As pedras são sólidas, visíveis, palpáveis, duras e estáticas - puramente matéria. As almas por sua vez, etéreas, fluidas, impalpáveis, invisíveis, não estáticas e puramente espírito.
Todavia, será que pode haver alguma relação entre estes dois elementos, apesar dos contrastes que os colocam em pontos opostos?
Pensando bem, até que pode, sim!
Tanto as pedras, como as almas, podem ser trabalhadas e modificadas pelo tempo e pelas ações. Ambas podem ser lapidadas, pacientemente cinzeladas, polidas e transformadas, com golpes brandos, por quem se empenhe em torna-las mais suaves, a evitar que as contundências da vida, às marteladas e a duras penas, acabem por lhes vencer a resistência.
Mas... se as pedras nada sofrem com isto, evidentemente as almas, quanto mais se debatam, tanto mais se rebelem, maiores sofrimentos irão encontrar pela frente!
Podem as pedras esboroar-se antes de assumirem novas formas, como também acontece com certas almas empedernidas que, cegas à razão, preferem rachar a se deixarem modificar. São as chamadas almas de pedra, que sofrem estoicamente vergastadas por ventos maus, que as fustigam, sem conseguir modela-las, quer com a desejável brandura da brisa, quer com a rude tenacidade de um implacável martelo bate estacas.
Aquele homem rústico, cara fechada, passos firmes, para quem os portões que o mantinham prisioneiro abriam-se agora magnânimos para que pudesse passar o Natal junto à mulher e filhos, já sofrera bastante! Sofrera, sim, mas sua alma, rija como um paralelepípedo, resistira aos golpes recebidos, sem perder a agressividade dos contornos esculpidos a cada nova infração. Sempre à mercê das marteladas contínuas, ônus das culpas assumidas, e sem mostrar qualquer arrependimento.
Em casa, abraçou a mulher com ternura imprevisível, provando que os brutos também têm sentimentos! As filhas pequeninas, duas gatinhas saudosas do calor paterno, enroscaram-se em suas pernas, pedindo carinho. Após a emoção da chegada, a pergunta do pai saltou espontânea;
- E o moleque... por onde anda?! - captou, no olhar escamoteado e na gagueira da resposta da esposa, que alguma coisa não andava bem.
- Ah... o Valtinho... esse anda por aí... pensa que já é home... nem dá mais satisfações...
- Péra aí... não é assim, não!... Esse moleque não tem nem quinze anos... e já qué sê fazê di gente?! Ele não sabia que o pai táva chegando?!
- Sabia, sim... é que ele ia fazê num sei quê... num sei aonde... tarvez demore pra chegá... si é que chega... Inda hoje...
O final da frase... reticente... apenas sussurrado, dava chão às desconfianças.
A angústia estampada no rosto daquela mãe e a descontração mal simulada, denunciadas pelo olhar fugidio, eram janela aberta a dar acesso ao que, em vão, ela procurava ocultar. A suspeita agigantou-se, transformada em ameaça.
- Não mente, não, Maria, que eu não engulo!... me diz duma vez... o que está acontecendo c 'o moleque?! - As mãos rústicas do marido sacudiram a mulher pelos ombros, com rudeza que exigia a verdade: - Desembucha logo, muié! Não me engana não!... Tu sabe que eu não tolero enganação!
Cara lavada de lágrimas, a pobre mãe explodiu em soluços: – ...O Valtinho tá preso! - gaguejou - ele andô aprontando por aí... metido com droga... roubando... brigando... Uns poco dias atrais... Sabe aquele canivete que tu deu pra ele? Pois ele pegou lá na gaveta e acabô furando o filho daquele bandido que tem cara de cangacêro... Aquele que tu bem conhece... e.. daí... Daí...o bandido jurô de cruiz qui vai acabá co nosso minino! - despejou tudo como água de rio que, sem encontrar chão, desaba cachoeira abaixo. Tentou amenizar a queda, acrescentando
- Inté qui é bom qui o moleque fique detido por mais uns tempo... O delegado disse que é mais seguro... E perciso dexá a reiva do home esfriá...sinão, pode até acuntecê uma disgraça! Ele é bandido!! Tu sabe, home!!! Tu sabe!!!
O desabafo saiu de supetão, como se aquela pobre mãe desejasse livrar-se dele o mais depressa possível. Sentiu-se aliviada ao jogar fora o peso da culpa que, calada, a manteria cúmplice do drama.
