sábado, 31 de julho de 2021

Versejando 69

 

Humberto de Campos (Pavores de enfermo)

Não obstante a sua aparência de homem grave, circunspecto, ponderado, que lhe assegurara aquele emprego de confiança, o coronel Bonifácio Coutinho, diretor do Asilo de Senhoras Arrependidas era, intimamente, um dos temperamentos menos compatíveis com as responsabilidades daquelas funções. Lutando, disputando-se o domínio da sua vontade, defrontavam-se nele, o desejo e o interesse. E não era sem custo, sem violência, que este se sobrepunha à brutalidade dos seus nervos, tornando-lhe possível a manutenção daquela sinecura amável, que lhe amenizava as infinitas asperezas da vida. Assim constituído, o coronel resolveu, um dia, quebrar a sua couraça e, chamando em particular o médico do estabelecimento, pediu-lhe um conselho:

- Diga-me cá, doutor, diga-me, com reserva: o senhor acha que me fica mal conquistar uma ou outra das nossas asiladas?

- Absolutamente, não! - acudiu o facultativo. - Desde que elas queiram, não há mal nenhum. Eu próprio tenho me prevalecido dessa faculdade, procurando apenas não investir contra aquelas que, de antemão, parecem rigidamente sérias.

- E que faz o doutor para diferenciar umas das outras? - objetou o velho - Como que o senhor as distingue?

O galeno tomou-o pelo braço, arrastou-o para o silêncio de uma janela deitando sobre jardim, e revelou-lhe o seu segredo:

- Olhe: o senhor, quando se quiser aventurar a uma destas conquistas, faça o seguinte: chegue perto da asilada que houver escolhido, pergunte-lhe a idade; se ela lhe disser uma idade visivelmente inferior àquela que tem, faça-lhe a sua declaração, que será por força bem sucedido.

E apertando-lhe a mão.

- Experimente.

Um mês depois foi o médico chamado para ver o diretor do Asilo, cujas condições de saúde preocupavam seriamente os seus subordinados. O estado de depressão era visível. O pulso, irregular, incerto, descompassado, denunciava um profundo abalo orgânico, que os seus cinquenta e cinco anos haviam tornado perigoso. À vista do enfermo, o médico compreendeu a sua missão e, pedindo que os enfermeiros se retirassem, começou:

- Meu caro coronel, é preciso que o senhor mude de vida.

- Eu?

- Sim, senhor. O senhor abusou do meu conselho, e deve lembrar-se que não é mais uma criança, um moço, um rapaz no vigor dos anos.

E interrompendo-se:

- Que idade o senhor tem?

- Como? - atalhou o doente, alarmado.

- Eu estou perguntando que idade tem o senhor.

A essa confirmação da consulta, passou pelo cérebro do enfermo um pensamento sinistro. Com que ideia lhe fazia o médico aquela pergunta? E foi com o pavor nos olhos que se sentou, de repente, no leito, bradando, horrorizado, com os olhos fora das órbitas:

- Cento e cinquenta anos, doutor! Duzentos! Duzentos e cinquenta anos, doutor!

E disparou, escada abaixo.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) XI

COBRANÇA


Voltei no tempo para ver amigos
dos tempos idos, sonhos de rapaz.
Lembrei de amores novos e de antigos;
- alguns se foram, já estão em paz.

O tempo traz lembranças e castigos,
a tal felicidade é tão fugaz,
quase sempre nos faz pobres mendigos
a implorar um amor que nunca traz.

Não sei se cometi um erro crasso,
não posso reclamar do meu fracasso,
foi alto o preço que paguei, talvez.

Porquanto a vida cedo ou tarde, cobra
erros, deslizes ou qualquer manobra
sem explicar porque é nossa vez.
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JULGAMENTO

Não me passou jamais pela cabeça
julgar e condenar qualquer pessoa.
Quem não tiver pecado, que apareça,
- jogue a pedra que fere e que magoa,

"Não julgueis". Que este mundo não esqueça
da mensagem do Mestre, que ressoa
para que a Luz divina resplandeça
sobre os homens que têm vontade boa.

Minha vida eu guiei pela Esperança,
pela decência do viver honesto,
- quantas vezes paguei um alto preço?

Não me fascina a glória da abastança,
prefiro o meu viver sempre modesto,
e tenho, com certeza, o que mereço!
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LEMBRANDO RUI

Não me seduz o fausto da riqueza,
nem o brilho da glória e do poder.
Exemplos já são muitos da esperteza
que alguns humanos imaginam ter.

São nocivos à própria Natureza,
a ganância é maior e dá prazer.
Só o lucro interessa com certeza,
o pobre que se dane em seu viver.

Dizem que o Mundo está globalizado,
pois tudo é permitido no mercado,
foi-se a decência que o poeta sonha...

A corrupção cada vez é mais danosa,
tinha razão o grande Rui Barbosa:
ser honesto é motivo de vergonha!
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MARCAS

Vou procurando pelo mundo afora
buscando aqui e ali um novo abraço,
que a vida sem amor não tem aurora
e se transforma no maior fracasso.

É triste ver a mágoa de quem chora,
- o verdadeiro amor não é devasso.
A vida se desfaz e vai embora
e o sentimento acaba em descompasso.

Ainda assim recordo aquele sonho,
quando vivi o amor feliz, risonho,
que o destino, invejoso, me levou.

E quando olho no espelho do meu rosto
vejo as marcas da dor e do desgosto
lembrando o amor que um dia me deixou.
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MELANCOLIA

A tarde começou chuvosa e triste,
no coração bateu uma saudade,
parece que a tristeza ainda insiste
em ditar moda após a mocidade.

A noite surge bela e não resiste
à luz da lua bailando na cidade,
meu coração é forte e não desiste
desse amor sensual que o peito invade.

Meu sonho já não é tão colorido,
por isso, às vezes, fico comovido
sentindo a dor de quem nunca viveu,

E vou levando a minha desventura
cantando um salmo alegre de Ternura
para esquecer que a vida me esqueceu!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração.
São Paulo: Scortecci, 2011.
Livro enviado pelo autor.

Fernando Sabino (O Diamante)

EM 1933 Jovelino, garimpeiro no interior da Bahia, concluiu que ali não havia mais nada a garimpar. Os filhos viviam da mão pra boca, Jovelino já não via jeito de conseguir com que prover o sustento da família. E resolveu se mandar para Goiás, onde Anápolis, a nova terra da promissão, atraía a cobiça dos garimpeiros de tudo quanto era parte, com seus diamantes reluzindo à flor da terra.

Jovelino reuniu a filharada, e com a mulher, o genro, dois cunhados, meteu o pé na estrada. Longa era a estrada que levava ao Eldorado de Jovelino: quase um ano consumiu ele em andança com a sua tribo, pernoitando em paióis de fazendas, em ranchos de beira caminho, em chiqueiros e currais, onde quer que lhe dessem pasto e pousada.

Vai daí Jovelino chegou aos arredores de Anápolis depois de muitas luas e ali se estabeleceu, firme no cabo da enxada, cavando a terra e encontrando pedras que não eram diamantes. Daqui para ali, dali para lá, ano vai, ano vem, Jovelino existia de nômade com seu povinho cada vez mais minguando de fome. Comia como podia — e não podia. Vivia ao deus-dará — e Deus não dava. Quem me conta é o filho do fazendeiro de quem Jovelino se tornou empregado:

— Ao fim de dez anos ele concluiu que não encontraria diamante nenhum, e resolveu voltar com sua família para a Bahia onde a vida, segundo diziam, agora era melhorzinha. Não dava diamante não, mas o governo prometia emprego seguro a quem quisesse trabalhar.

Jovelino reuniu a família e botou pé na estrada, de volta à terra de nascença, onde haveria de morrer. Mais um ano palmilhado palmo a palmo em terra batida, vivendo de favor, Jovelino e sua obrigação, de vez em quando perdendo um, que isso de filho é criação que morre muito. Foi nos idos de 43:

— Chegou lá e se instalou no mesmo lugar de onde havia saído. Governo deu emprego não. Plantou sua rocinha e foi se aguentando. Até que um dia...

Até que um dia de noite Jovelino teve um sonho. Sonhou que amanhava a terra e de repente, numa enxadada certeira, a terra escorreu... A terra escorreu e aos seus olhos brilhou, reluziu, faiscou, resplandeceu um diamante soberbo, deslumbrante como uma imensa estrela no céu — como uma estrela no céu? Como o próprio olho de Deus!

Jovelino olhou ao redor de seu sonho e viu que estava em Anápolis, no mesmo sítio em que tinha desenterrado a sua desilusão.

E para lá partiu, dia seguinte mesmo, arrastando sua cambada. Levou nisso um entreano, repetindo pernoites revividos, tome estrada! Deu por si em terra de novo goiana. Quem me conta é o filho do fazendeiro:

— Você precisava de ver o furor com que Jovelino procurou o diamante de seu sonho. A terra de Goiás ficou para sempre revolvida, graças à enxada dele. De vez em quando desmoronava, Jovelino ia ver, não era um diamante, era um calhau. Até que um dia...

— Encontrou? — perguntei, já aflito.

