sábado, 27 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 305


Fernando Sabino (O Enviado de Deus)


Fazia um dia lindo. O ar ao longo da praia era desses de lavar a alma. O meu fusca deslizava dócil no asfalto, eu ia para a cidade feliz da vida. Tomara o meu banho, fizera a barba e, metido além do mais num terno novo, saíra para enfrentar com otimismo a única perspectiva sombria naquela manhã de cristal: a da hora marcada no dentista.

Mas eis que o sinal se fecha na Avenida Princesa Isabel e um rapazinho humilde se aproxima de meu carro.

— Moço, me dá uma carona até a cidade?

O que mais me impressionou foi a espontaneidade com que respondi:

— Eu não vou até a cidade, meu filho.

Havia no meu tom algo de paternal e compassivo, mais que suficiência na minha voz! Que segurança no meu destino! Mal tive tempo de olhar o rapazinho e o sinal se abria, o carro arrancava em meio aos outros, a caminho da cidade.

Logo uma voz que não era a minha saltou dentro de mim:

— Por que você mentiu?

Tentei vagamente justificar-me, alegando ser imprudente, tantos casos de assalto...

— Assalto? A esta hora? Neste lugar? Com aquele jeito humilde? Ora, não seja ridículo.

Protestei contra a voz, mandando que se calasse: eu não admitia impertinência. E nem bem entrara no túnel, já concluía que fizera muito bem, por que diabo ele não podia tomar um ônibus? Que fosse pedir a outro, certamente seria atendido. Mas a voz insistia: eu bem vira pelo espelho retrovisor que alguém mais, atrás de mim, também havia recusado, despachando-o com um gesto displicente. Nem ao menos dera uma desculpa qualquer, como eu. Não contaria com ninguém, o pobre diabo. Como os mais afortunados podem ser assim insensíveis! Era óbvio que ele não dispunha de dinheiro para o ônibus e ficaria ali o dia todo.

E eu no meu carro, de corpo e alma lavada, todo feliz no meu terninho novo.

Comecei a aborrecer o terno, já me parecia mesmo ligeiramente apertado. Dentro do túnel a voz agora ganhara o eco da própria voz de Deus:

— Não custava nada levá-lo.

Não, Deus não podia ser tão chato: que importância tinha conceder ou negar uma simples carona?

Ah, sim? Pois então eu ficasse sabendo que aquele era simplesmente o teste, o Grande Teste da minha existência de homem. Se eu pensava que Deus iria me esperar numa esquina da vida para me oferecer solenemente numa bandeja a minha oportunidade de Salvação, eu estava muitíssimo enganado: ali é que Ele decidia o meu destino. Pusera aquele sujeitinho no meu caminho para me submeter à prova definitiva. Era um enviado Seu, e a humildade do pedido fora só para disfarçar — Deus é muito disfarçado.

Agora o terno novo me apertava, a gravata me estrangulava, e eu seguia diretamente para as profundas do inferno, deixando lá atrás o último Mensageiro, como um anjo abandonado. Ao meu lado, no carro, só havia lugar para o demônio.

— Não tem dúvida: aquele cara me estragou o dia — resmunguei, aborrecido, acelerando mais o carro a caminho da cidade.

Quando dei por mim, já em Botafogo, entrava no primeiro retorno à esquerda, sem saber por quê, de volta em direção ao túnel.

Imediatamente me revoltei contra aquela tolice, que apenas me faria perder o dentista — o que, aliás, não seria mau. Mas era tarde, e o fluxo do tráfego agora me obrigaria a refazer todo o percurso.

Como explicar-lhe, sem perda de dignidade, que havia mentido e voltara para buscá-lo? Certamente ele nem estaria mais lá.

Estava. Foi só fazer a volta na praia, e pude vê-lo no mesmo lugar, ainda postulando condução. Detive o carro a seu lado. Justificando meu regresso, gaguejei uma desculpa qualquer, que ele mal escutou. Aceitou logo a carona que eu lhe oferecia: sentou-se a meu lado como se fosse a coisa mais natural do mundo eu ter voltado para buscá-lo.

Era mesmo alguém que pedia condução simplesmente porque não tinha dinheiro para o ônibus. Desempregado, ia para a cidade por não saber mais para onde ir — o que já é outra história.

Só não me pareceu que fosse um enviado de Deus: não perdi o dentista e, ainda por cima, Deus houve por bem distinguir-me com um nervo exposto.

Fonte:
Fernando Sabino Deixa o Alfredo Falar!, crônicas e histórias curtas. Publicado em 1976.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XVII


IDADE DE JAMBEIRO

MOTE:
Quando o sol acende a terra
e varre da noite os breus,
em Jambeiro, ao pé da serra
posso ver a mão de Deus!

Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo/RJ


GLOSA:
Quando o sol acende a terra

com sua luz tão bonita,
termina, da noite, a guerra,
numa ternura infinita!

Quando ele chega radiante
e varre da noite os breus,
seu brilho desafiante
ilumina os sonhos meus!

Enorme beleza encerra,
feito um começo de vida,
em Jambeiro, ao pé da serra,
essa cidade querida!

O Sol é vida e calor,
e ao sentir os raios seus,
me embriagando de amor,
posso ver a mão de Deus!
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AMOR DE MENTIRINHA

MOTE:

Mentindo em cada estrelinha,
com tanta sinceridade,
nosso amor de mentirinha
parece até que é verdade!

Elisabeth Souza Cruz
Nova Friburgo/RJ


GLOSA:
Mentindo em cada estrelinha,

deste céu do nosso amor,   
foste essa ilusão tão minha,
com tua luz, teu fervor!

O nosso amor mentiroso,
com tanta sinceridade
sabia ser bem gostoso,
nessa nossa intimidade!

De todos é diferente,
as tuas juras de amor!
Nosso amor de mentirinha    '
jamais conheceu a dor!

Eu nem sei o que pensar,
será sonho ou realidade?
Mas, é bom, assim, amar...
parece até que é verdade!
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ILHA DO FADO

MOTE:

Se o fado se canta e reza
como triste melodia.
Bendita seja a tristeza
que me dá tanta alegria.

Euclides Cavaco
Coimbra/Portugal


GLOSA:

Se o fado se canta e reza
vamos rezar e cantar,
pois cantar, a ninguém lesa,
e é tão bom, quanto abraçar!

Às vezes, o fado soa
como triste melodia,
que ao mesmo tempo, abençoa;
o fado é pura magia!

