sexta-feira, 9 de julho de 2021

Júlia Lopes de Almeida (A valsa da fome)

Quando o pianista Hipólito entrou na sala, houve um sussurro de contentamento. Era preciso romper aquela monotonia, as moças estavam mortas por dançar.

Dentro de uma velha casaca ensebada, com o pescoço hirto e as grandes mãos balançantes, ele dirigia-se para o piano a largos passos, com as narinas dilatadas e o queixo muito agudo, cortando o caminho como uma proa de navio virada para o porto desejado.

Houve quem risse; ele era tão magro, ia tão amarelo e com tão viva chama nos olhinhos pretos, que uma senhora, uma dessas senhoras espirituosas e amigas de fazer comparações, perguntou a um amigo:

– Quem teria tido o esquisito gosto de vestir de homem aquela tocha funerária?

Logo o interrogado, rapaz gordo, metido a literato, com o peito florido por uma gardênia imaculada, respondeu:

– A fome. Foi a fome que lhe envergou aquela casaca pré-histórica e lhe amarrou ao pescoço, com verdadeira gana de o enforcar, aquela gravata branca. Só ela, a maligna, o faria entrar neste salão burguês para divertir as moças. Porque, fique sabendo a minha senhora e amiga, aquilo que está ali é um artista. A fome tem muita força para trazer um animal daqueles, todo nervos, para um lugar destes. Só pelo freio!

– Oh!

– Não se escandalize e repare-lhe para a nodosidade dos dedos. Valentes, formidáveis, não? Pois vai ver: roçam pelo teclado como uma ponta de asa pela superfície de um lago. Hão de me agradecer o tê-lo trazido cá...

– Ah, foi o senhor...

– Fui eu; por um acaso... Imagine que fui homem encarregado de contratar o pianista para a festa, e que só hoje, à última hora, me lembrei da incumbência!

– Sempre o mesmo! Aquele senhor então, veio remediar uma falta...

– E preencher uma lacuna. Com duas palavras vou fazê-la interessar-se por ele. Tinham-me dito que o Hipólito, chama-se Hipólito, vendera o piano há cerca de uns seis meses, para fazer o enterro à irmã, única pessoa da família que lhe restava ainda, e que morreu de penúria com outras complicações... Conheci-a, era um lírio; tanto este é de bronze como a outra era de cristal. Amavam-se como nunca vi; ele tocava-lhe as suas composições e ela entendia-o, ia até ao fundo do seu pensamento, numa admirável intuição de arte, toda feliz, toda orgulhosa daquele irmão. Através do seu corpo diáfano, como que se lhe via a alma iluminada e radiante. Era muito branquinha, muito branquinha... Pobre pequena! Desde que ela morreu sumiu-se o Hipólito.

Naturalmente, por mais que ele nos divertisse e nos fizesse falta, não o quisemos perturbar na sua mágoa. Compreendo que para um homem não há amor tão doce como o de uma irmã, nem que maior saudade possa deixar... Perdi assim de vista o meu maestro, até que, desabituado, não me tornei a lembrar dele, quando hoje, de repente, na ocasião mesmo em que eu me esbaforia atrás de um pianista para a soirée* da minha tia, encontrei-o cabisbaixo, contemplando as ruínas dos botins.

Pareceu-me um santo; agarrei-o com a possível veneração e fiz-lhe a minha súplica com tal ardor que ele acedeu trêmulo, numa ansiedade febril, titubeando:

– Há seis meses que não toco, desde que ela morreu... sabe? Não tenho piano, não frequento casas de música. Cavo a vida por outros modos... mas estou com saudades, muitas saudades!

Tinha a boca seca, sentiu-lhe o hálito ardente; convidei-o para tomar um chope.

– Não; tenho medo, respondeu-me. Estou com fome.

– Mais uma razão para ires tocar à casa da minha tia, respondi–lhe. Lá matarás a fome a peru trufado e as saudades do piano num excelente Bechstein**. Se não fosse tão tarde... Tens casaca?

– Não tenho nada.

– Há aí umas casas que alugam disso. Apressa-te; às dez horas deve romper a primeira valsa e já são oito. Toma o dinheiro para a casaca; comerás lá em casa. Foi tudo o que eu disse, à pressa, pensando em ir preparar-me também. E ele arranjou-se, não sei em que guarda-roupa, mas com uma brevidade que me espanta, visto que eu começava a temer... Sim, com dinheiro no bolso, em vez da casaca ele tinha razões de esfomeado para dar preferência a um jantar de restaurante. Não lhe parece?

– Parece. Vê-se que gosta mais de contentar a alma do que de satisfazer o estômago.

– Artista. Depois da primeira valsa vou fazê-lo cear... Por Deus! adoro estas organizações!

– Tem um certo sabor, a sua história; mas agora diga-me com franqueza, não receia que esse senhor heroico nos toque uma marcha fúnebre em vez de uma contradança? Olhe para ele!

– E a senhora ri-se!

Hipólito sentava-se. As abas da casaca pendiam-lhe murchas e amarrotadas, como duas asas de urubu doente. As suas mãos trigueiras, que o exercício do teclado desenvolvera, caíram sobre o marfim do piano num gesto ávido, de posse. O busto ossudo e longo arquejou-lhe num soluço abafado e duas lagrimazinhas ardentes subiram-lhe aos olhos áridos. Ninguém as viu; todo dentro de si, ele escutava, maravilhado, os sons que ia ferindo e que se seguiam em revoada, como um bando de aves libertadas de repente de uma clausura longa...

