sábado, 21 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 74


Chico Anysio (Opção)


Está chovendo há dois dias. Os carros passam devagar pela rua, temendo o buraco possivelmente encoberto pela água em­poçada. A chuva começou farta, afinou na primeira madrugada, recrudesceu o dia seguinte inteiro, amainou às primeiras horas da noite e agora voltou a cair caudalosa, insistente, ininterrupta, bastarda. Há 48 horas chove, e o céu, pesado de cinzento, não promete estiagem para tão cedo. As nuvens grossas encobrem a cidade, entristecendo-a. O sol, tão esperado para o fim de semana, fica para outra ocasião. O sábado será também chovido, como também o domingo, é de se imaginar. Há ruas que já se transformaram em pequenos riachos e há as que já são rios. Passa um homem de calças arregaçadas, sapatos na mão, lenço inútil na cabeça. Tem a água pelos joelhos e a chuva dentro da alma, molhando-lhe o espírito, esfriando-lhe a vida.

O homem vai devagar. Seus joelhos afastam a água, graças aos passos arrastados, sem levantar o pé do chão. Tem a camisa colada ao corpo, transparente, de molhada. Vê-se o bico do peito, enrijecido pelo frio que a chuva lhe traz. O relógio, guardado no bolso, na fuga da água, está tão encharcado quanto estaria se o levasse no pulso.

O homem está chovido, como a cidade. E triste. Mais do que a cidade, que a esta hora lamenta o fim-de-semana inutilizado pelas águas.

— Chuva fora de tempo...

É julho, mês seco, via de regra. Mas chove há dois dias. Chove o que Deus dá — como comentam na cidade.

O jogo de domingo já foi cancelado, e o serviço de me­teorologia não acena com possibilidades de melhora. Ao contrário.

O homem está voltando do trabalho. É ourives, na Rua Uruguaiana. Mora no Catumbi, onde a chuva molha mais, insiste em permanecer, não apenas na rua, na calçada, mas dentro das casas, pela ineficiência dos bueiros.

Ele abre a porta, entra e continua na chuva. Sua casa é um lago. A água supera a mancha antiga da parede, fabricada pela chuva de janeiro. Os móveis, previamente colocados sobre estrados, já têm os pés molhados.

Não há ninguém para o ajudar a remover a água. Os baldes são despejados no pequeno quintal. A água do quintal aumenta e volta à casa.

A madrugada o encontra exausto, dentro da água, vencido pela chuva. O vidro quebrado da janela da sala permite que por ali entre mais chuva. Ele cola um jornal ao vidro. Por algum tempo a água não entrará por ali.

— Que chuva!

Lá fora, por um momento, a chuva arrefece seu ímpeto.

— Acho que vai parar...

Meia hora depois chove mais do que antes. Quase não escuta o motor de carros, na rua. Todos em casa, fugindo da chuva, com medo da água que desaba do céu, sem piedade, sem cuidado, sem pedir licença.

O homem nota a primeira goteira. Depois percebe que as goteiras são dez, trinta, o teto da casa tem, neste momento, a utilidade de um para-quedas num submarino.

— E agora?

Está dois palmos acima da mancha, a água da chuva. Já não é da chuva, é água da casa, alagadiço em que mora há 17 anos, esperando um aumento que lhe permitirá o apartamento sonhado.

Da janela vê um conjunto residencial na quadra seguinte. Inveja os que lá estão, secos, enxutos, saudáveis, sadios.

O balde, esquecido, está sobre a cômoda do quarto. Nada há a ser feito. E chove mais, há ainda o que chover.

Faz 50 horas que este aguaceiro desaba.

— De onde vem tanta água?

As gavetas foram retiradas e empilhadas sobre os móveis mais altos, tentativa de salvaguardar suas coisas.

Maria, agora, faz mais falta do que nunca. Não que ela pudesse conter a chuvarada, mas o ajudaria com as palavras antigas de incentivo.

— Um dia a gente muda.

O homem está sozinho, no meio da chuva, que cai, em casa, na rua. A cidade molhada acorda mais tarde. Até agora não passaram mais de dez carros na rua. O sábado vai em meio. A fibra do homem caminha para o fim. A chuva das goteiras — incerta — molha pior. A água sobe pela parede, apodrece os móveis velhos, inunda o armário, esfria a vida, refrigera os nervos.