Clamo sempre na defesa
de qualquer fado que ouvir!
Bendita seja a tristeza
que ele me faça sentir!

Meu coração se engalana
quando o fado o acaricia,
sinto que tem alma humana,
que me dá tanta alegria.
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LETRAS NA AREIA

MOTE:

Este amor que me consome
e esta saudade - entonteia!…
Traço nas dunas teu nome
e beijo as letras na areia!...

Fernando Câncio Araújo
Fortaleza/CE, 1922 – 2013


GLOSA:
Este amor que me consome

mais aumenta a cada dia,
é natural que ele tome
aquela antiga alegria!

Sinto uma imensa saudade
e esta saudade - entonteia!...
Sem peso, sem equidade,
a minha razão cerceia!

Do teu amor, tendo fome,
me lanço às praias, sorrindo,
traço nas dunas teu nome,
teu nome, tão doce e lindo!

Louco de amor e paixão,
eu espero a Lua cheia,
que ilumina a praia, então,
e beijo as letras na areia!...
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FALAR OU CALAR

MOTE:

Quem quer dizer o que sente
não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente;
cala, parece esquecer.

Fernando Pessoa
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935


GLOSA:
Quem quer dizer o que sente

fica às vezes, indeciso,
saber viver o presente
é necessário, é preciso!

As palavras vão sumindo,
não sabe o que há de dizer
de repente, se vão indo,
sem saber o que fazer!

Se fala, eloquentemente,
as dúvidas o atropelam,
fala: parece que mente;
e as palavras se esfacelam!

Se fica mudo, é pior!
Onde a coragem de ser
quer tornar tudo melhor,
cala, parece esquecer.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XXXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. 2007.

A Literatura Portuguesa (Trovadorismo: Novelas de Cavalaria) III

NOVELAS DE CAVALARIA


O Trovadorismo ainda se caracteriza pelo aparecimento e cultivo das novelas de cavalaria. Originárias da Inglaterra ou/e da França surgira a partir das canções de gesta, antigos poemas de temas guerreiros, que em Portugal foram traduzidos, com algumas modificações que buscavam adaptar as novelas à realidade de Portugal.

Circulava entre a nobreza e, traduzidas do Francês, era natural que na tradução e cópia sofresse voluntárias e involuntárias alterações com o objetivo de adaptá-las à realidade histórico-cultural de Portugal.

Convencionou-se agrupar as novelas de cavalaria em três ciclos:

1) ciclo bretão ou arturiano, tendo o Rei Artur e seus cavaleiros como protagonistas;

2) ciclo carolíngio, em torno de Carlos Magno e os doze pares de França;

3) ciclo clássico, referente a novelas de temas greco-latinos.

As novelas de cavalaria têm uma forte conotação religiosa e eram permeadas por ensinamentos cristãos implícitos no enredo das histórias, refletiam o vulto à vida espiritual, a busca pela perfeição moral, a valorização de qualidades como a honra, a bravura, a castidade, a lealdade, a generosidade, a justiça entre outras. Chegaram aos nossos dias as seguintes novelas:
Amadis de Gaula, História de Merlim, José de Arimatéia e A Demanda do Santo Graal.

Amadis de Gaula marca com relevância a ficção da época, através do enredo amoroso e guerreiro, bem ao gosto do gênero, do cavaleiro perfeito, destruidor de monstros, tímido e heroico, apaixonado e fiel a sua amada Oriana, seguindo o modelo dos cantares de amor. A novela surpreende, sobretudo, pela atmosfera de sensualidade que une o par amoroso, em especial pelo fato da amada ter-se oferecido, gentilmente, antes do casamento.

A Demanda do Santo Graal é uma novela mística, tem começo numa visão celestial de José de Arimatéia e no recebimento dum pequeno livro (A demanda do Santo Graal). José parte para Jerusalém; convive com Cristo, acompanha-lhe o martírio da Cruz, e recolhe-lhe o sangue no Santo Vaso. Deus ordena-lhe que o esconda. Tendo-o feito, morre em Sarras. O relato termina com a morte de Lancelote: seu filho, Galahad (Galaaz), irá em busca do Santo Graal.

Conforme Massaud Moisés “(...) A Demanda do Santo Graal contém o seguinte: em torno da "távola redonda", em Camelot, reino do Rei Artur, reúnem-se dezenas de cavaleiros. É véspera de Pentecostes. Chega uma donzela à Corte e procura por Lancelote do Lago. Saem ambos e vão a uma igreja, onde Lancelote arma Galahad cavaleiro e regressa a Camelot. Um escudeiro anuncia o encontro de maravilhosa espada fincada numa pedra de mármore boiando n'água. Lancelote e os outros tentam arrancá-la debalde. Nisto, Galahad chega sem se fazer anunciar e ocupa a seeda perigosa (= cadeira perigosa) que estava reservada para o cavaleiro "escolhido": das 150 cadeiras, apenas faltava preencher uma, destinada a Tristão. Galahad vai ao rio e arranca a espada do pedrão. A seguir, entregam-se ao torneio. Surge Tristão para ocupar o último assento vazio.

Em meio ao repasto, os cavaleiros são alvoroçados e extasiados com a aérea aparição do Graal (= cálice), cuja luminosidade sobrenatural os transfigura e alimenta, posto que dure só um breve momento. Gawain (em português Galvão) sugere que todos saiam à demanda (= à procura) do Santo Graal. No dia seguinte, após ouvirem a missa, partem todos, cada qual por seu lado.

Daí para frente, a narração se entrelaça, se emaranha, a fim de acompanhar as desencontradas aventuras dos cavaleiros do Rei Artur, até que, acaba, por perecimento ou exaustão, ficam reduzido a um pequeno número, e Galahad, em Sarras, na plenitude do ofício religioso, tem o privilégio exclusivo de receber a presença do Santo Vaso, símbolo da Eucaristia, e, portanto, da consagração de uma  vida inteira dedicada ao culto das virtudes morais espirituais e tísicas.

A novela ainda continua por algumas páginas com a narrativa do adulterino caso amoroso de Lancelote, pai de Galahad, e de D. Guinevere, esposa do Rei Artur. Tudo termina com a morte deste último”.

continua…

Fontes:
Célio Antonio Sardagna. Literatura Portuguesa. UNIASSELVI, 2010.
Massaud Moisés. A LITERATURA PORTUGUESA. São Paulo: Cultrix, 2008.
Teófilo Braga. História da literatura portuguesa – Renascença. Lisboa: INCM, 2005. v. 2.

