sexta-feira, 30 de julho de 2021

Rachel de Queiroz (O Menino e o Caravelle)

Os OLHOS DO MENINO pareciam duas estrelas; ‘‘Caravelle!’’ Para ele é uma palavra mágica, a era do jato depois da era da hélice, Do jeito que ele fala, parece que avião a hélice é coisa tão obsoleta como carro de boi. Nos tipos obsoletos ele já viajou outrora — precisamente no ano passado. Agora sobe a escada, penetra na nave com emoção inaugural — ele que só estava acostumado a lhe seguir com a vista as linhas paralelas de fumaça, riscando o céu.

Exigiu que nos sentássemos logo no primeiro par de poltronas; era talvez para se sentir mais perto do próprio coração da nave (coração ou cabeça?), o santuário misterioso dos pilotos. Afivelou cuidadosa e lentamente o cinto de segurança, como um ritual. Defronte a nós a aeromoça se sentou no seu banquinho e ela também afivelou o seu próprio cinto. Vestia uniforme vermelho de bolero e o menino, com o olho estendido que lhe dá a TV para esses assuntos, perguntou baixinho: — Isso é roupa de desfilar? 

Não, esqueço. Antes de apertar o seu cinto para a decolagem, a aeromoça veio oferecer ao jovem passageiro a cestinha das balas. E precisamente esse episódio marcou o início de uma bela amizade, porque ele, indeciso, tocava as balas com as pontas dos dedos, sem saber qual seria a melhor naquela variedade e a moça lhe murmurou:

— As azuis.

E no que ele, cerimonioso, tirava só uma bala, a moça catou rapidamente no cesto uma meia dúzia — todas azuis — enchendo-lhe a mão.

Depois, como já contei, ela sentou-se defronte, no banquinho que lhe é reservado, prendeu o cinto e o menino reajustou o seu, copiando-lhe os gestos.

E aí foi a emoção da decolagem: o avião corria na pista e a todo momento o menino indagava:

— Já está voando? Já está voando?

A aeromoça lhe ensinou um segredo:

— Quando voar você sente que fica mais leve, despregado do chão.

Mas, na concentração para sentir-se mais leve, ele fechou os olhos e, quando os abriu, já voava alto, as casas lá embaixo começavam a ficar pequeninas. E ele a reclamar por não ter sentido nada, quando de repente veio um choque novo:

— Uma nuvem, vamos bater numa nuvem!

Ele prendia a respiração enquanto o avião penetrava nuvem adentro e se envolvia em névoas esgarçadas. O menino soltou o fôlego numa surpresa deslumbrada:

— Pensei que nuvem era gelo puro, durinho, e que o avião ia rebentar tudo. Mas nuvem parece mesmo algodão de açúcar!

Aí se escutou uma voz no alto-falante. Prevenia que voávamos a 12 mil metros de altitude, em velocidade de cruzeiro de 850 quilômetros por hora, e que a temperatura lá fora era de uns vinte graus abaixo de zero ... Esses miraculosos dados técnicos quase esgotam a capacidade admirativa do menino. Qualquer daquelas informações, vindo isoladas, já seria pretexto para profundas cogitações e infinitas perguntas. Vindas assim em massa só um cérebro eletrônico para destrinçar tudo! Bem, botando os dados em ordem:

— 12 mil metros eu sei, são 12 quilômetros ... Quer dizer que estamos mais ou menos na distância que vai da cidade a Ipanema ... quantas léguas são 12 quilômetros? Ah, duas? Imagine, estamos a duas léguas de altura! E a velocidade — 850 quilômetros por hora ... vamos ver ... o carrinho lá de casa quando corre feito um doido, não passa do cem ... 850 é quantas vezes cem? Oito vezes e meia? Então eu neste jato estou correndo como se fossem oito carros e meio de uma vez na velocidade de cem quilômetros por hora... Puxa vida! Agora a temperatura? Com quantos graus vira gelo? Zero grau? Então vinte graus abaixo — uai, porque é que não está tudo aqui virado gelo, como no congelador da geladeira? Ah, aquecimento ... Eles soltam umas baforadas quentes do motor dos jatos ... que pena, eu gostava de ver era tudo gelado!

Mesinha para o lanche.

— Por que é que lá em casa não se compra uma mesinha destas de enfiar na poltrona? Assim não dava trabalho de arrumar a mesa grande e a gente comia feito em avião — e para ver televisão era bárbaro!

Aperitivo? Tem grapete? Sanduichinho de presunto com palito prateado — legal às pampas!

E aí chegou a Bahia. O dia é de sol, o asfalto do aeroporto é um convite. E depois o alto-falante chama e de novo se terá que subir por aquela escada de rodas, e receber os cumprimentos dos comissários e apertar os cintos, e decolar, e desta vez ele vai sentir mesmo quando o avião despegar do chão.

E novamente as mesinhas e agora o almoço, O avião desliza sobre um colchão de nuvens tão acamadas e branquinhas que parecem um ninho. Mas um ninho do tamanho do mundo! Bandeja de almoço, comida de gente grande e comida de criança — e o que é para ser quente vem quente e o que é para ser frio vem gelado mesmo! Entre as coisas que o menino mais aprecia estão os dois canudinhos de sal e pimenta e o estojinho do palito. E ele explica, muito grave, que o palito vem escondido porque palito não é elegante.

À descida no Recife se renovam os prazeres da Bahia, com o acréscimo dos murais de Lula Cardoso Ayres que exigem acurado estudo e inesgotáveis perguntas. Felizmente interrompidas pelo chamado de embarque — e a escada, o cinto, o apito fino do jato, a decolagem, o discursinho do comandante, música e mais lanche!

— Acho que dão tanta comida é para distrair as pessoas mais velhas que ainda têm medo de voar...

Por fim o alto-falante anuncia que estamos sobrevoando a cidade de Fortaleza. O avião trepida (naquele deslizar de cisne a gente já esquecera que avião antigamente trepidava) mas lá vem a voz do comandante a explicar que a trepidação é devida ao emprego dos freios aerodinâmicos. O vocabulário do menino entesoura a nova aquisição: freio aerodinâmico. E ele fica rolando a palavra na boca como um doce.

Afinal o avião toca o solo ... uma vez, outra ... como andorinha que pousa e levanta os pés, experimentando.

Já se pode desafivelar o cinto. Já se pode apanhar a frasqueira debaixo do banco, os casacos na rede.

O comissário realiza aquela fascinante manobra de abrir a porta — igualzinha a uma porta de astronave. A luz do sol invade o avião. A aeromoça calçou as luvas e o menino a cumprimenta solenemente. Suspira:

     — Nunca mais vou me esquecer deste avião!

     E se encaminha para a escada, o primeiro passageiro a descer, a enfrentar a aventura nova que será a descoberta da cidade.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. 
RJ: J. Olympio, 1976.

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