Chove. De noite se vê que chove mais forte. O lampião da calçada mostra os pingos caindo na diagonal, assim postos pelo vento que açoita.

— Haja água.

É o que há. O étager, submerso, é adivinhado pelo homem que caminha idiota pela casa, com água à cintura. Anda sem destino, caminhando autômato pelos três cômodos da casa-lagoa. Senta sobre a cômoda, pernas levantadas para não ter os pés enfiados na água. Tem frio. Põe, nas costas, um cobertor úmido e enrola no pescoço um velho cachecol que era de Maria.

— Maria... Maria... por que você foi embora?

Pela primeira vez o homem fica triste. Deixa as lágrimas caírem do rosto, juntarem-se à água da sala, que é tanta quanto a do mundo.

— Maria... você fez bem em ir embora. Se estivesse aqui...

Não havia esta chance. Maria mudara para o morro, na companhia de um mulato, trabalhador do cais do porto. Trocara o conforto de uma casa no Catumbi pela insegurança de um barraco. O primeiro a cair, quando a chuva começou.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

Poesias Gauchescas (2)


BERNARDO TAVEIRA JÚNIOR

O Boleador     


(...)
E o destro campeiro na fúria indomável,
Seguindo o cavalo que vai a fugir,
As bola meneia com braço de ferro,
Enquanto as não deixa certeiras partir.

E a certa distância que mede co'a vista,
O impulso tenteia visando o bagual,
E após, lá consigo, contando com a presa,
Desprende o seu tiro terrível, fatal!

E as bolas tremendas fungando no espaço,
Lá vão zig-zigs formando no ar;
Lá vão implacáveis cair como um raio
Na frente do bicho que intenta escapar.

E as pernas das bolas o bicho mal sente
Nas mãos lhe tocarem, priscando coiceia,
E quanto mais prisca, coiceia ariscado,
Mais ele se enreda, nas bolas se enleia.

E os fortes campeiros que adoram proezas
Soltaram mil vivas naquela amplidão;
Um tiro de bolas há muito não viam
Com mais bizarria, com mais perfeição.

Eu te admiro e saúdo,
Ó destro boleador!
Mais te dera, se o pudesse
O teu modesto cantor.

CHICO RIBEIRO

Negrinho do Pastoreio


A mão da noite fechara
a porta grande do dia,
era noite e dentro dela
a tempestade rugia...

O vento! Como ventava!
A chuva! Como chovia!
O trovão de boca aberta!
O raio, de quando em quando,
Soltando-se do trovão,
corria dentro da noite,
cortando em riscos de fogo
o seio da escuridão!

Ia fundo a tempestade:
O vento ventando mais,
a chuva chovendo mais.
E o Negrinho, como a ronda,
dentro da noite perdido!...

A tempestade crescendo,
cada vez roncando mais!...

E o Negrinho acocorado
entre as macegas, ouvindo,
ouvindo, vendo e sentindo,
o bate-bate da chuva,
o martelar do trovão.
E o raio...com que violência
cortava o raio a amplidão!...

E o Negrinho ouvindo tudo!
Tudo lhe vem aos ouvidos,
enche-lhe a vista, os sentidos,
menos o passo da ronda,
que lhe confiara o -Sinhô-,
a ronda que a tempestade
de vento e chuva espalhou...

A tempestade crescendo,
cada vez roncando mais!...

Depois, depois ... oh! Senhor!
Depois que tudo acabou,
que a chuva não mais choveu,
que o vento não mais ventou
e o raio se terminou
porque o trovão se calou.

E o Negrinho também!
A não ser pelos milagres,
pelo bem que ele nos presta
quando se perde um tareco,
ninguém mais dentro do mundo
no vão dos dias, das noites,
acompanhado ou sozinho,
conseguiu botar os olhos,
pode encontrar o negrinho!

CYRO GAVIÃO

Petiço     


Esse petiço troncho que, ao passito,
Vem chegando co'a pipa, lá da fonte,
Foi quebra noutros tempos... foi bonito,
Foi mestre, num rodeio e num reponte.

Mas, hoje, nem o relho, nem o grito
Da gurizada já lhe altera a fronte
Indiferente a tudo, ao infinito,
A mais um dia que se lhe desconte.

Até dá pena ver esse sotreta,
Trocando perna, ao lado da carreta
Num caminhar tristonho, passo a passo...

