sábado, 24 de julho de 2021

Carolina Ramos (O Vencedor)

Filho de alfaiate, Robson não era um Petrônio porque a natureza não o ajudava. Baixinho... sem maiores predicados que o cabelo cheio e encaracolado, supria a ausência de atributos adicionais, sempre trajando-se com o mais cuidadoso apuro.

A profissão do pai colaborava... E muito! Havia também interesses profissionais... impossível negar. O filho era, indiscutivelmente, fator de publicidade ambulante, dos mais autênticos, para os negócios daquele pai que nele investia, conscientemente. Por sua vez, a baixo custo, Robson promovia a alfaiataria do pai.

O investimento interessava, portanto, a ambas as partes – autêntico negócio de família para ninguém botar defeito.

Robson escovou e alisou, cuidadosamente, o terno retirado da mala. Vestiu com ele o cabide e dependurou-o no lado esquerdo do guarda-roupa, como se aquele fosse lugar previamente reservado.

Custava-lhe ter de dividir espaço com aquele companheiro de quarto, imposto pelas circunstâncias. Olhou-o de soslaio. Baixinho como ele e, como ele... caladão.

A procura comum de um quarto, num hotel barato, unira interesses de ambos os lados. O moço de cabelos encaracolados, com pretensões a Petrônio, viera de Catanduva para enfrentar o vestibular da Faculdade de Direito, disposto a gastar o quanto menos possível. O que teria pela frente, após bater asas e deixar o ninho, exigia prudência e contenção de despesas.

Na portaria, aquele rapazote de jeito simplório, que não conseguia uma vaga, acabara por lhe vencer a resistência, levando-o a renunciar à independência de ter um quarto só para si. De mais a mais, quarto com duas camas, partilhado entre dois, pesaria menos nos bolsos de qualquer um. Por isso, ali estavam: - um, esvaziando a bagagem com desenvoltura; o outro, meio constrangido, ajeitando sacolas como quem não tem pressa de exibir-lhes o conteúdo.

Num impulso de cordialidade, Robson tentou quebrar o gelo:

- Olhe... eu fico com três cabides e você com os outros três. Tá bom?

O outro concordou com a cabeça, sem alterar a situação das sacolas.

- Meu nome é Robson. Sou de Catanduva. Você vem de onde?

- Altamiro... meu nome é Altamiro. Vim de Sergipe. Tô procurando meu pai que veio de Aracaju pra cá faz uns oito anos... e ele não voltou mais.

- ...E você não tem algum endereço para chegar até ele?

- Tenho, não... mas tenho o de um tio... irmão do meu pai, que também mora por aqui, há muito tempo.

Foi tudo. O sergipano fechou- se outra vez em copas.

Ajeitado o canto do seu guarda-roupa, o moço de Catanduva acariciou num último olhar o terno impecável, feito pelo pai "com agulha de ouro" para que o filho não cruzasse as tradicionais arcadas do Largo São Francisco menos apresentável do que os demais.

O segundo cabide estava vestido com a camisa que trazia no bolso a etiqueta "Winner", presente da mãe. Sabia que, por detrás dessa marca otimista, estavam as orações dela e das irmãs em busca da cumplicidade do Altíssimo para que ele, realmente, se tornasse um "Vencedor".

Insistiu, dirigindo-se ao companheiro que continuava indefinido a remexer sacolas.

- Como é... você vai ficar por aqui? Eu vou forrar o estômago. Quer que lhe traga alguma coisa?

- Não, não... obrigado. Pode deixar... não estou com fome... vou descansar um pouco... Não dormi nada esta noite.

Já que o moço não fazia questão de companhia, Robson despediu-se:

- Então, tchau! Fique à vontade. Durma bem!

Sozinho, solto na capital paulista, não teve pressa em retomar ao hotel. A rápida refeição estimulou-o a perder-se no burburinho da metrópole, encantado com o esplendor das luzes... arrebatado pelo dinamismo da noite sem sono.

Livre, como um coelho em campo aberto, e, ao mesmo tempo, receoso dos perigos embutidos nessa liberdade, Robson sentia-se como um pássaro em gaiola aberta, hesitante em cruzar os limites do desconhecido. Só quando o cansaço lhe pesou sobre os passos, noite alta, decidiu retomar ao Hotel Paratodos. Denominação eufêmica para um casarão mal cuidado, a esconder segredos em cada quarto, devendo, quando muito, ser chamado de Pensão Paratodos, embora o eufemismo ainda prevalecesse.

Pediu a chave ao porteiro sonolento.

- Está lá em cima com o seu companheiro.

Não chegou a bater... Percebeu que o quarto estava fechado por fora enquanto a chave permanecia na fechadura. Lamentou intimamente a negligência do sergipano. Saíra deixando o quarto praticamente aberto! Que imprudência! Por certo desconhecia os perigos da cidade grande!

Girou a chave, empurrou a porta e acendeu a luz. Não viu o companheiro e nem sequer seus pertences. Sobre a sua cama, apenas um bilhete: - Desculpe.

Sobre a cadeira, única, a sua maleta... aberta e vazia!

Correu para o guarda-roupa. Vazio também! Nem o terno "feito com agulha de ouro"! Terno feito pelo carinho paterno, especialmente para aquela ocasião! A camisa "Winner" também ali não estava, numa evidente demonstração de que tampouco as preces da mãe e das irmãs haviam tido força suficiente para conter a avidez do larápio!

Desceu as escadas aos saltos e, mais uma vez, sacudiu os sonhos do porteiro sonolento.

- Onde está o rapaz?

- Que rapaz?

- Que rapaz há de ser?! O que dividia o quarto comigo, ora!

Os olhos do porteiro sonolento mostravam perplexidade:

- Ele não está lá em cima?! Por aqui é que ele não passou, não!

- Como não passou?! Pulou a janela?!... Quem é ele, afinal? – Robson impacientava-se.

- Quem é não sei... ele subiu com o senhor e ficou de descer em seguida para trazer os documentos e assinar a ficha. Mas... ainda não desceu.

- Como não desceu, cara? Desceu, sim... e levando tudo o que era meu!

Os olhos do porteiro arredondaram-se afinal, vencendo o sono. Robson percebeu que dali não sairia nada a seu favor. A rua escura e deserta desestimulava qualquer busca.

Deu meia volta, irritado... e enfurnou-se no quarto, remoendo maus pensamentos:

- Se eu pego aquele infeliz!!!...

Na manhã seguinte, o moço de Catanduva gastava as parcas economias na compra de roupas novas apresentáveis, embora não tecidas com "agulha de ouro". Roupas que não o envergonhariam perante os colegas do vestibular.

Logo teve certeza de não terem sido totalmente vãs as pretensões da mãe e das irmãs – Foi aprovado!

Pouco mais de um mês, quando voltava das primeiras aulas de temo e gravata como exigiam os Estatutos das Arcadas vislumbrou, numa das filas de ônibus, o seu terno desaparecido e obviamente dentro dele, o sergipano confuso, que também já o vira e tudo fazia para esgueirar-se sem ser pego.

De um salto, Robson agarrou-o pela lapela do paletó. Não reagiu. A fila tumultuou-se. Aglomerada à volta dos dois, gente curiosa... pronta a fazer justiça.

A raiva, até então contida, subiu à cabeça de Robson.

- Seu... seu... Então é assim que se faz?! Confiei em você — Dividi com você meu quarto... e foi isto o que me aprontou, cara?!

A turma que os rodeava, disposta a fazer justiça, recuou desconcertada... Receio de imiscuir-se em questões íntimas.

Agarrado e aterrorizado ante a fúria do estudante, o faltoso encolhia-se, trêmulo, dentro daquele terno que tinha as exatas medidas de ambos.

Ante a ausência de reação... e ao ver o medo estampado nos olhos do rapaz, Robson acalmou-se um pouco mais, afrouxando a mão:

- Como é... encontrou seu pai?!

- Meu pai morreu... há quase um ano!... Meu tio, também, alguns meses depois – foi o que me contou o vizinho.

A mão que agarrava a lapela afrouxou um pouco mais.

- Lamento. - E o que você vai fazer agora?...

- ...Eu ia voltar pra minha terra... pra minha mãe... que precisa muito de mim... mas... se o doutor me entregar...não sei o que vai acontecer...

No olhar acuado, um misto de angústia... de temor... até de vergonha, quem sabe?! O paletó aberto deixava ver no bolso da camisa a marca - "Winner".

Robson sorriu... sem reprimir as cócegas da ironia. A raiva sumira completamente. Largou a lapela.

- Vai... vai embora. E vê se não esquece, nunca mais, do que aconteceu aqui. Da próxima vez... pode ser bem pior! Ah! se pode!!! Lembra bem disto rapaz!... Lembra mesmo!

O garoto ganhou vida! Agradeceu, respirando fundo: – Obrigado, doutor! - e sumiu no ônibus estacionado no ponto.

E aquele moço de cabelos encaracolados, que já envergava outro terno feito com "Agulha de Ouro", continuou seu caminho, num passo seguro de quem tinha plena consciência de ser, indiscutivelmente, um - Vencedor!

- Sequer tinha Diploma... e, em tão poucos minutos, fora chamado de "Doutor'' por duas vezes!...

Inflou o peito, confiante: - Com certeza... aquela não haveria de ser a última vez!!!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

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