— Encontrou nada! Empregou-se na fazenda de meu pai, o tempo passou, os filhos crescidos lhe deram netos, a mulher já morta e enterrada, livre dos cunhados, os genros bem arranjados na vida. Um deles é coletor em Goiânia. O próprio Jovelino, entrado em anos, era agora um velho sacudido e bem disposto, que tinha mais o que fazer do que cuidar de garimpagens. Mas um dia não resistiu: passou a mão na sua enxada, e sem avisar ninguém, o olhar reluzente de esperança, partiu à procura do impossível, do irreal, do inexistente diamante de seu sonho.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Arquivo Spina 42: Beth Iacomini

 

Rachel de Queiroz (O Menino e o Caravelle)

Os OLHOS DO MENINO pareciam duas estrelas; ‘‘Caravelle!’’ Para ele é uma palavra mágica, a era do jato depois da era da hélice, Do jeito que ele fala, parece que avião a hélice é coisa tão obsoleta como carro de boi. Nos tipos obsoletos ele já viajou outrora — precisamente no ano passado. Agora sobe a escada, penetra na nave com emoção inaugural — ele que só estava acostumado a lhe seguir com a vista as linhas paralelas de fumaça, riscando o céu.

Exigiu que nos sentássemos logo no primeiro par de poltronas; era talvez para se sentir mais perto do próprio coração da nave (coração ou cabeça?), o santuário misterioso dos pilotos. Afivelou cuidadosa e lentamente o cinto de segurança, como um ritual. Defronte a nós a aeromoça se sentou no seu banquinho e ela também afivelou o seu próprio cinto. Vestia uniforme vermelho de bolero e o menino, com o olho estendido que lhe dá a TV para esses assuntos, perguntou baixinho: — Isso é roupa de desfilar? 

Não, esqueço. Antes de apertar o seu cinto para a decolagem, a aeromoça veio oferecer ao jovem passageiro a cestinha das balas. E precisamente esse episódio marcou o início de uma bela amizade, porque ele, indeciso, tocava as balas com as pontas dos dedos, sem saber qual seria a melhor naquela variedade e a moça lhe murmurou:

— As azuis.

E no que ele, cerimonioso, tirava só uma bala, a moça catou rapidamente no cesto uma meia dúzia — todas azuis — enchendo-lhe a mão.

Depois, como já contei, ela sentou-se defronte, no banquinho que lhe é reservado, prendeu o cinto e o menino reajustou o seu, copiando-lhe os gestos.

E aí foi a emoção da decolagem: o avião corria na pista e a todo momento o menino indagava:

— Já está voando? Já está voando?

A aeromoça lhe ensinou um segredo:

— Quando voar você sente que fica mais leve, despregado do chão.

Mas, na concentração para sentir-se mais leve, ele fechou os olhos e, quando os abriu, já voava alto, as casas lá embaixo começavam a ficar pequeninas. E ele a reclamar por não ter sentido nada, quando de repente veio um choque novo:

— Uma nuvem, vamos bater numa nuvem!

Ele prendia a respiração enquanto o avião penetrava nuvem adentro e se envolvia em névoas esgarçadas. O menino soltou o fôlego numa surpresa deslumbrada:

— Pensei que nuvem era gelo puro, durinho, e que o avião ia rebentar tudo. Mas nuvem parece mesmo algodão de açúcar!

Aí se escutou uma voz no alto-falante. Prevenia que voávamos a 12 mil metros de altitude, em velocidade de cruzeiro de 850 quilômetros por hora, e que a temperatura lá fora era de uns vinte graus abaixo de zero ... Esses miraculosos dados técnicos quase esgotam a capacidade admirativa do menino. Qualquer daquelas informações, vindo isoladas, já seria pretexto para profundas cogitações e infinitas perguntas. Vindas assim em massa só um cérebro eletrônico para destrinçar tudo! Bem, botando os dados em ordem:

— 12 mil metros eu sei, são 12 quilômetros ... Quer dizer que estamos mais ou menos na distância que vai da cidade a Ipanema ... quantas léguas são 12 quilômetros? Ah, duas? Imagine, estamos a duas léguas de altura! E a velocidade — 850 quilômetros por hora ... vamos ver ... o carrinho lá de casa quando corre feito um doido, não passa do cem ... 850 é quantas vezes cem? Oito vezes e meia? Então eu neste jato estou correndo como se fossem oito carros e meio de uma vez na velocidade de cem quilômetros por hora... Puxa vida! Agora a temperatura? Com quantos graus vira gelo? Zero grau? Então vinte graus abaixo — uai, porque é que não está tudo aqui virado gelo, como no congelador da geladeira? Ah, aquecimento ... Eles soltam umas baforadas quentes do motor dos jatos ... que pena, eu gostava de ver era tudo gelado!

Mesinha para o lanche.

— Por que é que lá em casa não se compra uma mesinha destas de enfiar na poltrona? Assim não dava trabalho de arrumar a mesa grande e a gente comia feito em avião — e para ver televisão era bárbaro!

Aperitivo? Tem grapete? Sanduichinho de presunto com palito prateado — legal às pampas!

E aí chegou a Bahia. O dia é de sol, o asfalto do aeroporto é um convite. E depois o alto-falante chama e de novo se terá que subir por aquela escada de rodas, e receber os cumprimentos dos comissários e apertar os cintos, e decolar, e desta vez ele vai sentir mesmo quando o avião despegar do chão.

E novamente as mesinhas e agora o almoço, O avião desliza sobre um colchão de nuvens tão acamadas e branquinhas que parecem um ninho. Mas um ninho do tamanho do mundo! Bandeja de almoço, comida de gente grande e comida de criança — e o que é para ser quente vem quente e o que é para ser frio vem gelado mesmo! Entre as coisas que o menino mais aprecia estão os dois canudinhos de sal e pimenta e o estojinho do palito. E ele explica, muito grave, que o palito vem escondido porque palito não é elegante.

À descida no Recife se renovam os prazeres da Bahia, com o acréscimo dos murais de Lula Cardoso Ayres que exigem acurado estudo e inesgotáveis perguntas. Felizmente interrompidas pelo chamado de embarque — e a escada, o cinto, o apito fino do jato, a decolagem, o discursinho do comandante, música e mais lanche!

— Acho que dão tanta comida é para distrair as pessoas mais velhas que ainda têm medo de voar...

Por fim o alto-falante anuncia que estamos sobrevoando a cidade de Fortaleza. O avião trepida (naquele deslizar de cisne a gente já esquecera que avião antigamente trepidava) mas lá vem a voz do comandante a explicar que a trepidação é devida ao emprego dos freios aerodinâmicos. O vocabulário do menino entesoura a nova aquisição: freio aerodinâmico. E ele fica rolando a palavra na boca como um doce.

Afinal o avião toca o solo ... uma vez, outra ... como andorinha que pousa e levanta os pés, experimentando.

Já se pode desafivelar o cinto. Já se pode apanhar a frasqueira debaixo do banco, os casacos na rede.

O comissário realiza aquela fascinante manobra de abrir a porta — igualzinha a uma porta de astronave. A luz do sol invade o avião. A aeromoça calçou as luvas e o menino a cumprimenta solenemente. Suspira:

     — Nunca mais vou me esquecer deste avião!

     E se encaminha para a escada, o primeiro passageiro a descer, a enfrentar a aventura nova que será a descoberta da cidade.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. 
RJ: J. Olympio, 1976.