Petiço velho... joia do meu pago!
Saudade amarga que, comigo, trago,
Espera... qu'eu também sinto cansaço.

GLAUCUS SARAIVA

Borracho


Pobre borracho... ajoelhado
no oratório do bolicho!
Teu presente é como o lixo
que sobrou do teu passado.
Tens o futuro castrado
de esperança e ilusões.
Te incorporaste aos balcões
das pulperias do pampa...
Se vives a meia guampa
encharcado de bebida,
é pra esquecer a caída
dessa outra bebedeira
que tomas, a guampa inteira,
no copo amargo da vida.

Mastigando o teu silêncio,
como quem reza baixinho,
vais garganteando aos pouquinhos
teu ato de contrição,
feito de canha e limão
por monges de estranha cúria,
nesta liturgia espúria
praticada no balcão.

Mas não tem quem te absorva,
nem que ouça a tua reza...
Geralmente te despreza
a maioria, borracho.
E, assim, vais vivendo guacho
de carinho e compreensão.
Mas eu te respeito, irmão,
pois diz o velho ditado
que até Deus, penalizado,
frente a criança e ao borracho.
Deus coloca a mão por baixo...

Todos nós somos borrachos,
a canha é que é diferente.
Eu conheço muita gente
que rola por este mundo
vivendo dramas profundos,
embriagado de dor.
Outros, borrachos de amor,
dão tudo, dão corpo e alma,
vivendo a íntima calma
que só nos traz a bondade.

Alguns, ébrios de vaidade,
bebem tragos de si mesmo
e vão ostentando a esmo
garrafões de narcisismo,
canha feita de egoísmo,
indiferença e arrogância.
Outros, pobre ignorância,
se embriagam de dinheiro
e fazem da vida celeiro
para amontoar a riqueza,
vivendo a extrema pobreza
da indigência espiritual.
Algum prefere o imortal
licor feito de esperança
e a realidade amansa
bebendo ilusão e sonho.

E, por fim, nos vem tristonho,
empochado em desencanto,
um que bebe o próprio pranto,
destilado, com certeza,
do alambique da tristeza
que bate no peito seu!
Agora peço: por Deus,
bolicheiro do meu pago,
venha no mais outro trago
que este borracho... sou eu!

GLAUCUS SARAIVA

Lenda do Quero-quero


Nos velhos tempos de antanho,
quando o campo era sem dono
O guasca era um rei no trono
verde-escuro das coxilhas...
Sua corte eram tropilhas
selvagens dos potros bravos.
O pampa não tinha escravos,
onde tudo era igualdade,
E o pendão a Liberdade !
A espora que retinia,
a garrucha, a lança esguia
a boleadeira e os cavalos,
eram somente os vassalos
que o gaúcho conhecia.

Mas um dia a prepotência
mostrou as garras malvadas!
Banhou de sangue as estradas,
cobriu de luto a verdade,
e em troca de liberdade,
trouxe grilhões de negreiro.
Porém o guasca altaneiro
boleou a perna no pingo,
E foi pra luta sorrindo,
porque o destino mandou.
Muito gaúcho tombou,
mas, entre os guascas sombrios,
a prepotência caiu
e a liberdade ficou!

E no lombo das coxilhas,
no largo dos descampados,
cabos de lança, quebrados,
apontavam cemitérios.
E os quero-queros gaudérios,
por sobre aquela tristeza,
pairavam sua nobreza,
como por artes divinas.

E, descendo nas campinas
por onde o sangue rolou,
Um bando imenso pousou
e embaixo d'asa escondidas,
guardavam as pontas perdidas
da lança que o índio amou...

Agora, pela amplidão,
na coxilha e o pampa enorme
o quero-quero não dorme,
como eterno guardião.

Às vezes, na noite escura,
Como um grito de amargura,
estridula seu cantar...
É a alma de algum gaúcho,
que, num último repuxo,
se levantou pra pelear!

E qual um centauro alado
que se ergue do banhado
cavalgando uma ilusão,
voará, como a esperança,
guardando, à ponta de lança,
a Gaúcha Tradição!

