sexta-feira, 9 de julho de 2021

Carolina Ramos (Catatau)

Chuvinha fina, persistente... gelava até os ossos. Encolhidos sob a marquise urbana, os três garotos conversavam, sentados num degrau de pedra:

Então, Catatau... vê se resolve duma veiz! Tu vai ou não vai c'a gente?!

O guri, encolhido entre os dois maiores, encolheu-se um pouco mais, ainda indeciso. Era o mais novo, mais franzino e também o mais assustado de todos.

Tu vai? Ou qué ficá morando aqui na rua... sozinho... Diz!

Duas cotoveladas fizeram com que a resposta saltasse mais pronta que a disposição do menino.

– AH... tá bom... tá bom... eu vô, sim!

– Tá certo, Catatau, tu não vai se arrepende, não! A gente vai conhece o mar. Lá embaixo, não existe frio! Tem sempre sol! A areia é fofa... quentinha... Tu vai vê, a gente nem vai precisá dos coberto que as muié deram. Prá durmi é só fazê um buraco e se cobri com a areia quentinha... e o mar, ali pertinho... vai cantá a noite interinha, sem pará... chuá... chuá...

– Tô cum fome!

Guenta, Catatau, eles vão trazê cumida... Tão chegando!

Cada farol de carro que cortava a escuridão aumentava a expectativa.

Toma, chêra isto. É bom. Ajuda a enganá a fome.

A cola de sapateiro correu, mão em mão... e foi parar na de Catatau.

Posso cumê um pedacinho?

Tá lôco, Catatau! Num vê que isso é só prá cherá, rapaiz?...

A porta abriu-se, tão logo o veículo encostou-se ao meio fio. Sem perda de tempo, Juca e Zinho acomodaram-se no carro, a disputar lugar com o próprio corpo. Outros garotos e seus cobertores já estavam instalados, ansiosos por partir.

Catatau ainda permanecia de fora, enrolado na sua manta, a ponta da mesma enfiada na boca - chupeta improvisada. Embora tentado, lutava intimamente contra as amarras da indecisão.

Vem, logo, cara... dêxa de sê bobo, moleque! – estrilou o Zinho.

Sem mais fazer-se de rogado, Catatau deixou a bobice de fora e entrou no carro... cobertor sujo a arrastar atrás de si mais sobras das sujeiras ambientais.

Acomodou-se como pôde no espaço mínimo que lhe foi concedido,

Vocês estão limpos? – indagou voz adulta vinda do primeiro banco.

Se tiverem alguma sujeira nos bolsos...favor ir jogando fora tudinho... ou ninguém sai daqui.

A cola de sapateiro saltou pela janela do carro... algumas bitucas de cigarro também e... sabe-se lá mais o quê!

O carro partiu em seguida.

Um calorzinho gostoso... emprestado pelo contato de outros corpos, percorreu os membros de Catatau, produzindo uma sensação de bem-estar... apenas não perfeita por conta daquela fome.

Pedaço de pão, sem manteiga, e uma banana chegaram-lhe às mãos, não antes que outras mãos afoitas tentassem se apossar do lanche. Atenta, a voz de novo avisou:

Ei... vocês já comeram! Calminha gente! Agora é a vez deles!

Desceram a serra ligeirinho... sem quase dizer palavra. Névoa branca, preenchendo os bolsões do abismo... curvas aconchegando... ora pra cá, ora pra lá, num balanço de maré, que embrulhava o estômago.

Quem conduzia e quem os conduzidos era o que menos importava. Lá embaixo, o colar de luzes demarcava limites. De um lado, o casario iluminado a guardar no íntimo histórias sem conta. Do outro, a escuridão insondável do oceano - misterioso caminho plenamente aberto para o desconhecido.

A imaginação do menino galopava, embora sono pesado lhe derrubasse as pálpebras!

Tão bom se pudesse mergulhar naquelas piscinas de névoa branca, macias como nuvens de algodão!