Luiz Damo (As Faces da Trova) – 4 –

A afeição nunca envelhece
nem perece no caminho,
transforma a dor numa prece
e em flores qualquer espinho.
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A brisa mansa revela
o frescor do orvalho intenso,
tornando a noite mais bela
e o despertar menos denso.
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Alguém que só fica olhando
quem comete a atrocidade,
pode estar compartilhando
da mesma cumplicidade.
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As dores das caminhadas
que nos fazem padecer,
são flores despetaladas
colhidas no entardecer.
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De toda a caça de pena
o caçador se deleita,
sempre pretere a pequena
tendo a grande à sua espreita.
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Fazei que andemos nos trilhos
do amor, ó Deus, que sois Pai!
Sobre nós, os vossos filhos,
bênçãos de paz, derramai!
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Grita o rebelde e se abala,
debalde chora e se agita,
só descansa quando cala
ou deixar de ser quem grita.
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Há traços do ser, gravados,
nos telões da sociedade,
riso e pranto, misturados,
refletindo a identidade.
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Jamais aprendemos tanto
quanto a escola da existência,
seja no riso ou no pranto,
cem por cento de frequência.
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Já vai longe, aquele dia,
que a NASA ao mundo avisou,
mesmo a alguns sendo utopia:
"o homem, na lua, pisou".
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Mesmo que o tempo não fosse
veloz, tal fera bravia,
com paz tudo era mais doce
e a vida menos vazia.
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Não podem amar, sem antes,
revelarem quais as fontes,
que conduzem dois amantes
a unirem seus horizontes.
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Nas estradas do porvir
saiba aonde sonha chegar,
ninguém volta sem partir
e há quem parta sem voltar.
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Na vida posso sonhar
e no sonho me manter,
porém jamais alcançar
a vida que sonho ter.
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Ninguém vê ao seu derredor
senão com o olho que tem,
verá mais longe e melhor
se com a alma, olhar também.
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No leito, à dor condenado,
inane, ninguém perdure,
diz o doente, acamado:
"Ó Deus, me leve ou me cure"!
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Nos campos do cotidiano
cresce todo o experimento,
fruto do trabalho humano
e do seu comportamento.
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O amor nunca gera atrito,
para amar não tem idade,
para ser amplo e irrestrito,
deve haver maturidade.
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O homem faz a própria lei,
por si só, se julga um bravo,
mas ninguém se sinta um 'rei',
para tornar o outro, escravo.
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Os percalços se sustentam
no infortúnio ou no desdém,
dos que pela vida ostentam
a aparência e nada além.
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Pedras, para quem caminha,
nunca sirvam de tropeço,
as conheço, uma foi minha,
pois tinha o mesmo endereço.
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Quando a tudo me rebelo
e em nada vejo harmonia,
pode estar no cerebelo
a razão da rebeldia.
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Que a chama da fé não ceda
às trevas da prepotência.
Luz e paz, Deus nos conceda,
por sua benevolência.
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Quem de amar só faz de conta
cai na senda temerária,
olvida o que à vida aponta,
só lembra a 'conta bancária'.
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Se algo  queres alcançar
nunca deves confundir,
a esperança de chegar
com o temor de partir.
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Se alguém obstar por sorrir
e chorar lhe for preciso,
jamais deixe sucumbir
a vibração de um sorriso.
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Sobre águas desconhecidas,
teu barco corta altos mares
e às ondas embravecidas
vencerás, se em paz remares!
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Sobre o mar, num barco à vela,
ninguém anda, mas navega.
De automóvel, na ruela,
ninguém rema, mas trafega.
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Surge o sol nos horizontes
e abre as cortinas dos céus,
lança a luz e faz dos montes
pedestais dos seus troféus.
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Tudo o que à vida assumirmos
nos leve ao seu cumprimento,
mesmo se ao pranto cairmos,
sempre haja um reerguimento!

Fonte:
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Contos e Lendas do Mundo (A velhinha e o porco)

Era uma vez uma pobre velha que vivia sozinha. Um dia, estava varrendo o quintal e encontrou uma moeda.

"Que farei com esse dinheirinho?" - pensou ela - "ah, já sei, irei ao mercado e comprarei um porquinho para me fazer companhia."

E assim fez. Quando voltava do mercado, teve que passar por uma pinguela. Mas o porquinho não quis atravessá-la.

A velhinha foi mais adiante e encontrou um cão.

- Cachorrinho, por favor, morde o porco que não quer atravessar a pinguela e, por isso, eu não posso voltar para casa.

O cão não lhe deu atenção.

Ela foi mais adiante e encontrou uma vara. Pediu-lhe, então:

- Varinha, bate no cão, ele não quer morder o porco, que não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

A vara não lhe deu importância.

A velhinha andou um pouco mais e encontrou um fogo.

- Foguinho, queima a vara; ela não quer bater no cão; o cão não quer morder o porco; o porco não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

O fogo nada fez.

Ela continuou andando e encontrou a água. Pediu-lhe:

- Água, apaga o fogo; ele não quer queimar a vara; a vara não quer bater no cão; o cão não quer morder o porco; o porco não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

A água não a atendeu.

A velhinha foi andando e encontrou um boi. Disse-lhe:

- Boizinho, bebe a água; ela não quer apagar o fogo; o fogo não quer queimar a vara; a vara não quer bater no cão; o cão não quer morder o porco; o porco não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

O boi não a ouviu.

Mais adiante, ela encontrou um açougueiro e lhe falou:

- Açougueiro, mata o boi; ele não quer beber a água; a água não quer apagar o fogo; o fogo não quer queimar a vara; a vara não quer bater no cão; o cão não quer morder o porco; o porco não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

O açougueiro não lhe respondeu.

A velhinha andou mais um pouco e encontrou uma corda.

- Corda, enforca o açougueiro; ele não quer matar o boi; o boi não quer beber a água; a água não quer apagar o fogo; o fogo não quer queimar a vara; a vara não quer bater no cão; o cão não quer morder o porco; o porco não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

Mas a corda não ouviu.

Mais adiante, ela encontrou um ratinho e lhe pediu:

- Ratinho, rói a corda; ela não quer enforcar o açougueiro; o açougueiro não quer matar o boi; o boi não quer beber a água; a água não quer apagar o fogo; o fogo não quer queimar a vara; a vara não quer bater no cão; o cão não quer morder o porco; o porco não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

O rato nada fez.

A pobre velhinha andou mais um pouquinho e encontrou um gato. E assim lhe falou já desanimada:

- Gatinho, por favor, caça o rato; ele não quer roer a corda; a corda não quer enforcar o açougueiro; o açougueiro não quer matar o boi; o boi não quer beber a água; a água não quer apagar o fogo; o fogo não quer queimar a vara; a vara não quer bater no cão; o cão não quer morder o porco; o porco não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

O gato então lhe respondeu:

- Se a senhora for até aquela vaca e me trouxer um pires de leite, eu caçarei o rato.

A velha foi até a vaca e esta lhe disse:

- Se a senhora for até aquele monte de feno e me trouxer uma porção dele, eu lhe darei o leite.

Ela foi até o monte de feno e trouxe uma porção para a vaca.

Assim que a vaca comeu o feno, deu o leite à velhinha. Ela levou o leite, num pires, ao gato. O gato bebeu o leite e pôs-se a caçar o rato. O rato começou a roer a corda. A corda começou a enforcar o açougueiro. O açougueiro começou a matar o boi. O boi pôs-se a beber a água. A água começou a apagar o fogo. O fogo pegou na vara. A vara bateu no cão. O cão mordeu o porco. O porco atravessou a pinguela e a velhinha voltou para casa.

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Adega de Versos 37: José Tavares de Lima

 

Júlia Lopes de Almeida (Sob as estrelas)

A Olavo Bilac


O padre Júlio voltava do Seminário, de coroa aberta e de batina, pronto para servir a Deus na sua vila mineira, alcandorada sobre precipícios de verdura e rochedos abruptos. Alto, branco e esguio, figura mística de quem sonha e prescruta mistérios, ele derramava o olhar pelas penedias da encosta, tachonadas de flores de quaresma, sem ânimo de perguntar pela sua amada de outrora, o seu único amor, aquela pobre Ianinha, tão ardente e apaixonada, que o enlaçava nos seus braços flexíveis como hastes de hera, queimando-o com o fulgor dos seus olhos negros de mineira inculta e imaginosa.

Juntavam-se de noite nos campos, ela fugida do casebre da avó cabocla, ele da casa do tio padre. Amavam-se sob as estrelas. Ianinha sabia contos do sertão, histórias de feiticeiras e lobisomens, que lhe contava risonha, achando graça nos seus terrores. Ele beijava-lhe a garganta túmida, pedindo-lhe que se calasse.

Tinham começado a mocidade juntos, ela era mais moça, mas muito mais precoce; ele adorava-a de joelhos, já um pouco voltado para o culto divino.

De repente interrompeu-se o idílio: o tio padre exigiu que o sobrinho fosse para o Seminário. Das fugas noturnas só eram sabedoras as estrelas. Júlio, tímido, obedecendo à vontade do velho e impelido mesmo pelo seu espírito religioso, despediu-se da amante com resignação. Ela é que teve transportes de louca, que se colou a ele como uma cobra a um tronco, dizendo-lhe que o amava, que lhe dera a sua virgindade, a sua alma, que a vida era aquilo, a liberdade, o beijo, o amor!

A tentação foi vencida, Júlio deixou-a sozinha, soluçando alto, na noite escura e silenciosa.

Agora, olhando para aquelas penedias, para aqueles vales enormes, pensava que antes a Ianinha tivesse morrido... e era essa a sua esperança! Queria ser puro, queria ser santo. Voltara-se para o Céu com fé arrojada; detestava o mundo e a carne. Vinha emundar a alma naquele mesmo desterro que enchera de beijos e abraços pecaminosos.

Nos seus êxtases a figura de Ianinha atravessava-lhe por vezes a mente, como uma tentação diabólica e terrível, mostrando-lhe a alvura dos dentes, a negrura das madeixas revoltas, a rijeza dos seios morenos... Excomungava-a, amaldiçoava-a, enchia-se de cilícios, e caía chorando, contrito, esmagado pelo remorso, numa alucinação dolorosa, sem achar meio de se purificar daquele passado que o assombrava.

Antes a Ianinha houvesse morrido... Para saber isso, e com medo de o perguntar, Júlio foi ao cemitério, que era um canteiro, de pequeno. Ajoelhou-se em frente de cada sepultura.

De quem era esta? de quem era aquela? perguntava. O coveiro sabia os nomes de todos os enterrados. Morria-se tão pouco, ali!

Uma era da tia Zefina, outra do Simeão, outra... Eram todos velhos, muito velhinhos já. A Ianinha, então, vivia ainda!

Júlio corou, com vergonha daquele pensamento cruel. O nome da moça queimar-lhe-ia os lábios, se o dissesse, e, estava certo, toda a gente tomaria conta do seu segredo. Não, não perguntaria por ela. E, abstrato, ajoelhou-se junto de uma sepultura coberta de flores selvagens.

– Esta é de uma criança, explicou o coveiro; não deveria estar enterrada em sagrado, mas enfim...

O padre ergueu o rosto longo e pálido, numa interrogação muda.

– É do filho de uma cabocla, Ianinha. A peste não o batizou. De mais a mais ninguém sabe quem era o pai. O povo afirma que era o diabo. Dizem que a voz do povo é a voz de Deus... Quem sabe?

Júlio baixou os olhos para a terra, cruzando as mãos com força sobre o coração. O seu rosto, alvo e macilento, nada dizia, mas a batina estremecia ao arquejar do busto curvado. Sabia bem... do fundo daquela terra subia alguma coisa que o chamava, que o solicitava e lhe dizia: “és meu!”

Aquelas flores selvagens não eram uma inscrição, um nome que lhe acusava a paternidade?

O dia caía gloriosamente. Franjas de ouro e mantos de púrpura arrastavam-se pelo horizonte em nuvens grossas, embebidas de luz. Pelas penedias escarpadas as bromélias erguiam os penachos cor de fogo; piteiras enormes eriçavam os despenhadeiros, e, lá embaixo, o rio passava numa curva, caudalosamente, refletindo o céu rubro, vermelho ele próprio como uma onda de sangue.

Toda a terra parecia vitoriosa, erguendo as suas montanhas colossais, a sua vegetação estupenda, o seu cheiro de força, de amor e de fertilidade.

Júlio teve ímpetos de escavar a terra, arrancar de lá o corpo daquele desconhecido, filho do seu amor e da sua carne, de chorar sobre os seus ossos despidos, de colar-lhe na caveirinha branca os seus lábios profanos, de lhe dizer que havia ternura no seu coração que debalde procurava tornar seco e estéril, que amava nele a sua virilidade, a sua juventude, e aquela pobre Ianinha...

Nisto levantou-se, frio e assustado. Como podia ele, religioso, padre, pensar na tentação da carne, naquela criatura que estilara peçonha e dor por toda a sua vida, aquela cúmplice do demônio, que assaltava sem temor os ninhos das corujas, mostrando ao luar o negror das madeixas e a alvura dos dentes no riso selvagem?

Antes fosse ela a morta... Demais, não a enterrara ele para todo o sempre na lembrança?

Nessa noite Júlio não dormiu. Voltava sem as ler as folhas do Breviário. Lá fora o vento soprava em roncos e uivos e a lua sumia-se em nuvens fumacentas. Se erguia o olhar, via sorrir-lhe o doce Jesus, do regaço materno, na parede em frente.

Uma criança, uma flor de carne e de sonho; que divina coisa! E ele tivera um filho, e não o vira nunca, e não o amara, e não o repousara sobre o seu coração frágil, morada do pecado e da vergonha, e não lhe beijara os pés acetinados, nem a boquinha já roxa pela morte!

Na solidão do seu quarto rezava pelo filho, aquela alma pagã criada pelo seu beijo, porque, sabia-o bem, a Ianinha não tivera outro amante; era ele o seu dono, o senhor absoluto e muito amado, o deus supremo daquela selvagem, filha da terra e amiga da terra, para quem a natureza era a única bíblia a que abria a sua alma simples. E ele voltava querendo achá-la morta!

Encostado à mesa, junto ao leito vazio, o padre compunha em mente as feições do filho, dava-lhe vulto, sentia nele o melhor da sua alma, o mais elevado dos seus ideais...

Súbito, um toque de sino vibrou rebelde e agudo na noite silenciosa. O padre ergueu-se, lívido. Que seria aquilo? Eram duas horas, o vento abrandara. Houve um rumor de asas algodoadas fugindo espavoridas do campanário. A vila dormia tranquilamente. Mas veio outra badalada do sino, tangida com nervo e raiva, atravessar o espaço negro como um grito de dor.

Àquele toque sucederam outros e outros, desordenados, como se o pobre sino da aldeia tivesse enlouquecido ou abrigasse no seu velho bojo todas as bruxas e duendes dos campos.

O padre, assustado, amparou-se ao crucifixo, ergueu-o e caminhou resoluto para a porta, que abriu de par em par. O campanário ficava à esquerda, dominando o vale enorme, todo cheio de sombra. Júlio seguiu para ali, com a cruz erguida e os lábios murmurando preces. Pareceu-lhe distinguir um vulto branco agitando-se na treva como um fantasma. Elevou bem alto o Cristo, e a poucos passos a sua voz forte retumbou num esconjuro formidável que abalou a terra.

O sino emudeceu; mas o vulto branco lá estava, desenhando uma curva pálida na escuridão. O padre chegou-se para o campanário, audaciosamente, sentindo-se bem apoiado no crucifixo e na sua fé religiosa.

A poucos passos estacou: a lua rompera o crepe das nuvens e iluminava Ianinha seminua, com a cabeça deitada para trás, o cabelo pendente, os olhos perdidos na abóbada estrelada. Ela ali estava, segura à corda do sino, aquele velho sino de aldeia, tão meigo, tão acostumado a só falar de paz às montanhas solitárias.

Ianinha quedou-se imóvel, sentindo Júlio perto, mas com medo de olhar-lhe para a batina. Depois falou, num queixume, murmurando as palavras. Disse que tivera dele um filho, lindo como os amores, que lá estava no cemitério muito sossegadinho.

Júlio estremeceu; os braços estenderam-se-lhe para prendê-la, os lábios moveram-se-lhe para beijá-la; mas conteve-se, hirto, de cruz alçada, livrando-se da tentação...

Ianinha chorou: aquele tempo antigo fora tão bom! O campo aí estava, aberto a todos os seres, fértil, com os hinos das aves e o perfume das plantas. A vida rebentava à toa em cada canto. Em troncos velhos viçavam lianas e parasitas; em corolas de flores aninhavam-se milhares de insetos; e os ninhos estavam povoados, e as tocas rescendiam a paz amorosa, e toda a terra desabrochava à espera de que eles fossem também, como noutros tempos, amar-se sob as estrelas.

Pecar? Não era pecado! Que seria o mundo, sem a perpetuação do amor!

Ianinha arrancava aquilo da sua imaginação caudalosa, lamentando-se por não ter nascido sob outra forma, por não ter a vida libérrima da ave, do inseto ou da flor! E estava formosa, formosa como nunca. Mas o padre sentia o peso do crucifixo nas mãos geladas. Certamente que no fundo da sua alma alguma luta havia que lhe cerrava os beiços e lhe iluminava a fronte larga e lívida. Mas a palavra de amor não lhe saía da garganta.

Voltou para dentro, de cruz erguida, com as faces banhadas de lágrimas. Consumou o sacrifício: entregava-se a Deus.

Lá fora o sino voltou a badalar na noite negra, desordenada, furiosamente, como se o próprio diabo o tangesse! Depois tudo emudeceu. As aves voltaram para o campanário; uma barra de luz indecisa abriu-se frouxamente no horizonte, e, só, no meio da noite, o cadáver da Ianinha, enforcado na corda do sino, olhava de face para o vale enormíssimo todo cheio de aromas e de treva.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXVIII

RIOZINHO

MOTE:
Vai, riozinho, sem pressa...
Lembra ao mar, sem raiva ou mágoa,
que ele é grande, mas começa
num modesto olhinho d’água!
A. A. de Assis
(Maringá/PR)


GLOSA:
Vai, riozinho, sem pressa...
desliza tranquilamente,
não há nada que te impeça
de ser puro e transparente!

Quando chegares ao mar,
lembra ao mar, sem raiva ou mágoa,
que nesse teu desaguar
existe um amor em frágua!

Que do orgulho, se despeça
esse mar tão envolvente...
que ele é grande, mas começa
numa pequena vertente!

Sangas correm para o rio,
o rio, no mar deságua,
mas nasce a correr ...vadio,
num modesto olhinho d’água!
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A TROVA QUE OUVI...

MOTE:
A trova que ouvi dizer-me,
calou tão fundo em meu peito,
que sem conseguir conter-me,
chorei por não tê-la feito.
Edmar Japiassú Maia
(Nova Friburgo/RJ)


GLOSA:
A trova que ouvi dizer-me,

me emocionou tanto, ao ponto
de então, conseguir fazer-me,
ao ouvi-la, ficar tonto!

A sua enorme beleza
calou tão fundo em meu peito,
que eu senti a sutileza
de um verso mais que perfeito!

Conseguiu tudo dizer-me
com muita, muita emoção
que sem conseguir conter-me,
vibrou forte o coração!

Foi um êxtase de glória,
(não penses, que por despeito)
mas, ouvindo essa vitória
chorei por não tê-la feito.
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LEMBRANDO...

MOTE:
Vou de lembrança em lembrança
revivendo o meu passado...
- Lembrar-te nunca me cansa,
mesmo sofrendo dobrado!
Ercy Maria Marques Faria
(Bauru/SP)


GLOSA:
Vou de lembrança em lembrança

com carinho, dia-a-dia,
procurando uma esperança
que traga a mim, a alegria!

Sigo assim, horas e horas,
revivendo o meu passado...
Choro ao lembrar as demoras
quando longe do meu lado!

Nessa minha relembrança
eu me envolvo por inteira
- Lembrar-te nunca me cansa,
me faz quase feiticeira!

Sem conseguir te esquecer,
revivo o sonho dourado...
Assim que eu quero viver,
mesmo sofrendo dobrado!
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SERENO- BEIJO MOLHADO

MOTE:
Pondo pingos cor de prata
sobre os lençóis da alegria,
o sereno é serenata
com que a noite brinda o dia.
Flávio Roberto Stefani
(Porto Alegre/RS)


GLOSA:
Pondo pingos cor de prata
num brilho que nos seduz,
o orvalho nos arrebata,
enchendo tudo de luz!

Deita-se, languidamente,
sobre os lençóis da alegria,
apagando, suavemente,
toda e qualquer nostalgia!

Parece que ele contrata
uma orquestra, pra tocar...
O sereno é serenata
que vem, o dia acordar!

Sereno é um beijo molhado,
um beijo, pura magia...
Beijo mais que apaixonado,
com que a noite brinda o dia.
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ALGEMAS

MOTE:
A justiça, rica em falhas,
corrompida por esquemas,
enche com glória e medalhas
mãos que merecem algemas.
Gerson Cesar Souza
(São Mateus do Sul/PR)


GLOSA:
A justiça, rica em falhas,
por humanos, constituída,
erra, às vezes, nas batalhas
e, às vezes, até na vida!

Ao vermos a honestidade
corrompida por esquemas,
sentimos que a humanidade
enfrenta eternos dilemas.

Em vez de fortes muralhas
e falta de preconceitos,
enche com glória e medalhas
quem sequer possui direitos!

Vergonhosa é a situação
que abrange nossos sistemas,
premiando com distinção
mãos que merecem algemas.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Outubro de 2004.

Marques de Carvalho (Alegria gaulesa)

Enquanto esperávamos o almoço,— aquele almoço às pressas encomendado no mais que modesto hotel do Pinheiro, fomos dar um passeio pela mata, sob a sombra das grandes árvores copadas.

As senhoras haviam ficado na sala do hotel, aguçando o apetite no bom cheiro de refogado, que lhes chegava da cozinha.

O meu companheiro de passeio era um velhote de 50 anos, grande rosto quadrado, de longas suíças grisalhas em faces tostadas pelo sol da América.

Traváramos conhecimento no pequeno tombadilho da lancha que da cidade nos transportara ao Pinheiro.

Ainda não havia duas horas que nos conhecíamos, e já grande familiaridade se estabelecera entre nós,— essa familiaridade fácil, íntima, passageira, das pessoas que viajam.

Estávamos ainda a bordo, e já o meu simpático companheiro, sentado à amurada, contara-me ser francês, há muitos anos residente na província do Pará, onde tencionava ficar até ao fim da vida.

Sentia-me cada vez mais impulsionado para aquele sujeito cuja existência eu ignorava algumas horas antes, e que presentemente, por motivos que eu não tratava de saber, tão vivamente me atraía a curiosidade.

Quando saltamos para terra,— enquanto subíamos pela escada da ponte,— convidei-o para almoçar conosco, e ele aceitara rindo,— com um riso bonachão de quem é dotado de alma simples, sem duplicidade.

Fora ele quem me prepusera aquela excursão à mata, para darmos tempo a que o hoteleiro preparasse a refeição, que eu já previa frugal e triste, atendendo às condições da terra em que nos achávamos.

Aceitei-lhe de boamente a proposta, com aquela vivacidade alegre de quem vive meses inteiros encadeado ao cepo do trabalho quotidiano e toma, de tempos a tempos, um belo dia para descansar um pouco, em a paz duma povoação de arrabalde, refestelando-se preguiçosamente na relva odorífera dos nossos grandes e soberbos matagais.

E fomos por ali fora, seguindo um carreiro sinuoso, por baixo de farfalhante cúpula de ramos coloridos de um verde-escuro admirável, cuja uniformidade era quebrada pelo vermelho vivo, pelo amarelo e pelo branco das várias flores silvestres, cujas pétalas encolhiam-se um pouco, meio-fanadas pelos raios do sol.

Um forte vento refrigerante e consolador vinha do norte, do lado por onde a vista se perdia no infinito, após o rio que fugia para o mar. O cheiro acre da maresia andava no espaço, casado ao perfume sutil e excitante da baunilha, cujas compridas favas pendiam dos escuros e velhos galhos daquelas árvores seculares. Pássaros voavam céleres, num brando ruflar de asas, soltando pequeninos gritos estrídulos e alegres. De momento a momento, a curta distância de nós, lagartos cinzentos ou verdes fugiam assustados, fazendo estalar o folhedo seco que juncava o solo. E lá muito ao longe, no alto, sobre pedaços de céu de um azul deslavado, que nós entrevíamos pelos interstícios das ramas, urubus recortavam-se muito negros, muito pacíficos e espalmados, nos seus voos arredondados, pairando como numa contemplação enamorada da terra que os sustenta com suas putrefações, com seus resíduos infames e nojentos.

De repente, o meu companheiro disse-me:

— Sentemo-nos aqui. O Sr. já deve estar cansado desta longa caminhada.

Não tinha a mínima acentuação estrangeira; falava como um verdadeiro paraense.

Alongara-se por cima de uma camada de capim verde pouco espessa, de bruços, com o pescoço estendido e o grande chapéu de palha do Chile a descer-lhe para a nuca. Imitei-lhe o gesto, defronte dele.

Ficamos calados por alguns minutos.

Ele fitava o solo, com as narinas palpitantes, como sorvendo em longos haustos sensuais aquele bom cheiro acre e silvestre que a terra exalava. Perguntei-lhe de repente, não achando outra coisa a dizer-lhe:

— O Sr. é casado?

Fitou-me bem na menina dos olhos, com uma expressão investigadora de quem deseja conhecer o fundo do pensamento de seu interlocutor. Depois respondeu:

— Não... Fui... Agora estou novamente solteiro: sou viúvo.

— Ah!

— É verdade. Sou viúvo e tenho-me dado muito bem neste novo estado de quem vive sem as preocupações do homem casado, que tem uma família a sustentar. Bem tolo é quem se casa...

Calou-se, a mirar-se outra vez nos meus olhos.

Um pequeno sorriso enigmático frisava-lhe o lábio superior, traçando nas duas faces profundas rugas oblíquas que, nascendo das asas do nariz, partiam a perder-se nos longos fios grisalhos da parte inferior das suíças.

Eu não compreendia bem o que diziam aquelas palavras, assim sublinhadas por semelhante sorriso.

Ele pareceu-me haver adivinhado a minha dúvida, porque disse, apertando-me as costas da mão direita, como para chamar para si toda a minha atenção: — está curioso, não? Quer talvez saber quem seja esta velha ave de arribação que vive no seu país e que tanta alegria traz sempre no coração, no rosto,— nos lábios e no olhar? É uma história muito longa a minha, meu caro senhor. Sou muito franco: deseja ouvi-la? Não perderá nada com isso; pelo contrário, creio aproveitará alguma coisa com a moral que tirar das minhas palavras, depois de me dar toda a razão nos atos que pratiquei. Logo que me ouvir, o Sr. verificará que é muito certo o rifão: Tristezas não pagam dívidas, e adquirirá a certeza de que, neste mundo, o melhor meio de se gozar saúde e viver tranquilo, é ter o coração calmo como a bonança e grande como a barriga do desembargador Delfino. Ora vire pra cá as ouças e preste atenção.

Sentei-me. Ele fez o mesmo e começou, sorrindo sempre:

 — Quando cheguei ao Brasil, trazia algumas dezenas de contos de réis, herança de meu pai, morto quando eu era menino. Estabeleci-me, achando logo um sócio que possuía capital equivalente ao meu. Ganhamos rios de dinheiro, que o meu sócio conscienciosamente gastava, esbanjava com uma espanhola reles e velhaca de um hotel da cidade.

Um belo dia falimos,— por causa dessas extraordinárias despesas capazes de desfalcarem os repletos cofres de um Cresus. Cuida que apaixonei-me por isso, que fiquei triste, abatido, doente, desanimado, sem vontade para continuar no trabalho honrado? Qual, meu amigo! O meu espírito é refratário a tristezas,— o meu coração grande demais para fazer-se pequenino e mirrado por tão pouca coisa. Um ou dois contos de réis que pude ganhar em certo negócio, após o naufrágio a que fora conduzido pela doidice de meu sócio, empreguei-os em comprar algumas joias de ouro falso, em mercadorias de contrabando, e, com um volumoso carregamento barato, segui para o rio Madeira, a fim de explorar em meu único proveito a ingênua simplicidade dos seringueiros.

Não me falharam os cálculos: meses depois voltei ao Pará, e adquiri maior carregamento, que fui de novo impingir às remotas regiões do alto Madeira, onde os jacarés e onças respeitaram-me sempre a delicada posição de inofensivo estrangeiro, que carece de proteção, que não deve ser ofendido nunca em um país amigo!"

Calou-se. Em sua larga boca de expressão franca e descuidosa estava o eterno sorriso zombeteiro, aquele sorriso simpático, que me atraía para esse homem com toda a enorme força de um robusto afeto nascente.

