segunda-feira, 12 de julho de 2021

Fernando Sabino (A Ironia do Destino)

— Vamos tomar um refresco.

Nunca fui muito assíduo às aulas e mal me lembrava dele. Mas já me pegava pelo braço e me arrastava com intimidade a uma confeitaria, depois de apresentar-me à esposa:

— Ele só aparecia nas provas. Hoje é escritor.

Era uma criatura de franja, olhos negros e esquivos, rosto de menina. Na confeitaria não deu uma palavra, enquanto o marido continuava relembrando um tempo que significava tão pouco para mim:

— E aquela prova de Constitucional?

Eu tomava rapidamente o refresco, para abreviar o encontro.

— Você não sabia que eu tinha me casado?

De repente eu me lembrava: seu namoro com uma colega nossa durante todo o curso, ficara noivo no último ano. Houvera até uma celebração entre os alunos... Mas não era aquela.

— Se você soubesse por que desmanchei o primeiro noivado...

E provou o refresco, para ganhar tempo. A mulher com rosto de menina mexeu-se na cadeira, constrangida. Ele percebeu, fez um gesto, disse que não tinha importância: eu era escritor, sabia compreender essas coisas.

E passou a contar por que desmanchara o noivado. O que a outra significava para ele: namorados desde meninos. Os pais haviam resolvido celebrar de uma vez o noivado, antes que as coisas se agravassem. O casamento seria assim que terminassem o curso. Ela com enxoval preparado, ele já com emprego garantido, o apartamento alugado, a mobília comprada. Foi então que alguém lhe sugeriu a ideia maldita: exame pré-nupcial. O médico o chamou a um canto para dizer que quanto ao mais tudo normal com ele, mas jamais teria filhos.

Olhei discretamente a mulher. Ela se distraía com o canudo do refresco, alheia a tudo.

— Eu disse que quanto ao mais tudo normal ...

Endireitou-se na cadeira para contar que procurou a noiva e deu-lhe a notícia. Que se havia de fazer? Podiam futuramente adotar uma criança. Essas coisas... Achou esquisita a reação dela: ficou séria, pediu prazo para pensar. E findo o prazo, veio dizer que sendo assim, sentia muito, mas preferia não se casar com ele.

— Fiquei arrasado. Nunca mais quis ouvir falar dela. Dela nem de mulher nenhuma. Pouco tempo depois soube que ela havia se casado com outro. Sete anos se passaram, veja a ironia do destino: sete anos se passaram e até hoje ela não teve um só filho. Ao passo que eu...

A mulher o interrompeu pela primeira vez:

— Meu bem, acho que está na hora de irmos.

— Ao passo que eu... — continuou ele, sem ouvir — ... um dia conheci esta aqui.

Contou como havia conhecido aquela ali. E como ficou de novo apaixonado, depois de sete anos! Mas dessa vez tinha sido mais prudente:

— Não procurei médico nenhum, não contei nada sobre o exame. Não foi isso mesmo, meu bem?

— Vamos, não é? — pediu ela, um pouco ansiosa: — Já está ficando tarde.

— E veja você como são esses médicos — prosseguiu ele. — Vivi sozinho esses anos todos, desiludido de mulher e de tudo mais só por causa do vigarista de um médico. Jamais teria filhos! Pois muito bem: me casei assim mesmo, não tem nem dois anos, e ela já está esperando um filho meu.

Sorriu, vitorioso, Voltando-se para a mulher. Senti que ela me dava um rápido olhar de expectativa. Como eu, imperturbável, não dissesse nada, abaixou modestamente os olhos.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Nenhum comentário: