BRASIL-REINO
7 de março de 1808. A nau Príncipe Real, com a flâmula azul branca panejando ao vento, entra galhardamente pela barra a dentro. Todos os tripulantes, sacudidos por áspero bombardeio de surpresas, derramam olhos escancarados sobre o panorama embebedante, único:
— Que lindo! Que lindo!
No ar que faísca, debaixo dum céu entontecedor, azul de Sêvres, o sol escachoa avanhandavas de ouro. E sob a luz fúlgida, dentro da sua virgindade selvagem, recorta-se em coloridos fortes a paisagem — maravilha, Águas e morros!
Tudo pródigo, tropical, cheirando a terra moça, ineditamente belo. Como pássaros verdes, papagaios enormes pousados à tona d’água, surge das espumas um bando arrepiado de ilhas. Que pitoresco! E toda gente, na amurada, a apontar com o dedo:
— É a "Rasa"!!
— A "Comprida!"
— A "Redonda"!
— Os "Dois Irmãos"!
— As "Palmas"!!
Ao longe, magnífico bugre americano, lá está o Gigante de Pedra, estendido no chão, tatuado, brônzeo, com a sua empolgante monstruosidade rústica. Além, encoscorado e bravio, caboclamente brasileiro, o Corcovado pintalga-se de mataria brava, a paulama enroscada no cipoal, os nhacatirões gritando pelo carnavalesco das flores. Acolá, esbeltíssimo, núncio da Terra Nova, o Pão de Açúcar arremessa nas nuvens, arrogantemente, o seu pico de pedra, que fura o céu.
E o Príncipe Real, enfeitado de bandeirolas e de galhardetes, rasga com bizarria a ondada mole.
As fortalezas da terra, avistando-o, içam as cores portuguesas. E sob o cascatear do sol, na alegria olímpica da manhã, estruge de súbito uma atroada frenética. É a salva real que estronda, cento e um tiros pipocando, sinos a carrilhonarem, roqueiras, estrépito de rojões, zabumbas, charangas, fogos de artifício que riscam o ar.
De todos os lados, às dezenas, já os escaleres engaivotam as águas crespas da baia. Remam com fúria, rumo da nau que entra. Um deles, leve barquito com grandes embandeirados, alcança-o logo. Chega-se ao casco. Tomba-lhe da amurada a escadinha de bordo. Sôfrego, os olhos chispando, sobe por ela um passageiro. É José Caetano de Lima. É o primeiro carioca que se embarafusta pela nau. Os tripulantes abrem alas. E o feliz morador do Rio de Janeiro, ao passar, corre uns olhos atordoados pelo bando suntuoso.
Quanta gente luzida! São todos fidalgos do mais velho sangue. As damas, em grande decote, os cabelos encaracolados, chapéus de plumas berrantes, faiscam de sedas e de pedrarias. Os cavalheiros, hirtos, espartilhados, as casacas azuis de riço claro, trazem o peito estrelado de crachás. Apenas, com um destoar chocante, vêm dum beliche gritos estranhos, gritos roucos de mulher presa:
— Não me matem! Não me matem!
O embarcadiço continua varando a ponte. Em meio da turba, por entre a mescla rutilante de fidalgos e fidalgas, destaca-se um casal muito grave, muito protocolar, de que os demais circunstantes se distanciam com respeito. Ele é gordo, muito rechonchudo, bochechas estufadas, olhos parados, de suíças. Ela é áspera, feições de homem, bigodes no lábio, pelos no rosto, pelos na mão, pelos por toda parte. Ele, o molengo é D. João VI; ela, a cabeluda, é D. Carlota Joaquina. São os regentes de Portugal.
José Caetano de Lima precipita-se para os dois. Tomba-lhes aos pés. Beija-lhes as mãos vitoriosamente: é o primeiro fluminense que, tonto de gozo, tem a ventura de prestar vassalagem aos fujões reais!! Do beliche soturno, porém, ecoa subitamente a estranha voz:
— Não me matem!
É D. Maria, a louca. É a rainha de Portugal que chega aos berros, encarcerada, enfunebrecendo a nau:
— Não me matem! Não me matem!
Assim, naquele dia gloriosamente radioso, por entre ribombos formidáveis, com espavento e gala, aportava ao Brasil, escorraçada por Napoleão Bonaparte, a família Real Portuguesa.
continua...
Fonte:
Paulo Setúbal. As maluquices do Imperador. Publicado em 1927.
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