Acendeu um charuto e continuou:

— Para encurtar prolixidades: seis anos depois de nossa falência, eu regressava definitivamente ao Pará, trazendo uma sólida fortuna amoedada em bons contos de réis palpáveis, em notas do Tesouro, no fundo da mala. Tratei logo de cumprir as imposições de um dever: paguei a todos os credores da massa falida, sem exceção de um só! Uma dessas dívidas da firma era uma anquinha,— uma anquinha! — que meu sócio havia comprado para a sua Vênus andaluza! Fiquei ainda com bastante dinheiro, com que estabeleci-me pela segunda vez,— dessa feita sem sócio, para não mais ser prejudicado por ninguém.

Quis a sorte que eu me apaixonasse por uma formosa rapariga paraense,— farta carnação morenamente excitante e grandes quadris arredondados, divinos,— filha de um subdelegado de polícia. Casei-me com ela alguns meses depois de a ver. Não tinha educação, era estúpida, mas possuía a convicção da beleza nas formas, a imponência da sensualidade no olhar, e eu amava-a! Que me importava o resto?

Dois anos vivi eu nos braços de uma felicidade ilimitada. Luíza a minha cativante mulher adorada, de dia para dia ganhava um palmo em minha infinita afeição serôdia, e cada vez mais revelava-me um esplêndido segredo de sua magnífica beleza de crioula! Era um delírio, uma loucura dulcíssima e purificadora, aquele amor que eu lhe votava com toda a vibrante virilidade do meu corpo e da minha alma! A pequenina casa em que vivíamos era para mim uma Cápua desejada, onde a minha languidez encontrava tranquilo bem estar, nos braços da sedutora Luíza O dia seguinte, que para muitos é um enigma aterrador, apresentava-se-me franca e gostosamente como a fiel reprodução inalterável da véspera e do dia presente. Horas suavíssimas de um amor intenso e bom, como fostes amadas pela pieguice da ingenuidade do meu espírito!"

Calou-se ainda, com o rosto demudado em uma espiritualização prazenteira. Mas fitou-me, e logo o tal sorriso irônico volveu a arregaçar-lhe a rubra ponta do lábio grosso e varonil.

E prosseguiu, após haver acendido o charuto que se apagara:

— Eu tinha inteira confiança em Luíza. Jamais a ideia de uma perfídia de sua parte me passara pelo tranquilo espírito de marido que confia. Como poderiam enganar-me aqueles olhos tão belamente claros e brilhantes, aquela boca de perfumosos lábios que davam beijos tão doces, tão sensuais, tão irritantes? Santa simplicidade das almas descuidosas! O meu espírito era o espelho onde se refletia o meu coração e onde eu supunha ver a alma de Luíza estava realmente a minha, a minha que em breve tinha de ser tão rudemente ferida pelos fatos!

É como lhe digo. Luíza era um demônio, longe de ser um anjo, como eu a fantasiava na benevolência do meu ilimitado amor. De imaginação criadora e ardente, apaixonara-se por um gordo vaqueiro de Marajó, que viera à cidade, e um belo dia, quando, ao cair da tarde, regressei a casa para jantar, não mais a vi: a safardana roubara-me todo o dinheiro que eu tinha em casa e fugira com o sobredito cujo mencionado vaqueiro, como vim logo a saber, por informações ministradas pela vizinhança, com grande vergonha dos meus brios de homem robusto, completo, valente e, na minha valiosa opinião, não de todo incapaz para o principal fim a que visava aquela ardente mulher material e voluptuosa.

E que pensa o senhor que eu fiz para a castigar? Que a persegui com as leis do seu país em punho? Que fui buscá-la ao meio dos touros de Marajó, onde, por certo, ela repousava, muito lânguida e sensual, nos braços do ciclópico vaqueiro? Que expus à irrisão pública, às chufas da plebe, a ignara patifaria de minha mulher e a irreparável desonra do meu nome? Nada disso, meu caro! Deixei-a ir, sem me incomodar! Olhe, mandei-lhe mesmo umas camisas e anáguas de que se esquecera com a precipitação da fuga! Veja até que ponto fui complacente. Veja que santa bondade a minha!

A desgraçada morreu um ano depois, vítima de béri-béri; pois bem; para mostrar a Deus que não sou de todo mau, mandei por alma de minha mulher rezar, na igreja do Carmo, uma triste missa de réquiem, a que assisti com respeito e piedade."

Calou-se, sem uma comoção no rosto ou na voz. Falava como se tratasse do tempo ou da cor do céu naquele momento: com a máxima placidez. E logo o seu velhaco risinho sarcástico saltou-lhe da boca e veio espreitar-me de sobre o lábio superior,— como se fosse um depoimento vivo da tranquilidade daquela alma em face de todos os extraordinários acontecimentos que por cima dela haviam passado, sem conseguirem emocioná-la.

O meu companheiro, o meu estranho conviva, ergueu-se e, acenando-me para que acompanhasse-o, seguiu em direção ao povoado, cantarolando esta pândega quadra do Dia e a Noite, de Lecocq:

Minha mulher, que Deus levou,
Foi-me infiel constantemente;
Nada disso me acabrunhou:
Levei o caso alegremente!


Marques de Carvalho (1866 – 1910)

João Marques de Carvalho (Belém, 6 de novembro de 1866 — Nice, 11 de abril de 1910) foi um escritor, diplomata e jornalista paraense. É autor da obra naturalista Hortênsia, de 1888, ambientada em Belém.

Em 1879, embarca para Lisboa a fim de continuar os estudos de humanidades. Dois anos depois transfere-se para a França. Volta ao Pará, em 1884, iniciando a carreira de jornalista como colaborador do Diário de Belém. Rompe no ano seguinte com esse periódico pela recusa em publicarem o conto "Que bom marido!", declarado imoral. No dia seguinte A Província do Pará o publica. Mais tarde, esse trabalho aparece em Contos Paraenses, 1889.

Em 3 de setembro é representada no Teatro Cosmopolita a comédia em um ato Entre Parentes..., na festa da atriz Aurora de Freitas.

Em 1887, é um dos fundadores e redator-chefe do diário Comércio do Pará.

Em 1888, publica sua obra máxima, Hortênsia, um romance naturalista que retrata um incesto entre dois irmãos. Foi impresso na tipografia da Livraria Moderna, em Belém. Foi reeditado, em 1989, e por último em 1997.

Em 1891, sendo ministro das Relações Exteriores (1891 a 1893) o paraense Justo Leite Chermont, inicia a carreira diplomática como cônsul brasileiro em Georgetown. No ano seguinte é transferido para Assunção como segundo-secretário de legação.

Em 1894, é transferido para Montevidéu como primeiro-secretário. Um ano depois vai para Buenos Aires como encarregado dos negócios. Em 1896, é demitido de suas funções por interferência do ministro Fernando Abbott, que o acusa dos crimes de peculato e estelionato. Volta então para Belém, reiniciando as atividades jornalísticas em A Província do Pará.

Em 1897, vai ao Rio de Janeiro para defender-se da acusação imposta ficando preso no quartel da Brigada Policial.

Em 1898, é condenado por peculato, grau médio, no Supremo Tribunal Federal. Por intermédio de seu advogado, é absolvido no ano seguinte.

Em 1900, funda a Academia Paraense de Letras, que só irá se estabelecer de fato em 1913.

Achando-se doente, fixa residência em Nice, onde falece.

Obras
Georgina, novela, Diário de Belém, 1884
Que bom marido!, conto, Província do Pará, 1885
Entre parentes..., peça, 1885
O sonho do monarcha, poemeto, 1886
Lavas, poemeto, 1886
Paulino de Brito, ensaio, 1887
Hortênsia, romance naturalista, Tip. da Livraria Moderna, Belém, 1888
O livro de Judith, versos e contos, 1889
Contos Paraenses, Tip. de Pinto Barbosa, Belém, 1889 (eBook)*
Entre as Nymphéas, contos e sensações, Buenos Aires, 1896 (eBook)*
A carteira de um diplomata, comentários, Typ. Aldina, 1889
Contos do Norte, tip. da Papelaria Silva, Belém, 1900 (eBook)*
A Bubônica, revista de volumes paraenses, 1904

Referência
COUTINHO, Afrânio; SOUSA, J. Galante de. Enciclopédia de literatura brasileira. São Paulo: Global.