Rolaram notas macias, num prelúdio que foi como que uma carícia por todas as teclas, e desse prelúdio nasceu uma valsa, ora ritmada em graves, ora desdobrada em arpejos que iam e vinham num movimento doce e embalador.

Atrás dele já rodopiavam os pares. Carnes acetinadas, dos colos e dos braços nus, iluminadas pela poeira lúcida da brilhantaria, roçavam palpitantes o áspero pano das casacas. Ia crescendo o número de pares. Manchas azuis, rosas, brancas e violáceas giravam diáfanas, ora aqui ora ali, como nuvens do crepúsculo balouçadas pelo vento.

Inebriado, num gozo estático, Hipólito admirava-se que o piano obedecesse ainda tão bem aos seus dedos nervosos e à sua inspiração. A saudade da arte, a saudade dolorosa que havia tanto o pungia, desafogava-se enfim! Seria um sonho aquilo? Nunca a sua imaginação fora tão fresca nem tão abundante. O repouso dera-lhe novas forças; o sofrimento subtilizara-a.

Assim, Hipólito abstraía-se; ia perdendo pouco a pouco a noção do lugar.

A valsa seguia o seu curso, criando a cada compasso novos motivos, que, nascendo uns dos outros, se avolumavam de pequeninas fontes em cascatas, onde as melodias flutuavam como flores na torrente para se submergirem em harmonias, compactas e nunca repetidas.

E como aquela saudade não se contentava, a música era infindável. Algumas pessoas paravam extenuadas, mas vinham logo outras; dançava-se sempre, até que vozes impacientes gritaram:

– Basta! basta!

Não bastava. O artista, insaciado, não ouvia ninguém. Todo curvado, anelante, com os joelhos pontudos erguidos alternadamente pelo movimento dos pedais, os cotovelos magros unidos ao corpo trêmulo, as mãos enormes, ora leves como plumas, ora pesadas como ferro, na brancura do marfim, ele aspirava entontecido aquela música nascida do seu cérebro e da sua alma, tal como se ela fosse um aroma intenso que o perturbasse e ainda assim quisesse absorver.

Todos na sala olhavam para ele com pasmo, na vaga percepção de um mistério divino. Já nenhuma voz dizia: – basta! os lábios entreabriam-se de espanto, mas em silêncio.

Que música nova seria aquela, onde os sons borbulhavam num fervor contínuo, marulhando como a onda ou rompendo em remígios de aves gorjeadoras? Que música seria aquela, para levar de roldão, no leve compasso da valsa, risos e agonias, badaladas de sinos, frases de loucos e suspiros de amor?

Na densa espiritualidade daquele poema, sentia-se ofegar uma ânsia irrequieta, humana, de perfeição. O suplício de a atingir arrastava-se como um desejo eterno, sem esperança...

Pálido, convulso, sem sentir a fome que o dilacerava, o pianista agitava-se, transfigurado, com os olhos lacrimosos e a fronte enluarada. Dos seus dedos, fortes como raízes nodifloras, desabrochavam cachos de modulações, e ele vergava-se todo, como se por vezes quisesse beijar o piano.

Havia mais de uma hora que durava aquela valsa, e Hipólito tocava sempre exuberante, num alheamento místico, de sonho. Tocava já sem as blandícias dos primeiros compassos, já sem os esboços fugazes de motivos em sucessivo abandono, mas num esforço de vitória suprema, num desdobramento febril de sons que faziam do piano uma orquestra e da valsa uma marcha de triunfo.

Levantaram-se todos, lívidos de espanto. A solenidade daquela loucura, e a concepção de uma obra de arte e sua simultânea execução produziam em toda a gente o arrepio do gozo e o silêncio do pasmo.

Arquejante, surpreendido pela magnificência da sua criação, Hipólito, desvairado, alterou o compasso, desenvolvendo um trecho de sonoridades amplas, numa alegoria à Glória, digna de uma cantata.

Sem ver ninguém, ele recebia o influxo da admiração de todos.

As luzes irradiavam como o sol, a atmosfera carregada de aromas entontecia-o, e a fome estorcegava-lhe o estômago, fazendo-lhe escorrer pelas costas e os membros um suor de vertigem.

Não podia mais, vinha o cansaço, os pulsos amoleciam-se-lhe, uma nuvem escura ia-lhe a pouco e pouco toldando a vista... Feliz, naquela reconquista, ele teimava, teimava, cada vez mais fraco, já inconsciente, com os dedos erradios no teclado, de que levantava agora uma revoada de sons alucinados e confusos. Reaparecia o ritmo da valsa arrastando harmonias desacordes, nascidas ao acaso das mãos bambas...

O auditório que o aclamara começava a rir, ao princípio baixinho, depois mais alto, mais alto, até à gargalhada franca e brutal, quando, repentinamente, se calou assustado.

O rapaz da gardênia, com os olhos cheios de água, correu a acudir a Hipólito, que desmaiara sobre o piano.
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* Reunião social que acontece à noite.
** Marca alemã de piano.


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

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