Imagem = Cola da Web

Figueiredo Pimentel (O Sargento Verde)



Formosa, elegante, bem prendada, era Carolina, filha dum importante capitalista, que vivia na cidade do Ouro.

Um dia, apresentou-se no palacete paterno um moço muito bem apessoado, que vinha pedi-la em casamento. A rapariga exultou de alegria; e, com grande satisfação dos pais aceitou-o.

Marcaram o dia das núpcias.

À noite, enquanto os convidados dançavam e folgavam, N. S. da Conceição, que era madrinha de Carolina, apareceu-lhe, e disse-lhe:

– Minha filha: fica sabendo que te casaste com o diabo, metido na figura desse bonito moço. Não faz mal, porém. Logo mais, ele há de te levar para casa. Deves, então, dizer a teu pai, que queres ir montada no cavalo mais magro e mais feio que aqui houver. Quando chegares à encruzilhada do caminho, teu marido há de tomar a direita; tu tomarás a esquerda, mostrando-lhe o teu rosário. Verás, então, o que acontecerá.

Perto da meia-noite, o marido manifestou desejos de se retirar, mandando selar os cavalos. Para Carolina veio um esplêndido alazão, muito gordo e lustroso. A moça, porém, recusou-o, declarando que só montaria no animal mais feio, magro e lazarento que houvesse na estrebaria.

O pai admirou-se muito daquele pedido, mas acedeu aos desejos da filha.

Os noivos cavalgaram e partiram.

Chegando ao lugar em que a estrada fazia uma cruz, o demônio quis que a moça tomasse a direita, e fosse adiante.

– Não! Vá você na frente, que sabe o caminho de sua casa. Eu nunca fui lá, respondeu Carolina sem mais demora.

Tomou a esquerda, e mostrou-lhe o rosário.

Ouviu-se, então, um grande berro, que o diabo soltou. A terra abriu-se. Sentiu-se forte cheiro de enxofre, e o demônio sumiu-se para as profundezas do inferno.

Carolina disparou o cavalo, até chegar muito longe. Aí, cortou os cabelos, e vestiu uma roupa de homem – calça, colete e paletó, feitos de uma fazenda verde, completamente verde.

Continuou a viagem, e chegou à capital do reino, onde foi servir no exército. Sendo promovida, pouco depois, ao posto de sargento, ficou sendo conhecida por sargento Verde.

O rei, ao ver aquele formoso inferior das suas guardas, tomou-lhe grande amizade, e destacou-o para sua ordenança particular, querendo-o sempre em sua companhia.

A rainha apaixonou-se por ele; e tentou seduzi-lo, chegando mesmo a propor-lhe casamento, porque naquele país toda a gente podia casar-se quantas vezes quisesse. No entanto, o sargento Verde recusou trair o seu soberano.

Em vista disso, a rainha foi ao marido e disse-lhe:

– Saiba vossa majestade que o sargento Verde declarou ser capaz de subir e descer as escadas do palácio, montado no seu cavalo, a toda a brida, dançando e atirando ao ar três ovos, e aparando-os, sem que nenhum deles caia e se quebre.

O rei mandou chamá-lo e perguntou se era verdade aquilo.

– Eu não disse tal coisa, real senhor! Mas como a rainha, minha senhora, o afirmou, vou tentar fazê-lo.

O sargento Verde saiu dali muito triste, e sentou-se à porta da casinha que lhe haviam dado para morar, quando seu cavalo o sossegou, dizendo:

– Não tenha receio. No dia marcado, faça o que tem de fazer.

Assim sucedeu; e a rainha ficou desesperada, vendo-o executar fielmente o que ela havia inventado
***

Algum tempo depois, ela tentou novamente seduzi-lo; mas, como da primeira vez, ele não quis atraiçoar o rei.

– Saiba vossa majestade que o sargento Verde disse ser capaz de plantar uma laranjeira pequenina, à hora do almoço e que, à hora do jantar, já estará carregada de laranjas.

O rei chamou-o, e mandou fazer aquele milagre, e tendo o sargento consultado o seu cavalo, conseguiu executá-lo, com grande mágoa da rainha, que queria vê-lo enforcado.

Mas a perversa criatura nem por isso cessou de persegui-lo; e, pela terceira vez, dirigiu-se ao rei:

– Saiba vossa majestade que o sargento Verde declarou ser capaz de ir ao fundo do mar, e tirar a princesa, que ali está encantada.

Carolina, dessa vez, quase morreu de desânimo, julgando impossível sair-se bem daquela dificílima empresa.

O cavalo, porém, acalmou-a, aconselhando:

– Muna-se a senhora de um garrafão de azeite, um punhado de cinza e um agulheiro. Monte em mim; chegue à praia, e, com a espada corte as ondas em cruz, que as águas hão de se abrir. Entre pelo mar adentro, chegará à caverna, onde jaz a princesa encantada. Aí encontrará um dragão marinho, que guarda a moça. Roube-a, monte-a na garupa, e corra a todo galope. O monstro há de persegui-la. Assim que estiver quase a nos pegar, derrame primeiro o azeite, depois a cinza e, por último, o agulheiro.

Carolina procedeu como lhe ensinara o cavalo. Entrou no mar, raptou a princesa, e partiu a toda velocidade.

O dragão marinho perseguiu-a. Quando ia quase pegando-a, ela derramou o garrafão de azeite, formou-se uma grande lagoa, onde o dragão se meteu, quase se afundando.

Conseguiu, finalmente, vencer o primeiro obstáculo, e seguiu no encalço dos fugitivos. Ia novamente alcançá-los. Carolina despejou a cinza. Formou-se um nevoeiro espesso atrás dela, como se fosse uma montanha.

O monstro, depois de inúmeras dificuldades, passou e voou. Ia quase pega não pega o sargento Verde, quando este espalhou o agulheiro. Apareceu uma cerca de espinhos, que entraram no corpo do dragão marinho, matando-o logo.

Chegando ao palácio, o sargento Verde contou a sua história, e voltou a ser a formosa Carolina.

A rainha foi condenada à morte, para castigo das suas diversas mentiras.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 304


Carlos Drummond de Andrade (A Noite da Revolta)


— Minha velha, está na hora de tomar o comprimido para dormir.

— Mas eu não quero dormir. Tem um filme na televisão que eu queria ver.

— Acho melhor você não ficar acordada. Pode não gostar do filme e depois passa a noite em claro.

— Não. Você tome o seu comprimido e eu prefiro ficar acordada.