* Os ebooks encontram-se disponíveis no Projeto Gutenberg.
Fonte:
Wikipedia

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Varal de Trovas n. 516

 

Apollo Taborda França (Provérbios em Trovas)

"Água mole em pedra dura"
— No ditado popular...
"Tanto bate até que fura",
não se tem o que negar!
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"A moda não incomoda"
clama incauta a sociedade...
Enquanto isso corre a roda
e se esvai a probidade!
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Amor à primeira vista,
das loucuras a maior...
Nos abaixa muito a crista
e nos cega, o que é pior!
= = = = = = = = = = =

"Amor com amor se paga”,
é verdade inquestionável...
Cicatriza qualquer chaga,
mesmo que tida incurável!
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"Amor com Amor se paga".
Que emotiva sensação...
No coração sempre há vaga,
pra atender esse refrão!
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As palavras que são loucas,
que sacodem a razão...
Temos as orelhas moucas,
pra afastar a confusão!
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"Devagar se vai ao longe",
mas, não parar é preciso.,.
Usar a calma de um monge,
a cautela e o bom juízo!
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Dizem que "águas passadas
não movem moinho" qualquer...
Para muitos "latinadas",
entender se faz mister!
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Dizem "espeto de pau"
para a casa do ferreiro...
Que enriquece o seu mingau,
tendo "prata" o ano inteiro!
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Dizem que "quem planta vento,
colhe logo tempestade"…
Vira a vida num tormento,
pleno de adversidade!
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E "Quem com o ferro fere,
com ferro será ferido"...
Fica num tal miserere,
curtindo choro sofrido!
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E "Nem tudo o que balança
cai" — verdade, felizmente...
Reforça a minha esperança
e me torna mais prudente!
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E no afã da economia,
"barato sempre sai caro"...
Pãodurismo, que mania,
só nos leva ao desamparo!
= = = = = = = = = = =

E "Quem planta vento colhe
tempestade" pela vida...
Se aniquila qual um molhe
que perdeu sua medida!
= = = = = = = = = = =

E "Quem rouba de ladrão"
que se acautele na vida...
Ter cem anos de perdão,
promessa muito atrevida!
= = = = = = = = = = =

Há exceção em toda a regra,
o sistema é flexível...
Pois, que a vida assim se alegra
nada ficando impossível!
= = = = = = = = = = =

"Mais vale quem Deus ajuda"
na vertigem da semana...
"Do que quem cedo madruga"
sempre queimando a pestana!
= = = = = = = = = = =

Não cantes loas ao Chefe,
sofrerás qual um proscrito,
levarás um tal tabefe,
pois, assim está escrito!
= = = = = = = = = = =

Na verdade "Deus ajuda
quem trabalha com amor"...
Recebe honra graúda,
de inestimável valor!
= = = = = = = = = = =

"Nem tudo o que reluz é
ouro", então, tomar cuidados...
Aparência e rapapé,
só nos deixam desconfiados!
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O bem não dura sem fim,
como o mal também não dura...
Então, vivamos assim,
na amizade e na brandura!
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"Para os outros nunca faças,
o que não queres pra ti" ...
As maldades são mordaças,
que perturbam qual saci!
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"Para quem ama o feio
o bonito lhe parece"...
Ter bondade é galanteio,
com nobreza é uma prece!
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"Para um bom entendedor,
só meia palavra basta"...
Para ele um grã-louvor,
por ter compreensão bem vasta!
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Pra você vencer na vida,
ter vitória assim perfeita...
Leve a sério a sua lida,
esta é a melhor receita!
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"Quem espera sempre alcança",
é hoje outra a verdade...
Quem espera só se cansa
e perde a oportunidade!
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"Quem mal cuida, quem mal usa",
mais um adágio importante...
Assim, há quem muito abusa,
jamais ouça o petulante!
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Que reluz nem sempre é ouro,
Que cai nem sempre balança...
Por isso chega de agouro,
não percamos a confiança!
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Sempre "o santo desconfia
quando a esmola é por demais".
Refinada hipocrisia,
a ilustrar nossos anais!
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Sempre que nos cessa a calma,
falta-nos a educação. ..
A rudeza nos fere a alma,
martiriza o coração!

Fonte:
Apollo Taborda França. Trovas maravilhosas.
Curitiba/PR: O Formigueiro, 1986.

Solange Colombara (Carreata de Micro-Contos) – 4 –

MEDO


Não sabe se foi o destino ou simplesmente medo que fez com que ficasse tanto tempo sozinha. Hoje, quase uma septuagenária, "mergulhou de cabeça" e vive intensamente esse grande amor.
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FRIAGEM

Do trem avistava aquele campo lindo, repleto de girassóis. Abriu a janela e sentiu o cabelo flutuando  no frescor da friagem matutina, enquanto sua mãe gritava: "— Fecha isso! Vai ficar doente!"
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MACARRONADA

Nos relances de lucidez sorria ao lembrar da família reunida aos domingos. Os homens jogando mora, a criançada correndo no quintal e o cheiro do molho da macarronada da nonna. Nesses instantes, cantava feliz aquela velha canção italiana.
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RETRATO
(micro-conto sobre a figura abaixo)

Todos os dias, no mesmo horário, ela ia naquele Café e não imaginava que o jovem pintor que ficava na calçada em frente, fazia seu retrato.

O tempo passou, o Café não existe mais e o que restou foi a tela em seu quarto.

Ainda sente o perfume dela nas tardes do verão parisiense.
 

terça-feira, 27 de julho de 2021

Versejando 68

 


Dorothy Jansson Moretti (Criança tem cada uma)

…é o título de um segmento da seção "Fatos e Fofocas" deste jornal. E criança tem mesmo, cada uma!...

As duas que vou contar, acho que bem poderiam figurar com destaque numa dessas antologias de frases infantis.

A primeira foi em Sorocaba. Em casa de meus cunhados, estávamos todos na sala, assistindo à apresentação da novela "Selva de Pedra". Ao ver o sol elevar-se como em explosão, e os prédios emergirem por entre as rachaduras, um garotinho, filho de uma amiga da casa, saiu-se com esta incrível observação:

"Mamãe, agora eu já sei como é que casa nasce." (!!!)

A outra foi no Mackenzie. A professora de música estava ouvindo os pequeninos das séries primárias cantarem o Hino Nacional, e percebeu nitidamente quando um deles, sujeitinho minúsculo, pronunciou: "Em teu formoso céu risonho e límpido, a imagem do Cruzado resplandece..."

"Não é Cruzado", corrigiu ela, rindo. "É Cruzeiro!"

E o pedacinho de gente, muito sério e admirado, replicou:

"Mas não existe mais Cruzeiro, Professora." (!!!)
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Tribuna de Itararé — 09/07/1986

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

Carla Rejane Silva (Poemas Avulsos) 1

FIM DA LINHA


Pois é: fiquei assim
Vazia de tudo
Principalmente de mim

De toda desiludida
Vencida
Pensei tivesse chegado ao fim

E, de fato, cheguei

Hoje não me encontro
Não me acho
Este é o ponto
Virei  alma
Em fracasso

Tento me soerguer
Viver, viver, viver...
Tornar a ser
Eu de novo
E deixar de sofrer
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DESEJO SECRETO

Eu só queria ser feliz
viver um imenso amor
como nunca vivi...
Como nunca senti!
Como, aliás, nunca consegui...

Em busca dele,
andei, procurei
fui, voltei, voltei, fui...
e afinal das contas, me cansei...
me cansei... me cansei...

Inconformada,
tornei a ir
E, de novo  regressar
Mas foi aí que não mais me achei!...
Verdade! Não mais me achei.

Não me encontrei...
e agora, às cegas
me questiono:
PARA ONDE... PARA ONDE  IREI?!

Confesso,
Me perdi na estrada
tão longa me vi
na caminhada
que até agora...

...Não sei onde foi que parei.
Não sei onde foi..
Não sei,
Não sei...
Onde foi que de fato, EU ME ABANDONEI!
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Carla Rejane da Silva Costa dos Santos (nome literário: Carla Rejane Silva). Cinquenta e cinco anos, viúva. Mineira de Araguari, onde nasceu em 1965. Escritora inveterada. Coleciona vários escritos. Pretende lançar seu primeiro livro em um futuro próximo. Sonha, todavia, em perpetuar na literatura que é a sua paixão e quer, simplesmente, ser uma partícula dentro dela e, num futuro próximo poder embriagar os corações de seus leitores. Ainda pequena, dando os primeiros passos como cronista. Tudo o que escreve vem do coração.

Fonte:
Poemas e biografia enviados pela autora.

Jaqueline Machado (Aruanda entre Nós) 3 – Sete Ondas


Sete Ondas sempre girando...
E, pelas ondas do mar,
de vermelho vem cantando
canções de amor ao luar...

 
Ela nasceu à beira mar, frágil e pequenina. Sua mãe, doce mulher, jovem, mas bastante sofrida pelo excesso de lida diária, sentindo–se muito fraca, sabia que ia morrer. Então despede-se da criança, a coloca num barco à deriva que se aproximava da areia e, ali, em meio a lágrimas, pede a Iemanjá, para que salve a sua menina. Depois do esforço físico e emocional, a mulher deita-se novamente na areia. E a mãe d’água, surge ao mote a navegar. Ao entender que a filha estava salva, a pobre mãezinha fecha os olhos e descansa em paz. Nesse momento sofrido, uma sereia vem apanhar sua alma e a conduz até o colorido vale das mães que passam por tal sacrifício.

No porto de uma ilha que em tempos longínquos, sofrera sete maremotos e que por isso acabou sendo batizada como a ilha das sete ondas, o bebê foi entregue. Horas depois a menina é encontrada por uma jovem senhora benzedeira que não podia ter filhos. A mulher, sentindo-se muito feliz, agradece a Iemanjá, o belo presente vindo de suas águas, e depressa vai contar a boa nova para o marido, um bondoso marceneiro que também sonhava em ser pai.