Fonte:
http://www.paginadogaucho.com.br/poes/lista.htm

Lima Barreto (Sua Excelência)


O Ministro saiu do baile da Embaixada, embarcando logo no carro. Desde duas horas estivera a sonhar com aquele momento. Ansiava estar só, só com o seu pensamento, pesando bem as palavras que proferira, relembrando as atitudes e os pasmos olhares dos circunstantes. Por isso entrara no cupê depressa, sôfrego, sem mesmo reparar se, de fato, era o seu. Vinha cegamente, tangido por sentimentos complexos: orgulho, força, valor, vaidade.

Todo ele era um poço de certeza. Estava certo do seu valor intrínseco; estava certo das suas qualidades extraordinárias e excepcionais. A respeitosa atitude de todos e a deferência universal que o cercava eram nada mais, nada menos que o sinal da convicção geral de ser ele o resumo do país, a encarnação dos seus anseios. Nele viviam os doridos queixumes dos humildes e os espetaculosos desejos dos ricos. As obscuras determinações das coisas, acertadamente, haviam-no erguido até ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que ele, ele só e unicamente, seria capaz de fazer o pais chegar aos destinos que os antecedentes dele impunham…

E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos, totalmente escrita em caracteres de imprensa, em um livro ou em um jornal qualquer. Lembrou-se do seu discurso de ainda agora.

“Na vida das sociedades, como na dos indivíduos…”

Que maravilha Tinha algo de filosófico, de transcendente. E o sucesso daquele trecho? Recordou-se dele por inteiro:

“Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como Sólon, Justiniano, Portalis e Ihering, todos os filósofos, todos os juristas afirmam que as leis devem se basear nos costumes…”

0 olhar, muito brilhante, cheio de admiração – o olhar do líder da oposição – foi o mais seguro penhor do efeito da frase…

E quando terminou! Oh!

“Senhor, o nosso tempo é de grandes reformas; estejamos com ele: reformemos!”

A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo com que esse final foi recebido.

O auditório delirou. As palmas estrugiram; e, dentro do grande salão iluminado, pareceu-lhe que recebia as palmas da Terra toda.

O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam como um só traço de fogo; depois sumiram-se.

O veículo agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa fosforescente. Era em vão que seus augustos olhos se abriam desmedidamente; não havia contornos, formas, onde eles pousassem.

Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma hora e o mesmo minuto da saída da festa.

– Cocheiro, onde vamos?

Quis arriar as vidraças. Não pôde; queimavam.

Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente. Gritou ao cocheiro:

– Onde vamos? Miserável, onde me levas?

Apesar de ter o carro algumas vidraças arriadas, no seu interior fazia um calor de forja. Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem, no peito, as grã-cruzes magníficas. Graças a Deus, ainda não se haviam derretido. O leão da Birmânia, o dragão da China, o língam da Índia estavam ali, entre todas as outras intactas.

– Cocheiro, onde me levas?

Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem de nariz adunco, queixo longo com uma barbicha, não era o seu fiel Manuel.

– Canalha, para, para, senão caro me pagarás!

O carro voava e o ministro continuava a vociferar:

– Miserável! Traidor! Para! Para!

Em uma dessas vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão que se ia, aos poucos, fazendo quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos do guia da carruagem, a brilhar de um brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu-lhe que estava a rir-se.

O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não podendo suportar o calor, despiu-se. Tirou a agaloada casaca, depois o espadim, o colete, as calças.

Sufocado, estonteado, parecia4he que continuava com vida, mas que suas pernas e seus braços, seu tronco e sua cabeça dançavam, separados.

Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com uma reles libré e uma grotesca cartola, cochilando à porta do palácio em que estivera ainda há pouco e de onde saíra triunfalmente, não havia minutos.

Nas proximidades um cupê estacionava.

Quis verificar bem as coisas circundantes; mas não houve tempo.

Pelas escadas de mármore, gravemente, solenemente, um homem (pareceu-lhe isso) descia os degraus, envolvido no fardão que despira, tendo no peito as mesmas magníficas grã-cruzes.

Logo que o personagem pisou na soleira, de um só ímpeto aproximou-se e, abjetamente, como se até ali não tivesse feito outra coisa, indagou:

– V. Exa. quer o carro?