— Mas eu não sei tomar o meu comprimido sem você tomar o seu. Acho que não vou dormir se tomar o comprimido sozinho.

— Experimente, Artur. Só esta noite.

— Estamos tão acostumados que, se os dois comprimidos não forem tomados juntos, acho que um não faz efeito.

— Ah, Artur, você é a cruz da minha vida. Será possível que eu não possa nem ao menos rever um filme de Cary Grant?

— Estou te estranhando, Lindaura. Nunca pensei que você tivesse paixão por esse Cary Grant.

— Muito bonito, cena de ciúmes a essa altura da vida. Trinta e oito anos de fidelidade, e você me vem com uma coisa dessas. Você se esquece que, quando a Ginger Rogers passou o Carnaval no Rio, o seu assanhamento não teve limites. Não sossegou enquanto não pediu a ela um autógrafo e Deus sabe o que mais.

— Nunca tive nada com a Ginger Rogers. Juro!

— Não teve porque ela não deu bola. Quer saber de uma coisa, Artur? Você diz que o seu comprimido sozinho não faz efeito. Então, tome também o meu. Tome os dois, tome cinco ou dez, e me deixe em paz curtindo o meu Cary Grant!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Pedro Du Bois (Poemas Escolhidos) 6


ARRANJOS

Fosse o amor
mera referência
estatística

o beijo trocado
o expoente
no abraço dado
em divisões

o sim anunciado
em coerente resultado

a vida impõe
o fortuito e a doença
retém o imponderável

o cosmo e o caos
se entrelaçam
na vontade
desconsiderada.
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CONCRETO

Onde desperto
concreta base
inutiliza a vista
do que avisto

paredes
vidros
janelas

concretada paisagem
em altos prédios
onde escondemos
os corpos

fosse ruim a terra bruta
conservada no frescor
do tempo em contato

concretizados
nos recolhemos
em janelas fechadas.
****************************************

LUGAR


No lugar delimitado
das escavações
reduz a pó
o nada
encontrado
sagrado lugar
desabitado
por milênios

faz a sua casa
e senta na varanda
ao entardecer

a paisagem
destrava as portas
e pela abertura
antevê o restante.
****************************************

TROCAS

Além do instante
o trapiche
o barco
a vida dividida
em terra
e água

saber do encontro
entre a chegada
a criação
e a saída

a troca pela afirmação
do corpo na perseguição
das distâncias
e a ânsia
com que procuro
me abrigar ao contato.
****************************************

VEZES


Às vezes a vida
se desprograma
e o padrão
explode
em acontecimentos
inusitados
com que atravessa
o espaço
e ganha a terra
prometida

a vida retorna ao tanto
oferecido na média retórica
com que os dias se reapresentam

ficam gostos e imagens
fragmentados aos poucos
no tempero com que nos avistamos
no espelho.
****************************************

VOLTAR


Quando nossos ancestrais vieram
livres da pobreza europeia
no mundo novo
ganharam espaços
para nos gerarem

não nascemos em terras
secas entre guerras

vicejamos na ignorância
suprida pelo espaço oferecido

perdida a história
sonhamos a volta
aos vales verdejantes
que poderiam ter sido
e não foram.
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VONTADES


Tantas vezes fui embora
                     para sempre
como parar de fumar
                    nunca mais
ou dizer a primeira
mentira do dia

o sempre se mostra perto
e o retorno se faz
                   rápido
como voltar a fumar
ou dizer a primeira mentira
                       do dia

amanhã irei embora
                      para sempre
e levarei os cigarros.

Fonte:
Poemas enviados pelo poeta.

Arthur de Azevedo (Os Compadres)


Um dia o Simeão, que não vinha ao Rio de Janeiro havia dezoito anos, abalou-se de Macaé, e o seu primeiro cuidado, ao chegar ao Pharoux, foi procurar o irmão, o José, de quem não tinha novas nem mandados.

Não lhe foi difícil encontrá-lo numa estalagem do morro do Castelo, onde vivia em companhia da mulher, que acumulava as funções de cozinheira, lavadeira e engomadeira, e de um filho de seis anos, travesso como um demônio.

O Simeão ficou muito aborrecido quando o irmão lhe confessou que não tinha ofício nem benefício, e vivia de expedientes.

- Não tens de que te aborrecer, Símeão: podia ser pior! O grande caso é que nesta choupana almoça-se, janta-se e há mesmo épocas em que se ceia! £ preciso que saibas uma coisa: não ganho vintém que não seja honestamente ganhado. Meto por aí, furo daqui, furo dacolá, e arranjo sempre alguma coisa com que aguentar a vida! Que horas tens no teu relógio?

- Três e um quarto.

- As cinco devo estar em casa do Dr. Paiva, que me mandou chamar. Para quê? Não sei; mas com certeza é para me dar alguma coisa a ganhar. Sei que ele está para amarrar-se com a filha de um negociante da Rua de São Pedro; é, talvez, para alguma comissão relativa ao casamento.

Às 4 horas o José saiu de casa, em companhia do irmão. Desceram o morro e subiram a Rua de São José.

Em caminho encontraram-se com um sujeito gordo, que, ao passar pelo José, gritou:

- Adeus, compadre!

- Quem é? - perguntou Simeão.

- O Rodrigues, uma das primeiras fortunas do Rio de Janeiro.

- É teu compadre?

- É.

Chegaram à avenida, e cruzaram-se com um coronel do Exército, a quem o José saudou com estes termos:

- Boa tarde, Sr. Compadre.

- Boa tarde.

- Também é seu compadre? - perguntou o irmão.

- Também; eu tenho muitos compadres, e são todos homens de posição e fortuna!

- Tens muitos compadres? Quantos?

- Oito.

- Ora essa!

- De que te admiras?

- Eles convidaram-te para padrinhos dos filhos?

- Não; fui eu que os convidei para padrinhos do meu.

- Que diabo de trapalhada é esta? Tu só tens um filho; como podes ter oito compadres?

- A ti o digo porque és meu irmão: meu filho foi batizado oito vezes!

- Oh! sacrilégio!.

- Sacrilégio por quê?... Ele é oito vezes cristão!.

- Mas que ideia a tua!

- Pois então! Eu já não te disse que vivo de expedientes?

