sábado, 24 de julho de 2021

Contos e Lendas do Mundo (A Mirra)

A mirra é um corpo seco de homem que foi amaldiçoado. A terra não come a carne e esta vai ressecando em cima dos ossos.

Um rapaz muito vivo e engraçado entrou num cemitério com seus companheiros e ao sair viu uma mirra. Lembrou-se de dizer, por chiste:

— Está magra de fome. Venha daí cear comigo !

— Irei — disse a mirra, com uma voz fanhosa, toda passando pelo nariz. O rapaz ficou assombrado e foi dali lançar-se aos pés do vigário a quem tudo contou.

— Tens que cumprir o convite. Depois da ceia te convidará e aceitarás sem sinal de medo. Volta cá que te darei outro conselho.

O rapaz preparou a ceia e a mirra foi-lhe bater à porta à meia noite, sentando-se á mesa e comendo até não mais poder. Depois falou para o dono da casa:

— O bem que me recebeste em tua casa, devo retribuir de qualquer modo. Amanhã esperar-te-ei onde me convidaste.

E se foi embora. O rapaz não dormiu e pela manhã estava na casa do vigário que lhe deu um rosário indulgenciado, com o perdão da hora da morte e emprestou-lhe a capa com que saía.

O rapaz foi para o cemitério e encontrou a mirra.

— Está bem. Deixa a capa aqui e o rosário de que não tens necessidade lá dentro.

— Não, que está frio e do rosário não me separo!

A mirra teimou e o rapaz não cedeu. Estiveram debatendo esse ponto, quando a mirra declarou:

— Assim não te posso levar para cear comigo. Não posso ficar junto da capa dos ministros de Deus e das armas de Nossa Senhora. Vai-te, e não tornes a brincar com os que não vivem…

O rapaz pôs-se fora o mais depressa que pode e nunca mais disse graças com os mortos.
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Essa versão reforça uma opinião de Gustavo Barroso sobre o ciclo de Don Juan. A lenda, como a conhecemos e tem sido aproveitada em romance, teatro, poema e pintura, é uma concordância de dois elementos independentes: a) a conquista de mulheres; b) o convidado do morto, caveira, estátua, etc. Esta historieta pertence ao segundo elemento, assim como A Mirra que Teófilo Braga colheu no Algarve, e A estátua que come, do Sardoal. Não há país europeu ou americano que não possua uma variante.

Na estátua que come, Teófilo Braga obtém um elo português na tradição do convidado de pedra. Aristóteles fala na estátua de Mitis, em Argos, que tombou sobre o assassino de quem representava, esmagando-o (La Poetique, cap. IX, 23, trad. de Ch. Emile Ruelle, Paris). Em Lisboa, no ano de 1610, um clérigo obteve a proibição de S. Jorge acompanhar a procissão de Corpus Christi instalado num cavalo. Ante os protestos do povo, o bispo dom Miguel de Castro autorizou a inclusão do santo mas este não perdoou ao intrigante. É tradição que, no domingo imediato, quando o clérigo que levara o Prelado a decretar a proibição dizia missa no altar de S. Jorge, caiu ao Santo a lança e feriu-o na cabeça! (Jaime Lopes Dias, Festas e Divertimentos da Cidade de Lisboa, Lisboa, 1940).


Fonte:
Os melhores contos Populares de Portugal. Org. de Luís da Câmara Cascudo. Dois Mundos Editora, 1944. Disponível em Consciência.org

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