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

20 de Setembro (Dia do Gaúcho)



Céu, Sol, Sul, Terra e Cor
letra de Jader Moreci Teixeira, mais conhecido como Leonardo (Bagé, 30 de novembro de 1938 – Viamão, 7 de março de 2010)

Eu quero andar nas coxilhas
Sentindo as flechilhas das ervas do chão
Ter os pés roseteado de campo
Ficar mais trigueiro como o sol de verão

Fazer versos cantando
As belezas dessa natureza sem par
E mostrar para quem quiser ver
Um lugar pra viver sem chorar

É o meu Rio Grande do Sul
céu, Sol, sul terra e cor
Onde tudo que se planta cresce
O que mais floresce é o amor
É o meu Rio Grande do Sul
céu, Sol, sul terra e cor
Onde tudo que se planta cresce
O que mais floresce é o amor

Eu quero me banhar nas fontes
E olhar horizontes com Deus
E sentir que as cantigas nativas
Continuam vivas para os filhos meus

Ver os campos cheios de crianças
Sorrindo felizes a cantar
E mostrar para quem quiser ver
Um lugar pra viver sem chorar

É o meu Rio Grande do Sul
céu, Sol, sul terra e cor
Onde tudo que se planta cresce
O que mais floresce é o amor
É o meu Rio Grande do Sul
céu, Sol, sul terra e cor
Onde tudo que se planta cresce
O que mais floresce é o amor

Assista o vídeo da música, na voz de seu compositor em https://www.youtube.com/watch?v=8vf-m-DbWqw

Trovas sobre o Gaúcho


Irmão do sul, que em teu pago
crioulo tens a existência,
o Minuano é afago
e a pampa é a tua querência.
ANGELINA PEREIRA LEITE
Santos/SP


Na mágoa da tua ausência,
vou bebendo solidão,
rememorando a querência
no verde do chimarrão!
BEATRIZ DE CASTRO 
Porto Alegre/RS


Mate-amargo! Chimarrão!
Tu, que um sangue verde estampas,
és a própria tradição
dos verdes campos dos pampas!
DELCY CANALLES 
Porto Alegre/RS

Apeie, peão, se abanque,
venha tomar chimarrão!
Amarre o pingo ao palanque:
- Aqui, ninguém é patrão!
DORALICE GOMES DA ROSA 
Porto Alegre/RS


Chimarrão, tem mais sabor
quando a bomba prateada
volta trazendo o calor
dos lábios da minha amada!
DORALICE GOMES DA ROSA 
Porto Alegre/RS


Querência... O encanto profundo
dos dias calmos, risonhos...
- Um pedacinho de mundo
no mundo azul dos meus sonhos.
ELISABETH N. PASCHOAL
Taubaté/SP


Marcando suas fronteiras,
as bandeiras eram trapos;
e os sonhos, eram bandeiras,
na querência dos Farrapos!
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP


Potro chucro a galopar,
pela vida eu ando ao léu,
campereando meu lugar
na querência lá do céu.
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP


É na comunhão singela
da cuia do chimarrão,
que nosso pago nivela
o campeiro e seu patrão!
LACY JOSÉ RAYMUNDI 
Garibaldi/RS


Campos distantes do pago
e cantos de liberdade,
são as lembranças que afago
no chimarrão da saudade!
LYDIA LAUER 
Caxias do Sul/RS, ???? – 2004


No pago, noite serena
e um chimarrão bem cevado.
Ao pé de mim, a morena.
Lua cheia do outro lado...
LYDIA LAUER 
Caxias do Sul/RS, ???? – 2004

Eu, bagual sarapantado,
da querência removido,
pela saudade boleado
pareço um potro abatido...
LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP


Qual pingaço abichornado,
embretado no caminho,
eu, da querência apartado,
lentamente me definho...
LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP


Minha querência, meus pagos,
na minha imaginação,
o céu nasceu nos teus lagos,
e a paz floriu no teu chão...
MANITA
Niterói/RJ, 1922 - 2011


Como dói a tua ausência,
- nuvem negra em céu azul -
meu amor, minha querência...
coxilhas verdes do sul!
PAULINO ROLIM DE MOURA
São Paulo/SP


Esquece esta vida andeja,
vem tomar um chimarrão,
é cedo, a manhã boceja,
na longa esteira do chão!
WILMA MELLO CAVALHEIRO 
Pelotas/RS

Poesias Gauchescas


ANTONIO AUGUSTO CORONEL CRUZ
Gauchesca     


Canto agora nestes versos
com meu grito entusiasmado
a lida e o povo gaúcho
neste rincão abençoado

Quero falar do chimarrão
do churrasco e do gaiteiro
da linda prenda cheirosa
e do ginete faceiro