Os punhos daquele homem fecharam-se com violência. Um gemido rouco, misto de dor e ódio, saltou-lhe da garganta lembrando bicho ferido! Nem toda a oportuna clemência com que julgava e absolvia os próprios atos impediu-lhe a revolta. Ele poderia fazer o que bem quisesse! Era homem consciente do que fazia... tanto certo quanto errado! E respondia pelos atos feitos! Mas... o filho, não!... Valtinho era uma criança!... Uma criança, sim... nada mais do que uma criança! Brincava de ser bandido! Mas não era um bandido! E nunca haveria de ser!.,. Precisava manter o nome limpo! Fosse o pai dele o que fosse... o filho tinha que ser um homem de nome respeitável... sem mancha!
Homem como ele mesmo um dia pretendera ser... embora a vida não tivesse deixado que isso acontecesse! Mas... isso não tinha nada a ver com o seu garoto! Nada de misturar os dois no mesmo tacho! Pai é pai! Filho é filho! Cada um na sua!
Desenroscou as filhas das pernas e saiu de casa como um corisco, largando faíscas por todo lado, rumo à Delegacia. Nem bem chegado à Praça da Matriz, percebeu o tumulto. O povo grudara alguém que estrebuchava no chão, mercê de chutes e safanões! Reconheceu na vítima o bandido que jurara de morte o filho. Cresceu-lhe no peito o horror da suspeita! A voz saiu sussurrada e cheia de veneno, ao indagar:
- Que é que esse bandido fez?! - A resposta aterrou-o:
– Deu duas facadas num pivete! O garoto ia pra casa, esperar o pai, indultado como ele - os dois saídos da cadeia pra passar o Natal com a família... Covarde!! - novo chute na vítima completou a frase.
Consumido pela dor, aquele pai arriscou outra pergunta, mais temeroso da própria imaginação do que da resposta que viria de volta...
- O garoto... morreu? - indagou num fio de voz... logo engrossado pelo desespero ao reforçar a pergunta quase aos gritos: - O meu minino morreu?!...
Alguém tentou explicar:
- A ambulância levou o rapaz para o hospital... perdeu muito sangue... não sei não... se vai aguentar...
Aquele homem rústico não pensou em mais nada. Esqueceu até a chance de vingança que o acaso lhe oferecia! As pernas ligeiras, aceleradas pela ansiedade, não o abandonaram. Quase sem fôlego, chegou ao não distante Pronto Socorro, onde entrou estabanado... sendo imediatamente barrado;
- Epa!... aonde pensa que vai?! Aí não pode entrar, não! Aguarde o chamado!
- Meu filho está mal... precisa de mim! Me déxe passá, pelo amor de Deus! Ele está morrendo!! Quem sabe, até já teje morto! Me dêxe entrá!!!! - O tom da súplica final já era quase uma ordem... e temível!
A angústia estampada no rosto daquele homem rude, determinado a não respeitar barreiras, desfez qualquer entrave. Envolto em lençóis ainda tintos de sangue, o garoto, pálido, quase em colapso, reanimou-se ao vê-lo... sorrindo seraficamente como se visse Deus estampado na cara daquele pai!
O médico que o atendia exultou: - O senhor é o pai?! Ótimo! Qual é o seu tipo de sangue?
- Não sabe ?! Mas... vamos saber já, já! E a resposta não tardou:
- Perfeito! Não foi nada grave, não!... Sossegue!... Houve apenas uma grande perda de sangue… e esse sangue precisava ser reposto. Chegou na hora certa, amigo! Posso dizer-lhe que salvou a vida do seu filho!
A frase mágica do médico, que o chamara de amigo, ficou por largo tempo a cantar nos ouvidos daquele homem abatido, não só pelo susto, mas pelos remorsos também!
As palavras do médico devolviam-lhe a autoestima, ao conscientizá-lo de que resgatara a vida do filho... para ele, quase morto! Incorporou a frase à própria vida - tão valiosa quanto uma condecoração, que haveria de honrar até a morte!
O péssimo histórico de mau pai - sempre ausente e sangue ruim - pesava-lhe ainda na consciência, já que, em última análise, quase lhe roubara o filho!
Mas, agora, a coisa era bem diferente - Aquele mesmo sangue-ruim, de pai-bandido, acabara de salvar a vida do seu garoto!
Autoabsolvido, inflou o peito... sentindo-se herói!
Chamuscadas pela fogueira da desgraça, as almas daquelas duas Phoenix, pai e filho, renasciam das mesmas cinzas!
No entanto, ainda réus, ambos tinham contas a acertar com a Justiça.
Por conta disto, lá ficaram retidos, por mais algum tempo, aqueles dois rudes paralelepípedos, a serem dimensionados e rigorosamente esculpidos, para melhor encaixe na pavimentação do Amanhã.