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Aparecido Raimundo de Souza (Fui não Indo)

Texto corrigido e com vocabulário


MEU LADO BOM queria ir. Meu LADO MAU não. Meu coração batia descompassado sinalizando: “vai, vai, vai, não perca essa oportunidade. Lute, esbraveje. Não se entregue. Pode ser a sua única chance de ser feliz”.  Meu Lado Mal, como que parafusado ao chão, não saia do lugar, me detinha e me aprisionava. Havia uma guerra dentro de mim onde pelejavam dois exércitos distintos. Um comandado pelo Meu Lado Bom tentava me dar forças, me ver alegre e para cima, me fazer sentir inteiro e sem me privar da vontade de viver.

O outro, frenteado* pelo meu Lado Mau, objetivava a minha decadência, a minha derrota, o meu fracasso. Por isso me agaturrava*. O ar que eu respirava incomodava os soldados dessa tropa. Por essa razão, ele fazia de tudo para que eu não continuasse respirando. Tampouco enxergasse a tenuidade* da luz no final do túnel. Meu Lado Bom queria ir, desatar as amarras, soltar as correntes que me engalfinhavam os passos, que me jungiam* ao desespero. O Lado Mal, intransigente e voraz, dava o contra.

Terminantemente se propunha a não me deixar desvencilhar do cativeiro que me servia de clausura. Colado a esse percalço, alguma coisa mais forte que eu desconhecia completamente me freava, me continha os ímpetos, me domesticava, impedindo que eu alcançasse o futuro. E ele, o futuro portentoso, por sinal, estava logo ali à minha frente. Passos apenas. Nossa mente é como um computador de última geração. Às vezes, dá um tilte. Piripaqueia* se indispondo com algum componente que deixou de funcionar por razões desconhecidas. Do nada o equipamento entra em parafuso, apesar de toda essa modernização que os especialistas chamam de tecnologia de ponta.

Comigo aconteceu assim. Meu Lado Bom apesar de se arrostar*, derreou acabado e vencido. Meu Lado Mal regurgitou de alegria. Deu pulos e saltos. Cambalhoteou diante das anormalidades que me martirizavam. De repente, tomei um choque. Acordei para a realidade. Resolvi me divorciar de todas as aberrações e monstruosidades que me apoquentavam a alma profanada. Meu coração, quase afônico, dava forças, não desistia da empreitada: “vai, vai, vai, não perca essa oportunidade. Lute, esbraveje. Não se entregue. Pode ser a sua única chance de ser feliz”.

Ensandecido pelo baque, arregalei os olhos. Criei uma espécie de coragem atlética de ocasião derradeira. Nessa energia de espírito positivamente “duzentosevinteada” e afoita, eu, arrojado, senhor de mim, rei da cocada preta, não pensei duas vezes. Meti os pés. Fui. Viajei sem sequer me preocupar com meus anseios mais prementes.  Evoluí. Trespassei meus medos, alanceei* meus receios. Rompi, de cabo a rabo, “meu todo não querer”. Atropelei meu Lado Mal com força e coragem. Pervaguei* com ânimo e esperança e segui desvairado como barco navegando por águas novas de um mar desconhecido.

Pior fiz. Parti para o tête-à-tête como um trator de rolo compressor à sanha de Sansão destruindo os obstáculos como barricadas de filisteus postas à minha frente. Apesar de me sentir poderoso e invencível como o lendário nazireu*, igualmente indomável e indestrutível como o temido “caveirão da polícia civil” usado nas favelas do Rio de Janeiro, todos os esforços redundaram malogrados e improfícuos. Descobri final de tudo, ter agido como um estouvado leviano, apesar de me esforçado tentado e pelejado com unhas e dentes, mandíbulas e queixadas.

De verde e amarelo me ferrei. Resultaram inúteis meus trocentos “predicados hostilizadores”. Quando voltei a me “embigodear” com os nus e os crus que se projetaram logo em seguida diante de meu espanto, dei conta de que, apesar do choque, realmente eu fui. Fui, porém não indo. Como assim, não indo?! Simples! Alguém cortou a minha corrente elétrica diretamente na caixa de barramento. O choque veio abrupto e se “pirulitou” repentinamente como entrou em cena. Em verdade, o que pretendo dizer ainda que em sentido figuradamente metafórico, está muito transparente.

Fui ficando. E ficando, logicamente não fui. Diante disso, de novo a desolação frustrante de voltar cabisbaixo ao ridículo indigesto da estaca zero. Fundo do poço. Rua sem saída. Nesse soco violento em meio à fuça, restituí minha sede de me entregar ao ostracismo. Igualmente ao recuo dos meus objetivos, me alienei me sujeitei fraquejado ao degredo dos meus próprios sonhos. À ataraxia* me inerciei de não rinhar, de não tentar de novo, e de novo e de novo... E uma vez mais. De não me encrespar afincadamente nos objetivos a que me propunha.

Nesse roldão da plenitude a meu favor, modorrei. Enfim, desanimei e me couracei* da felicidade etérea. A partir dai definitivamente adveio o FIM. Com certeza, engraçadinhos de plantão farão piadas sem graça, do tipo essa, como exemplo: “quem mandou não pagar a conta no vencimento?”. Em conclusão, brincadeiras à parte, a lição que pretendo deixar de tudo o que aqui foi dito é a seguinte: jamais permita que o seu Lado Mal predomine, sobressaia e esmague o seu Lado Bom.

Mova todas as tentativas de transtornos, aborrecimentos, discórdias e angústias de seu caminho. Alimente dentro de você a visão constante e apropriada, indefectível e ininterrupta daquela luz-chama divina que não se apaga por nada desse mundo. Fique atento: não durma no ponto. Vigie, espreite, policie, bisbilhote e pastoreie. A vida é muito curta, atarefada, ligeira e resumida. Demasiadamente breve e azafamada. Impulsiva e passageira, sobretudo passageira para que o escudo da desventura faça parte assídua do seu dia a dia.
_____________________
Vocabulário:
Agaturrava – segurava.
Alanceei – Golpeei.
Arrostar – defrontar.
Ataraxia – qualquer sensação, fugaz ou permanente, de serenidade, tranquilidade, calma.
Couraçei – blindei.
Frenteado – enfrentado.
Jungiam – submetiam.
Nazireu – era uma pessoa que se consagrava de maneira especial a Deus durante certo período de tempo.
Pervaguei – andei sem destino.
Piripaqueia – tem chilique, tem ataque nervoso.
Tenuidade – condição ou estado do que é tênue.