Das tropas cruzando as coxilhas
na toada mansa do tropeiro
nos tombos nas domas renhidas
e do galpão hospitaleiro

Canto o minuano cortante
o poncho amigo e o laço
a disparada da ema
e a boleadeira cortando o espaço

Exalto a história dessa gente
valente, simples e altiva
que tem a liberdade como semente
brotando da terra nativa

Sendo farrapo, chimango, maragato
ou peleador no Paraguai
são os rebentos deste Rio Grande
os filhos honrando o pai

Canto um tempo iluminado
pelas faíscas das adagas
pela prata dos arreios
e pelos olhares das amadas

Um tempo de muitas distâncias
vencidas num lombo tobiano
das frescas sangas de pedras
e das noites no chão pampeano

Vendo a tapera silenciosa
sinto um aperto no peito
lembrando o fio do bigode
e outras tradições de respeito

E me vem uma nostalgia infinita
dessa vida gaudéria e passada
uma amarga solidão sem consolo
como a perda da mulher amada

Mas sigo alimentando o braseiro
e ao patrão do céu peço, sincero,
que proteja este mundo campeiro
e o grito do quero-quero

ANTONIO AUGUSTO FAGUNDES
Lenço Branco


Nascido de alma caudilha
- nem por isso menos franca -
Deus te deu essa cor branca
que até de noite rebrilha.
Lua do herói na coxilha,
por de eu for, onde eu ande
e sem que ninguém me mande
eu te canto, troféu mudo
que é puro neste Rio Grande!

Do pica-pau ao chimango
vai um pedaço de glória
e engarupo na memória
com um guascaço de mango
recuerdos de algum charango
que no passado ficou.
Se eu sou assim como sou,
entonado e orgulhoso,
devo a ti, lenço glorioso,
que eu herdei do meu avô.

Das lágrimas de uma china
quando seu índio partia,
de uma lua que alumia
debruçada na campina,
de uma sanga cristalina
que murmurava merencória,
do clarão de uma vitória
deste povo leal e franco
nasceste, meu lenço branco,
para bandeira de glória!

Teu gosto é andar voejando
entre guerreiros e lanças
e acalentar esperanças
entropilhadas em bando.
O futuro está chamando,
já cumpriste o teu ideal
porque o Rio Grande imortal
fez de ti o seu retrato:
oposto do maragato,
puro, atrevido e bagual!

APPARICIO SILVA RILLO
Pago Vago


Vago é meu pago.
Este que trago,
cicatriz em mim,
Raiz de minhas íntimas origens,
veio subterrâneo de onde vim.

Vago é meu pago.
Este que trago,
em músculos e ossos.
Inteiro como foi porque é memória,
flor de perenidade entre destroços.

Vago é meu pago.
Este que trago,
como sombra e manto.
É meu destino a cruz de sustentá-lo
nos alicerces de vento de meu canto.

AURELIANO DE FIGUEIREDO PINTO
Romance do Gaúcho Velho Solito

 
dedicado a Eurípedes Jobim de Oliveira

Quando arranchei neste chão
empecei pelas mangueiras
com essas tronqueras que aí 'stão.
- Já mudei muitas madeiras
mas são as mesm'as tronqueras
que do tempo aguentando vão.

Quando a maior ficou pronta
veio um barrero mui ancho,
e empeçou a erguer seu rancho
de uma tronquera na ponta.

Chegou ... Gostou do lugar.
Deixou de ser cruzador.
E, como eu, pegou na lida,
cada um cuidando sua vida
nenhum pedindo favor.
Porque este rincão convida
para ficar morador.

Eu e ele, dois viventes,
dois tentos da mesma trama.
Eu com os braços, êle com as asas,
cada um barreando a sua casa
tudo a capricho e de fama
nesta chapada campera.
A dele - lá na tronquera !
A minha - em riba da grama.

Ele cantava em sobrado,
fachudo moço bonito
mudando pena em agosto.
Eu ... chimarreava com gosto
meu mate de índio solito.

Outubro chegou, trazendo
promessas de nova era.
Ele avoou longe ... E, na vinda,
trouxe uma amiga tão linda
dourada de primavera.

É bicho invejoso o homem!
No redomão Polvadera
me fui ... ! galope ... teatino ...
aventurando o destino
para campear companhera.