Todavia, será que pode haver alguma relação entre estes dois elementos, apesar dos contrastes que os colocam em pontos opostos?
Pensando bem, até que pode, sim!
Tanto as pedras, como as almas, podem ser trabalhadas e modificadas pelo tempo e pelas ações. Ambas podem ser lapidadas, pacientemente cinzeladas, polidas e transformadas, com golpes brandos, por quem se empenhe em torna-las mais suaves, a evitar que as contundências da vida, às marteladas e a duras penas, acabem por lhes vencer a resistência.
Mas... se as pedras nada sofrem com isto, evidentemente as almas, quanto mais se debatam, tanto mais se rebelem, maiores sofrimentos irão encontrar pela frente!
Podem as pedras esboroar-se antes de assumirem novas formas, como também acontece com certas almas empedernidas que, cegas à razão, preferem rachar a se deixarem modificar. São as chamadas almas de pedra, que sofrem estoicamente vergastadas por ventos maus, que as fustigam, sem conseguir modela-las, quer com a desejável brandura da brisa, quer com a rude tenacidade de um implacável martelo bate estacas.
Aquele homem rústico, cara fechada, passos firmes, para quem os portões que o mantinham prisioneiro abriam-se agora magnânimos para que pudesse passar o Natal junto à mulher e filhos, já sofrera bastante! Sofrera, sim, mas sua alma, rija como um paralelepípedo, resistira aos golpes recebidos, sem perder a agressividade dos contornos esculpidos a cada nova infração. Sempre à mercê das marteladas contínuas, ônus das culpas assumidas, e sem mostrar qualquer arrependimento.
Em casa, abraçou a mulher com ternura imprevisível, provando que os brutos também têm sentimentos! As filhas pequeninas, duas gatinhas saudosas do calor paterno, enroscaram-se em suas pernas, pedindo carinho. Após a emoção da chegada, a pergunta do pai saltou espontânea;
- E o moleque... por onde anda?! - captou, no olhar escamoteado e na gagueira da resposta da esposa, que alguma coisa não andava bem.
- Ah... o Valtinho... esse anda por aí... pensa que já é home... nem dá mais satisfações...
- Péra aí... não é assim, não!... Esse moleque não tem nem quinze anos... e já qué sê fazê di gente?! Ele não sabia que o pai táva chegando?!
- Sabia, sim... é que ele ia fazê num sei quê... num sei aonde... tarvez demore pra chegá... si é que chega... Inda hoje...
O final da frase... reticente... apenas sussurrado, dava chão às desconfianças.
A angústia estampada no rosto daquela mãe e a descontração mal simulada, denunciadas pelo olhar fugidio, eram janela aberta a dar acesso ao que, em vão, ela procurava ocultar. A suspeita agigantou-se, transformada em ameaça.
- Não mente, não, Maria, que eu não engulo!... me diz duma vez... o que está acontecendo c 'o moleque?! - As mãos rústicas do marido sacudiram a mulher pelos ombros, com rudeza que exigia a verdade: - Desembucha logo, muié! Não me engana não!... Tu sabe que eu não tolero enganação!
Cara lavada de lágrimas, a pobre mãe explodiu em soluços: – ...O Valtinho tá preso! - gaguejou - ele andô aprontando por aí... metido com droga... roubando... brigando... Uns poco dias atrais... Sabe aquele canivete que tu deu pra ele? Pois ele pegou lá na gaveta e acabô furando o filho daquele bandido que tem cara de cangacêro... Aquele que tu bem conhece... e.. daí... Daí...o bandido jurô de cruiz qui vai acabá co nosso minino! - despejou tudo como água de rio que, sem encontrar chão, desaba cachoeira abaixo. Tentou amenizar a queda, acrescentando
- Inté qui é bom qui o moleque fique detido por mais uns tempo... O delegado disse que é mais seguro... E perciso dexá a reiva do home esfriá...sinão, pode até acuntecê uma disgraça! Ele é bandido!! Tu sabe, home!!! Tu sabe!!!
O desabafo saiu de supetão, como se aquela pobre mãe desejasse livrar-se dele o mais depressa possível. Sentiu-se aliviada ao jogar fora o peso da culpa que, calada, a manteria cúmplice do drama.