Fonte:
texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 303


Rachel de Queiroz (Um Sonho)


NÃO ERA UM PESADELO, não dava angústia nem medo, mas sonhei que estava morta. Creio que morta de muito, podia dizer mumificada, mas não: estava era como que transformada em terra, tendo de gente apenas a forma e essa mesma se desfazendo aos poucos. Virada numa espécie de estátua de barro e areia, jogada numa elevação nua do solo, num leito de seixos miúdos, sem lhes sentir contudo as asperezas, porque afinal a nossa substância, a dos seixos e a minha, era quase a mesma. Exposta ao sol e à chuva, os cabelos eram como ervas secas, com as raízes mais secas ainda se afundando no crânio argiloso, os braços de terra dura atirados em cruz, as pontas dos dedos se esfarinhando, o nariz, as orelhas, começando a se esbeiçar. Dentro do peito oco uma pedra jazia de encontro à espinha terrosa — e aquela pedra era o meu coração.

Claro que, estando morta, eu não tinha consciência nem sentidos; a pessoa que via aquele monte de terra com forma de gente, cuja poeira o vento levantava um pouco, essa pessoa não sei quem era. Nem seria um desdobramento da morta, nem sei com que olhos eu me enxergava. Era antes uma percepção que, não sendo consciente, também não era sequer subconsciente, ficava mais abaixo disso, era uma percepção elementar, vaga e mofina, sem sentido de dor nem de nada, apenas aquela como intuição de que eu estava presente, de que eu era.
 
A pura sensação da presença, apenas, desacompanhada de qualquer outra.

E então começou a chover. A princípio a água peneirava em cima da forma ressequida, ia-se embebendo nela, e os contornos esbatidos se acusavam, criando até uma ilusão de vida. Mas à medida em que a chuva engrossava, a água escorria pela face do vulto de terra e ia carregando consigo um pouco dessa terra e, tanto a face, como os dedos, como os contornos do corpo, aos poucos iam se apagando, se dissolvendo, arrastados pela chuva. Passado um tempo, já não havia mais silhueta humana no vulto que se reduzira a um montão de terra, oblongo, como os que se erguem por cima das covas recentes. Parte da terra formada no que tinha sido eu, arrastada pelos regatos da chuva, ia ficando depositada no caminho, em alguma depressão; a outra parte, que a correnteza apanhara com mais força, era carregada até um grande prato d’água que ficava próximo e não era lago nem mar, antes um alagadiço de águas mortas, com raízes negras no fundo de iodo, ramos e folhas verdes emergindo em ilhas redondas, na superfície.

Por fim, do meu vulto deitado naquele cabeço de terreno não restava mais nada senão alguns montículos irreconhecíveis. E, com a substância dele, também se fora aquela sensação de vida elementar, aquele sentido de presença que, de certo modo, testemunhara o sonho. E o limo e a água e as folhas do alagadiço, já não mais açoitados pela chuva, tornaram a dormir, num grande silêncio.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Manuel Bandeira (Antologia Poética) 3


AUTO-RETRATO

Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;

Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;

Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,

Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.
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BACANAL


“Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelinho da mascarada
A gargalhar em doido assomo...
Evoé Momo!
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BOI MORTO


Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto.
Boi morto, boi morto, boi morto.

Árvores da paisagem calma,
Convosco – altas, tão marginais! –
Fica a alma, a atônita alma,
Atônita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o boi morto.
Boi morto, boi morto, boi morto.

Boi morto, boi descomedido,
Boi espantosamente, boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ninguém sabe. Agora é boi morto.
Boi morto, boi morto, boi morto!
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CABEDELO


Viagem… roda do mundo
Numa casquinha de noz:
Estive em Cabedelo.
O macaco me ofereceu cocos.
Ó maninha, ó, maninha,
Tu não estavas comigo!...

- Estavas?...
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CANÇÃO DO VENTO


O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos
O vento varria as flores...
E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes,
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas...
E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos...
O vento varria tudo!
E a minha vida ficava
cada vez mais cheia
de tudo.
****************************************

CONFISSÃO


Se não a vejo e o espírito a afigura,
cresce este meu desejo de hora em hora...
Cuido dizer-lhe o amor que me tortura,
O amor que a exalta e a pede e a chama e a implora.

Cuido contar-lhe o mal, pedir-lhe a cura...
Abrir-lhe o incerto coração que chora,
mostrar-lhe o fundo intacto de ternura,
agora embravecida e mansa agora...

E é num arroubo em que a alma desfalece
de sonhá-la prendada e casta e clara,
que eu, em minha miséria, absorto a aguardo...

Mas ela chega, e toda me parece
tão acima de mim.., tão linda e rara...
Que hesito, balbucio e me acovardo.
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CONSOADA


Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável*),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
_________________________
Nota:
* Caroável – que procura ser amável (através de palavras ou gestos); afável, gentil, afetuoso.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 302


Antonio Roberto de Paula (Chutes, Pedaladas e Outros)


E abrindo a porta da velha edícula, abre o arquivo de memórias. Lágrimas serenas brotam. Ele não sabe identificá-las, não consegue sequer saber por que está chorando. É a liquidez da saudade gerada pela solidez de uma história, ele imagina. No cenário do passado, destacam-se velhas bolas de capotão, no canto, murchas, há tempos sem levar um chute.

Então, enquanto segura a bola e desliza os dedos sobre os gastos gomos, amigos imaginários, crianças saídas de uma velha história vêm visitá-lo e com eles vai para um campinho de terra batida, todos descalços, as traves de bambu. Uma voz vem de bem longe, no momento em que se prepara para desferir um potente arremate em direção ao gol.

É a sua mãe que está chamando para ir para casa. Ela sempre chamava uma, duas, três vezes. Jogava bola como se o dia seguinte não fosse existir. Havia uma necessidade premente de ocupar aquelas horas, de não deixar que elas escorressem sem que fossem usadas em sua totalidade e intensidade. Era preciso ter todo o tempo como se o amanhã estivesse muito distante.

Parado em meio a velhos móveis e objetos, ele traça em instantes sua linha do tempo. Deixou tanto e tantas coisas para trás e agora, num simples gesto de abrir uma porta, trouxe tudo à sua frente. A bicicleta enferrujada, encostada na parede. Como ela era enorme! Para subir, ele precisava pô-la no chão.

Outras vezes, seu pai a segurava até que conseguisse se equilibrar. O prazer de pedalar por ruas poeirentas, de estar com a turma em corridas arriscadas e excitantes. E agora ele acrescenta: corridas inesquecíveis.  Ele chega a sorrir ao recordar os tombos e, sem pensar, toca a cicatriz no cotovelo, eterno carimbo de um tempo.

