraçado ao meu rancor" (1986).

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