No pequeno povoado, a garotinha crescia saudável e contente. Conversava com as pequenas sereias que surgiam à beira d’água, e ajudava o seu pai nas pescarias. Com o passar do tempo, a menininha foi transformando–se numa linda adolescente. Seus cabelos longos, negros e ondulados, contrastavam com sua pele clara e seus olhos profundamente azuis. Ela possuía uma beleza embriagante. As íris daquele povo jamais refletiram perfeição igual.

A jovem era muito faceira, não perdia um luau e estava sempre cantarolando e dançando, dentro e fora das águas. Os garotos e até mesmo os homens velhos eram apaixonados por sua graça. Mas ela não se interessava por ninguém. Guardava–se para a chegada de um grande amor que sempre lhe surgia em sonhos.

E foi assim que aconteceu.

Certo dia, visitantes marinheiros vindos de uma outra ilha distante, desembarcam no cais e, dentre esses marinheiros, um atrai a sua atenção. Numa noite de festa e entrega de oferendas a Iemanjá, os dois se aproximam, contam histórias curiosas sobre seus povos, sorriem e choram. Tornam-se amigos e logo em seguida iniciam um bonito namoro. Apaixonado, o rapaz decide nunca mais partir. No decorrer de um ano, eles não se desgrudaram. Tinham planos de casar, ter inúmeros filhos e serem felizes para sempre. Mas, por uma misteriosa razão, quis o destino separa-los.

O rapaz foi convocado a defender o seu povo de uma invasão de piratas. Ele não queria ir embora, mas como poderia negar ajuda a seu povo? O marinheiro promete logo voltar, e deixa a moça chorando à beira do cais. Todos os dias ela ia até a beira do mar esperar pelo retorno do seu amado. Essa espera tornou-se um ritual.

Os dias passavam, as semanas, os meses, e o marinheiro não desembarcava de nenhum barco. Com isso, a jovem, foi perdendo a sua constante alegria e, aos poucos, deixou de se alimentar. Seus pais adotivos fizeram de tudo para que ela voltasse à vida normal. Mas os argumentos não foram capazes de recuperar o seu estado de espírito.

A jovem queria morrer, e a grande mãe d’água, não suportando mais vê–la sofrer por amor, em certo entardecer, quando a menina estava deitada sobre uma pedra, com seu jeito amoroso chama por sua protegida. A moça que tinha apenas dezoito anos, atende ao chamado, e Iemanjá, cumprindo a promessa de cuidá-la sempre, a leva para seu reino encantado. Ao chegar no fundo do mar, ela reencontra sua mãe biológica e também o seu amado.

Por ter sofrido muito por amor, a moça é nomeada pela falange dos oceanos, em homenagem à ilha onde cresceu, ao cargo de guardiã das SETE ONDAS, tendo como missão proteger os lares, os templos e os corações sofridos das jovens apaixonadas, que por muitas vezes se deixam naufragar pelas fortes ondas da desilusão.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Arquivo Spina 41: Solange Colombara

  
Fonte:
Solange Colombara e Ronnaldo de Andrade (orgs.). Primeira Antologia Spina.
São Paulo: Areia Dourada, 2021.
Livro enviado por Solange Colombara.

Evely Libanori (Hélio)

"Você pode fazer o favor de comprar ração para a gata do seu pai?" Isso foi quando nós duas acabávamos de chegar das compras do mercado. Me deu uma raiva... Meu pensamento falou: "Mas, mãe, por que a senhora não comprou no mercado?". Mas a minha boca ficou quieta.

Ela se esqueceu, e agora me toca ir ao pet shop, porque voltar no mercado eu não vou, com toda aquela gente de sábado lá, as filas que não têm fim... Fui ao pet shop. O medo de ir lá, o que eu vou ver... Evito passar perto de pet shop, mas de repente eu me vi entrando num deles para comprar ração para a gata do meu pai. Eu não queria ver, mas estava na minha frente: um gatinho tigrado dentro de uma gaiola. O único gatinho na gaiola. Ele era assim, como dizia a minha avó: ele era um gato carijó. Na minha infância houve o galo carijó e o gato carijó. Minha avó me explicava, Aproximava, na cor, as espécies diferentes e me ensinava o amor por todas elas.

Ele era um gatinho carijó, do pelo tigrado e cinza, preso numa gaiola de arame. Desviei o olhar. Lembrei: já tenho doze, não posso mais. Não olhei mais para ele, não olhei, me fiz forte. Fiz o meu pedido no balcão e não olhei mais para o gato tigrado, até que... eu olhei de novo, sim... Eu olhei de novo para o gato, que era tão lindo. E virei a estátua de sal, fiquei para sempre olhando aquela cena que até hoje eu vejo: o gato carijó na gaiola. Ele estava fazendo a coisa mais inocente do mundo: estava brincando.

Na gaiola, amarraram uns penduricalhos e ele brincava com as bolinhas, feliz. Tão lançado à própria sorte, tão abandonado e largado, tão longe de saber o que é a desgraça dos animais abandonados.

Aí eu entendi: "Eu, aqui, pensando que a vida é dura por ter que atender mãe e pai velhinhos, e você, gatinho, ah, e você, gatinho, que está preso sozinho nessa gaiola de arame porque ninguém te quis e está esperando adoção e sabe-se lá se alguém vai te querer e sabe-se lá o que a pessoa que te quiser vai fazer com você... Meu Deus, gatinho, você precisa aprender tudo sobre a vida e a realidade dos gatos sem lar".

O moço do balcão veio conversar e eu perguntei:

"E aquele gatinho ali?". "Vieram deixar aí faz uns quatro dias. Deixaram três e já levaram dois, mas esse aí ficou".

Um gatinho tigrado, pelo curto, rabo fino. Nem sinal de pedigree... E era tão lindo o gato. Um gato carijó...

Então o gato me ensinou uma lição: "Nada de pena de si, mocinha, Olhe ao seu redor. Reconheça quem, de fato, está encrencado". Eu o amei. E decidi: "Não, não vou fazer isso com você! Vou te livrar da miséria da vida porque você me ensinou uma lição". Ele estava tão ferrado e tão feliz, dentro da gaiola de arame... Ele brincava. E eu fui até ele: "Você virá comigo. Será que você é macho ou fêmea?" Tanto fazia, já o amava. Era macho. O nome dele ficou sendo "Hélio", porque é um nome alegre, aberto, e é o sol, o deus.

O Hélio vive comigo, no meu colo. Somos felizes. E essa é a verdadeira história.

Fonte:
Evely Libanori. Nós, animais. SP/RJ: Livro Expressão, 2013.
Livro enviado pela autora.

Therezinha Dieguez Brisolla (À Procura de Estrelas) 3

AMOR PLATÔNICO


De repente, o seu olhar
encontrei na multidão
e vi a vida passar...
Ele esqueceu... mas, eu não!


Desconheces que te amo e, com certeza,
não supões quanto eu sofro ao te encontrar.
Em meio à multidão, com que tristeza,
o meu olhar procura o teu olhar!

E passas sem me ver... eu, indefesa,
sufoco a dor, tentando disfarçar
a emoção que mantém a chama acesa
dessa paixão, que só me faz penar!

Ouço a razão... Mas, antes de partir
atendo o apelo do meu coração.
Quero passar por ti... e me iludir

que o teu olhar, amor de minha vida,
encontre, enfim, em meio à multidão,
meu triste e meigo olhar... de despedida!
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LAR... DOCE LAR…

Volto à casa, que "era minha",
risco a calçada e, feliz,
vou pular amarelinha
mas, o pranto apaga o giz!


Hoje, saudosa, eu volto ao lar antigo
e escancarando a porta semiaberta,
procuro em vão... vasculho o doce abrigo...
Nem pai... nem mãe... a casa está deserta!

E volto ao lar, que dividi contigo...
- Vaivém dos filhos, pela porta aberta...
- Visita alegre de um ou de outro amigo...
E, hoje, é a saudade que o meu peito aperta.

Mas, por deixar pegadas nos caminhos,
não fiquei só!... Cercada de carinhos,
eu sou feliz!... Se volta o sonho louco

do teu amor, acalmo o coração
pois, ao sentir que chega a solidão,
no amor dos filhos eu te encontro um pouco.
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O ORATÓRIO

Ao atender meu apelo
se a vida se faz ingrata,
chego a sentir o desvelo
com que Deus sempre me trata!


A casa, da fazenda, imensa e bela!...
No quarto, que o lampião iluminava,
um oratório... e, à noite, acesa a vela,
alegre ou triste, minha avó rezava.

A casa, na cidade, bem singela!...
No quarto, quando o dia se apagava,
um oratório... e eu lembro a imagem dela,
alegre ou triste, minha mãe orava.

No quarto simples, quando a noite cai,
um oratório... e, a sós, eu clamo ao Pai,
alegre ou triste, muito Lhe agradeço

os dons da paz, saúde, vida e amor
e, de mãos postas, louvo ao meu Senhor,
pois deu-me muito mais do que mereço.

Fonte:
Therezinha Dieguez Brisolla. À procura de estrelas.
Porto Alegre/RS: Odisséia, 2014.
Livro enviado pela poetisa.