Uma cômoda com gavetas emperradas e entreabertas e cadeiras manquitolas ainda se sustentam e amparam objetos e papéis.  Gibis espalhados com tantos heróis assassinados pelas editoras, que hoje os mais jovens riem dos pomposos nomes daqueles que mantinham a lei e a ordem do planeta e os sonhos das crianças. Álbuns incompletos de figurinhas. Espaços em branco, destinados aos craques, as tais figurinhas carimbadas. Cadernos de letras e números ingênuos. Revistas com fotos em preto e branco e textos quilométricos. Um quadro de Nossa Senhora coberto pelo pó.

Ele sai, fecha a porta. Olha mais uma vez para aquele pequeno lugar que ficou no tempo. A porta carcomida, como de resto quase todas as tábuas, a janelinha de vidros trincados...

Ele ouve sua mãe novamente o chamando. Estou indo, mãe, ele responde: “Estou sempre indo e vindo nessas histórias, mãe”.


(Do livro de Antonio Roberto de Paula ´- “Diário dos Meus Domingos”, 2011 – textos publicados no jornal O Diário do Norte do Paraná de 2006 a 2009)

Fonte:
Museu Esportivo (crônicas)

Prof. Garcia (Trovas que Sonhei Cantar) 9


Aceita o peso da cruz
e ensina a qualquer pessoa...
Que a intensidade da luz
é mais forte em quem perdoa!
- - - - - -
A dor e o pranto eu diviso,
às vezes, num mesmo rosto,
quando vejo o falso riso
que há no riso do Sol posto!
- - - - - -
Ao longe, um gemido e um canto
das nuvens fechando as portas:
É a tarde bebendo o pranto
dos olhos das horas mortas!
- - - - - -
Aos ritos de cada galho,
a luz do sol, se extasia,
bebendo as gotas de orvalho
dos olhos da noite fria!
- - - - - -
A saudade, sem alarde,
num gesto solto e bonito,
se abraça aos braços da tarde
que cochila no infinito!
- - - - - -
A vida, é um mistério ingente:
Ser feliz, é o sonho meu...
Dá-nos tudo!... E, de repente,
toma aquilo que nos deu!
- - - - - -
Como eu ponho a mão na massa,
sinto a angústia e o desprazer
de quem sente a dor que passa,
alguém, que em paz, quer viver!
- - - - - -
Curvado e já bem velhinho,
arrastando os pés na estrada...
Busca o andarilho sozinho,
as mãos de Deus e mais nada!
- - - - - -
De eterno saber profundo,
Deus pôs, em forma de luz...
Todas as bênçãos do mundo,
nos braços da mesma cruz!
- - - - - -
De volta à praça, onde um dia,
pulei no chão das calçadas...
Eu a noite e a nostalgia,
caminhamos de mãos dadas!
- - - - - -
Em meio a tantos deslizes,
sinto na vida que passa...
Que no pão dos infelizes
falta ternura na massa!
- - - - - -
Esquece as mágoas que vão
e abraça as dores que vêm,
que o silêncio do perdão
põe voz na vida de alguém!
- - - - - -
Fui rever meu chão amado,
que há muito tempo eu não via;
chorei, beijando o passado
e as mãos da casa vazia!
- - - - - -
Há hiatos e há mil ditongos,
reticências, fantasias...
Nas horas dos sonhos longos
das velhas noites vazias!
- - - - - -
Lágrima boba, caída,
que em silêncio, não se explica...
Pode ser mágoa retida
que aos olhos se justifica!
- - - - - -
Madrugada!... E. eu tento vê-las;
mas é noite, e um negro véu,
com ciúme das estrelas,
esconde todas no céu!
- - - - - -
Mesmo apesar da distância,
há uma voz que não me irrita:
Quando escuto a minha infância,
tão pobre, mas tão bonita!
- - - - - –
Não faça jura pequena,
compromisso não quer pressa;
promessa, só vale a pena,
quando se paga a promessa!
- - - - - -
Na onda em que tu navegas,
eu não me arrisco jamais...
Meu medo é que as ondas cegas,
se percam na volta ao cais!
- - - - - -
Num choro triste, incontido,
por tanta flor que nos deu...
Chora o galho entristecido,
beijando a flor que morreu!
- - - - - -
O uirapuru faz a festa
com seu canto meigo e doce;
se não for rei da floresta,
mas canta como se fosse!
- - - - - -
O velho nauta, em seus passos,
olha o céu, põe-se a vogar...
Como se a força dos braços,
fosse a das ondas do mar!
- - - - - -
Por mais que a sorte indiscreta,
acesse a minha crendice...
Mais creio, que não deleta
meus sonhos da meninice!
- - - - - -
Quando a saudade me aperta,
sozinho... E, na tarde morta...
Se o amor, deixa a porta aberta,
a solidão fecha a porta!
- - - - - –
Se a infância, não se refaz,
meus sonhos, tento revê-los...
Beijando o branco da paz
pintado nos meus cabelos!
- - - - - -
Semeia flores... Semeia
e afasta qualquer temor...
Quem incensa a dor alheia,
perfuma as mãos do Senhor!
- - - - - -
Senhor, teu perdão na cruz,
ante os martírios da dor...
Mostrou ao mundo sem luz
a divina Luz do amor!
- - - - - -
Sentindo que a idade avança
sem me causar empecilho,
ergo uma estátua, à esperança,
e outra, ao meu tempo andarilho!
- - - - - –
Sozinho, nas noites calmas,
sempre escuto em meu portão,
o vento batendo palmas
nas sombras da solidão!
- - - - - –
Velho mar, tu não te acalmas;
há culpas no teu penar?...
Tu tens a angústia das almas
na angústia do teu cantar!

Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018. 
Livro gentilmente enviado pelo autor.

Humberto de Campos (Mamãe)


Chapelinho de palha de grandes abas e de grandes fitas atirado para a nuca e preso ao queixo, em baixo, por um elástico de seda que lhe flagiciava as carnezinhas tenras; calcinha pelo joelho, cinto de mulher e bengalinha à mão, vai o Antoniquinho, com os seus três anos de idade, pela rua Gonçalves Dias, arrebatado pela pressa elegante da sua mamãe.

Seguro pela mão esquerda, com a bengalinha na direita, debalde procura o pequenito deter-se diante das vitrinas, para ver os manequins, os macacos de veludo, os ursos de pelúcia, os cavalinhos de pau, as coisas galantes ou vistosas que lhe encantam os olhos. A boquita quase do tamanho do pipo de borracha de que prescindira no ano anterior, não se cansa de papaguear. As suas perguntas, que são as mais ingênuas e atrapalhantes, ficam, porém, sem resposta. D. Odette vai, apressada, sem saber mesmo o motivo, e não pode prestar atenção, ao mesmo tempo, à gentileza dos conhecidos, que a saúdam atenciosos, e à insaciável curiosidade do Antonico.

