domingo, 11 de julho de 2021

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXIV

ANDAVAM DE NOITE

 
Andavam de noite aos segredos
Só porque era noite...
Os bosques enchiam de medos
Quem quer que se afoite...

Diziam [?] palavras que pesam [?]
À sombra de alguém...
Ninguém os conhece, e passam...
Não eram ninguém...

Fica só na aragem e na ânsia
Saudade a fingir...
Foi como se fora distância...
Eu torno a dormir.
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A NOVELA INACABADA
 
A novela inacabada,
Que o meu sonho completou,
Não era de rei ou fada
Mas era de quem não sou.

Para além do que dizia
Dizia eu quem não era...
A primavera floria
Sem que houvesse primavera.

Lenda do sonho que vivo,
Perdida por a salvar...
Mas quem me arrancou o livro
Que eu quis ter sem acabar?
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A PÁLIDA LUZ DA MANHÃ DE INVERNO
 
A pálida luz da manhã de inverno,
O cais e a razão  
Não dão mais 'sperança, nem menos 'sperança sequer,  
Ao meu coração.
O que tem que ser  
Será, quer eu queira que seja ou que não.  

No rumor do cais, no bulício do rio  
Na rua a acordar  
Não há mais sossego, nem menos sossego sequer,  
Para o meu 'sperar.  
O que tem que não ser  
Algures será, se o pensei; tudo mais é sonhar.
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AQUI ESTÁ-SE SOSSEGADO
 
Aqui está-se sossegado,
Longe do mundo e da vida,
Cheio de não ter passado,
Até o futuro se olvida.
Aqui está-se sossegado.

Tinha os gestos inocentes,
Seus olhos riam no fundo.
Mas invisíveis serpentes
Faziam-a ser do mundo.
Tinha os gestos inocentes.

Aqui tudo é paz e mar.
Que longe a vista se perde
Na solidão a tornar
Em sombra o azul que é verde!
Aqui tudo é paz e mar.

Sim, poderia ter sido...
Mas vontade nem razão
O mundo têm conduzido
A prazer ou conclusão.
Sim, poderia ter sido...

Agora não esqueço e sonho.
Fecho os olhos, oiço o mar
E de ouvi-lo bem, suponho
Que veio azul a esverdear.
Agora não esqueço e sonho.

Não foi propósito, não.
Os seus gestos inocentes
Tocavam no coração
Como invisíveis serpentes.
Não foi propósito, não.

Durmo, desperto e sozinho.
Que tem sido a minha vida?
Velas de inútil moinho —
Um movimento sem lida...
Durmo, desperto e sozinho.

Nada explica nem consola.
Tudo está certo depois.
Mas a dor que nos desola,
A mágoa de um não ser dois
Nada explica nem consola.

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