Os punhos daquele homem fecharam-se com violência. Um gemido rouco, misto de dor e ódio, saltou-lhe da garganta lembrando bicho ferido! Nem toda a oportuna clemência com que julgava e absolvia os próprios atos impediu-lhe a revolta. Ele poderia fazer o que bem quisesse! Era homem consciente do que fazia... tanto certo quanto errado! E respondia pelos atos feitos! Mas... o filho, não!... Valtinho era uma criança!... Uma criança, sim... nada mais do que uma criança! Brincava de ser bandido! Mas não era um bandido! E nunca haveria de ser!.,. Precisava manter o nome limpo! Fosse o pai dele o que fosse... o filho tinha que ser um homem de nome respeitável... sem mancha!
Homem como ele mesmo um dia pretendera ser... embora a vida não tivesse deixado que isso acontecesse! Mas... isso não tinha nada a ver com o seu garoto! Nada de misturar os dois no mesmo tacho! Pai é pai! Filho é filho! Cada um na sua!
Desenroscou as filhas das pernas e saiu de casa como um corisco, largando faíscas por todo lado, rumo à Delegacia. Nem bem chegado à Praça da Matriz, percebeu o tumulto. O povo grudara alguém que estrebuchava no chão, mercê de chutes e safanões! Reconheceu na vítima o bandido que jurara de morte o filho. Cresceu-lhe no peito o horror da suspeita! A voz saiu sussurrada e cheia de veneno, ao indagar:
- Que é que esse bandido fez?! - A resposta aterrou-o:
– Deu duas facadas num pivete! O garoto ia pra casa, esperar o pai, indultado como ele - os dois saídos da cadeia pra passar o Natal com a família... Covarde!! - novo chute na vítima completou a frase.
Consumido pela dor, aquele pai arriscou outra pergunta, mais temeroso da própria imaginação do que da resposta que viria de volta...
- O garoto... morreu? - indagou num fio de voz... logo engrossado pelo desespero ao reforçar a pergunta quase aos gritos: - O meu minino morreu?!...
Alguém tentou explicar:
- A ambulância levou o rapaz para o hospital... perdeu muito sangue... não sei não... se vai aguentar...
Aquele homem rústico não pensou em mais nada. Esqueceu até a chance de vingança que o acaso lhe oferecia! As pernas ligeiras, aceleradas pela ansiedade, não o abandonaram. Quase sem fôlego, chegou ao não distante Pronto Socorro, onde entrou estabanado... sendo imediatamente barrado;
- Epa!... aonde pensa que vai?! Aí não pode entrar, não! Aguarde o chamado!
- Meu filho está mal... precisa de mim! Me déxe passá, pelo amor de Deus! Ele está morrendo!! Quem sabe, até já teje morto! Me dêxe entrá!!!! - O tom da súplica final já era quase uma ordem... e temível!
A angústia estampada no rosto daquele homem rude, determinado a não respeitar barreiras, desfez qualquer entrave. Envolto em lençóis ainda tintos de sangue, o garoto, pálido, quase em colapso, reanimou-se ao vê-lo... sorrindo seraficamente como se visse Deus estampado na cara daquele pai!
O médico que o atendia exultou: - O senhor é o pai?! Ótimo! Qual é o seu tipo de sangue?
- Não sabe ?! Mas... vamos saber já, já! E a resposta não tardou:
- Perfeito! Não foi nada grave, não!... Sossegue!... Houve apenas uma grande perda de sangue… e esse sangue precisava ser reposto. Chegou na hora certa, amigo! Posso dizer-lhe que salvou a vida do seu filho!
A frase mágica do médico, que o chamara de amigo, ficou por largo tempo a cantar nos ouvidos daquele homem abatido, não só pelo susto, mas pelos remorsos também!
As palavras do médico devolviam-lhe a autoestima, ao conscientizá-lo de que resgatara a vida do filho... para ele, quase morto! Incorporou a frase à própria vida - tão valiosa quanto uma condecoração, que haveria de honrar até a morte!
O péssimo histórico de mau pai - sempre ausente e sangue ruim - pesava-lhe ainda na consciência, já que, em última análise, quase lhe roubara o filho!
Mas, agora, a coisa era bem diferente - Aquele mesmo sangue-ruim, de pai-bandido, acabara de salvar a vida do seu garoto!
Autoabsolvido, inflou o peito... sentindo-se herói!
Chamuscadas pela fogueira da desgraça, as almas daquelas duas Phoenix, pai e filho, renasciam das mesmas cinzas!
No entanto, ainda réus, ambos tinham contas a acertar com a Justiça.
Por conta disto, lá ficaram retidos, por mais algum tempo, aqueles dois rudes paralelepípedos, a serem dimensionados e rigorosamente esculpidos, para melhor encaixe na pavimentação do Amanhã.
Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.
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