De repente, com a atenção despertada por um rico vestido de passeio, a moça estaca, sem abandonar a mão do pequeno, diante de um mostruário de modista. Desinteressado das modas, Antonico prefere olhar uma vitrina da casa de flores e aves, que fica ao lado, e em que se vê, perto de um casal de grandes galinhas pretas, alguns ovos de raça. Sem outra coisa a perguntar no momento, o pirralho ergue os olhos muito negros e muito vivos, indagando, em voz cantada e doce, como a de um anjo:

- Mamãe, galinha preta põe ovo branco?

D. Odete não lhe responde; toma-lhe da mãozinha tenra, miúda como um jasmim, e parte, de novo, apressada. Adiante, porém, com a rapidez da marcha, Antonico atrapalha-se com a sua bengala de dois palmos de cumprimento, enfia-a entre as perninhas nuas, tropeça, rodopia, e vai ao chão, esfregando os joelhinhos no asfalto. Vem-lhe uma vontade de chorar, mais do susto do que da queda. O beicito treme, abotoando num cravo. D. Odete prevê, porém, o berreiro, suspende-o do solo pela mão, e infunde-lhe coragem, ânimo, dignidade, sacudindo-lhe com o lenço o joelhinho escoriado:

- Não chore, meu filho, não chore!

E sem dar pelo que dizia:

- Seja "homem", como sua mãe!

Fonte:
Humberto de Campos. Serpente de Bronze.

Lançamento do Livro “Clássicos de Fantasma”

Desta vez, as editoras Ex Machina e Sebo Clepsidra apresentam sua primeira coedição: a mais completa antologia de contos de fantasma já produzida em língua portuguesa, cobrindo um amplo espectro do cânone ocidental, assim como uma seleção de oito obras nacionais (que por si só já renderiam um volume).

São 26 narrativas ao todo, muitas das quais inéditas em português. Além da alentada introdução do professor e especialista em Literatura Fantástica Alexander Meireles da Silva, todos os contos são acompanhados de um breve texto sinóptico de abertura elaborado para contextualizar o autor e a obra em questão.

A Antologia

A antologia conta com a organização de Alexander Meireles da Silva (que também assina a extensa introdução, com 25 páginas que cobrem toda a história do gênero), e a edição de Bruno Costa, o idealizador e editor da mais completa reunião dos contos de H.P. Lovecraft já realizada em língua portuguesa, o projeto de Literatura/ficção que conquistou a maior arrecadação do Catarse em 2016.

O livro terá 360 páginas em papel Pólen light (levemente amarelado para tornar a leitura mais confortável), seu tamanho será de 16 cm de largura por 23 cm de altura e a encadernação será em capa dura para garantir sua durabilidade.

A tradução é de Marta Chiarelli, veterana profissional com farta experiência na literatura fantástica.

Trata-se, portanto, da mesma equipe responsável pela antologia Contos clássicos de vampiro (2012), seu projeto mais bem-sucedido, cuja edição foi selecionada pelo PNBE e adotada como parte do currículo de centenas de escolas em todo o país.

A essa equipe junta-se o editor Cid Vale Ferreira, que traz sua experiência de 16 anos de trabalho no mercado editorial e a expertise de sua especialização em edição de obras góticas e de horror à frente da editora do Sebo Clepsidra.

A seleção abarca desde narrativas da Antiguidade e da Idade Média até textos do século XX. Os critérios que determinaram a entrada de cada narrativa na antologia levaram em conta sua influência nesse filão literário e/ou sua capacidade de ilustrar algum aspecto dessa mesma tradição. Embora alguns dos contos que figuram nessa edição sejam comumente antologizados (justamente por serem incontornáveis devido à sua qualidade e ao lugar que ocupam no cânone do gênero), procuramos também dar lugar àquelas narrativas mais obscuras e raras que o leitor não encontrará em nenhuma outra obra do gênero.

Contos do Livro
O fantasma na literatura estrangeira
A casa assombrada (c. 100 d.C.) | Plínio, o Jovem (62-114 d.C.)
O causo de Thorsteinn, o Tremedor (c. 1390) | Anônimo islandês do séc. XIII
O monge do horror; ou, o conclave de cadáveres (1798) | Anônimo inglês do séc. XVIII
A casa do juiz (1891) | Bram Stoker (1847-1912)
Ligeia (1838) | Edgar Allan Poe (1809-1849)
A estrada enluarada (1907) | Ambrose Bierce (1842-1914)
O fantasma da boneca (1896) | F. Marion Crawford (1854-1909)
O fantasma perdido (1903) | Mary Eleanor Wilkins Freeman (1852-1930)
O papel de parede amarelo (1892) | Charlotte Perkins Gilman (1860-1935)
Kerfol (1916) | Edith Wharton (1862-1937)
Relato de alguns incidentes estranhos na Rua Aungier (1851) | J. S. Le Fanu (1814-1873)
O riquixá fantasma (1885) | Rudyard Kipling (1865-1936)
Toque de pesadelo (1900) | Lafcadio Hearn (1850-1904)
Toque o apito e virei ao seu encontro, rapaz (1904) | M.R. James (1892-1936)
Um Relato da Aparição de Mrs. Veal (1706) | Daniel Defoe (1661-1731)
Julgamento por Assassinato (1865) | Charles Dickens (1812-1870)
Corações perdidos (1904) | M.R. James (1892-1936)
A esquina feliz (1908) | Henry James (1843-1916) 

O fantasma na literatura brasileira
Assombramento (1898) * Afonso Arinos (1868-1916)
As ruínas da Glória (1861) * Fagundes Varela (1841-1875)
O impenitente (1893) * Aluísio Azevedo (1857-1913)
A cadeira (1908) * Veiga Miranda (1881–1936)
Confirmação (1914) * Gonzaga Duque (1863-1911)
Os três círios do triângulo da morte (1922) * Moacir de Abreu (?-?)
A sombra (1926) * Coelho Neto (1864-1934)
A pantasma (1945) * Valdomiro Silveira (1873-1941)
 
Pode ser acessada aqui: https://www.catarse.me/fantasmas

Fontes:
Texto enviado pela Editora Sebo Clepsidra
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