Varreu a ideia... - Impraticável! Valia esperar pelo mergulho nas espumas salgadas daquele mar que lá embaixo o esperava aquecido pelo sol. Faltava tão pouco! A cabeça latejava. A testa ardia.

Alguém vomitou... solidário, vomitou também. E a voz alertou:

Olha essa sujeira aí atrás... joguem jornais por cima...

O fedor penetrante do vômito engulhou mais o estômago do menino. Guardou o pão que sobrara. Perdera a fome!

Em breve, o cheiro de lona de freio queimada anunciava o fim da serra, Cubatão... Alemoa... Não demorou para que o carro chegasse ao lado da Rodoviária santista e, dobrando à esquerda, despejasse a carga humana num beco escuro logo adiante.

A voz avisou novamente:

Dispersem-se... e... depressa... ou logo estarão de volta ao lugar de onde saíram.

Pequenos vultos, enrolados em cobertores doados, esgueiraram-se a correr por todas as direções, parecendo minúsculos duendes fugidos à realidade.

Catatau, sempre indeciso, sentiu-se só. Chamou, sussurrante:

Zinho... Juca.... ondé qui vocês tão?!

Não obteve resposta. A "perua" partira. Restavam no solo jornais empesteados de vômito a envolver sonhos amarrotados.

O garoto resignou-se. Tinha que contar consigo mesmo. Teve vontade de chorar e gritar pela mãe. Mas a voz... tão sem forças, não tinha condição de chegar ao céu... tão distante! Engoliu as lágrimas. De que valiam?! Precisava, isto sim, arranjar um canto para passar a noite.

O frio, úmido, subia-lhe pelos pés descalços a tolher-lhe as pernas finas. E ainda diziam que em Santos não fazia frio! A chuva, agora mais grossa, encharcava-lhe os ossos.

Escolheu um canto menos molhado debaixo do viaduto. Já havia gente acomodada por ali. Ninguém ligava para ninguém!

Catatau enovelou-se, encolhendo o corpo até sentir os joelhos roçarem-lhe o queixo. Com a ponta da língua provou a lágrima que lhe descia pela face - o mar deveria ter aquele mesmo gosto de sal!

Empelicou-se no cobertor, imóvel como ave dentro do ovo, com medo de quebrar a casca. Divagou: - E a praia? Estaria longe... ou logo ali...?! Quando a luz do dia o despertasse, correria para ela.

Parecia até já ouvir o chuá daquela aguera toda, espumante e salgada, a embalá-lo em seu vaivém... a cantar para que dormisse depressa.

Tremeu de frio ainda por algum tempo. A coberta úmida não lhe proporcionava conforto. Aos poucos, pernas e braços pareciam anestesiados. Precisava dormir para o tempo passar depressa. Amanhã, iria conhecer o mar... Aquele mar ainda escondido no bolso da noite... tão escuro e tão frio quanto ela. Enterraria os pés gelados na areia fofa... Enterraria as mãos, os braços, as pernas, o corpo inteiro, naquela "fofura"... morninha de sol!...

Um torpor estranho foi tomando conta daquele corpo franzino. Catatau mergulhou no sono como quem mergulha de ponta cabeça numa nuvem de algodão. E não sentiu mais frio... E não sentiu mais fome... e nem aquela pontada nas costas, doida pra caramba!, que desde o dia anterior não o deixava respirar direito, fazendo-o tossir. Seus olhos foram se fechando devagarinho... Catatau adormeceu... E não acordou mais!

Uma semana depois, novos "catataus" chegavam numa outra "perua", enrolados nos seus cobertores encardidos.., Famintos e friorentos, como sempre!

E, como sempre, cheios daquela poética ansiedade de conseguir mergulhar os pés naquele marzão imenso e provar o gosto que ele tem...pra saber se aquela "aguêra" toda era mesmo salgada... Logo a comprovar que o mar também guardava dentro dele aquele mesmo gosto amargo que toda lágrima tem.

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

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