Achei... Trouxe ela ... E empecei
a aquerenciar minha flor,
linda triguera paisana.
Mas no olhar de ressolana
tinha algo que não engana
o tino de um domador ...

O barrerito amoroso,
clareando o dia em verão
abria o bico e cantava.
Eu com a prenda chimarreava
sobre o recosto do oitão.

Domei ... Tropiei ... Plantei muito...
Juntei plata, ... Mas despois ...
Cheguei de viage ... Era um frio !
E achei o rancho vazio!
O rancho que eu fiz pra dois ...

E o que eu passei... Ninguém viu!
No pobre rancho vazio!
No rancho que eu fiz pra dois ...

E o par de barreros?... Lindo!
Quanto mais o tempo andava
mais amizade sem fim!
Um do outro não se esquecia.
Se não cantavam, se via
que era por pena de mim!

Segui mateando solito!
Quis tanto bem ... mal me quis !

E irei pensando até à morte:
- Por que é que eu não tive a sorte
do barrerito feliz?! ...

CACO COELHO
Sonhada Querência
 
Queria que, de repente, tudo fosse diferente,
da vida que tenho aqui, da cidade ir me embora,
Viver a vida de outrora, dos meus tempos de guri..

Queria que a minha casa fosse um ranchito campeiro,
Amigos, gente chegando,
E no fogão , um braseiro,
A carne gorda pingando, na festança do assado,
E a gaita velha tocando um chote bem compassado..

Que os espigões que nos cercam,
Fossem Umbus pro aconchego
Dos gaudérios assoleados, descansando nos pelegos,

Que buzinas, telefones, ruídos que nos consomem,
Martirizando a existência,
Fossem pássaros cantores, nativos,
anunciadores de uma sonhada querencia,

Queria que, de repente, tudo fosse diferente,
da vida que tenho aqui,
Da cidade ir-me embora, viver a vida de outrora,
dos meus tempos de guri.

A cambona no costado, do forte calor do fogo,
no terreiro o eterno jogo do sol nascendo e se pondo...
De mão em mão o porongo, no apojo do mate amargo..
Um cusco junto comigo,
Olfateando por churrasco...
Ouvindo o bater dos cascos, de alguém que ao longe se vai ...
Pisando o treval maduro, das barrancas do Uruguai ..

Queria que, de repente, tudo fosse diferente,
Da vida que tenho aqui, da cidade ir-me embora,
Viver a vida de outrora, dos meus tempos de guri ...

INOEMA NUNES JAHNKE
Orgulho gaúcho


No sul quando nasce o dia
Nasce também à magia,
Esta estranha alegria,
Que se tem ao respirar.

Cevo um mate amargo
Do lado do meu amado,
Em silêncio uma oração
Agradece meu coração.

Agradeço minha terra
Meu pampa sul-rio-grandense,
O Patrão velho lá no céu
Por certo está contente.

Por ver tanto orgulho
Pela sua criação,
Que traz cada gaúcho
Dentro do seu coração.

Sou gaúcha, e isso é certo!
Trago a chama da emoção,
O amor por esta terra
Honrando sua tradição.

Reconheço a beleza
Da nossa amada querência,
Ressaltando  na consciência
A minha essência gaúcha.

Fiel as suas tradições
E disso, não abro mão!
Churrasco campeiro...
Fogo de chão...

E um gostoso chimarrão
Nos braços do meu peão.

INOEMA NUNES JAHNKE
Aventuras no Travesseiro

Tive um sonho meio guapo
Sonhei que era maragato,
De lança e espada na mão,
Lenço amarrado ao pescoço
Pelejando que dava gosto.

Meu cavalo ventania
Pingo malhado
Bem postado
Era minha companhia.

Zumbia lanças ao vento,
Retinia o aço da espada,
Daqueles bravos gaúchos
Que lutavam a meu lado,

Anita de Garibaldi
Passou por mim galopando,
Lado a lado com Garibaldi
Pelejando, pelejando.

Lanceiros negros
Lanças na mão
Com o bravo Teixeira Nunes
Lutando por este chão.

Índios guaranis
E seus cavalos
Tinham pra todo o lado,
Flechas cortando o minuano gelado.

Chimangos e maragatos
Escravos e guaranis,
Sepé Tiaraju herói missioneiro,
Todos os bravos guerreiros.

Juntos lado a lado
Lutando por este pago,
Defendendo nosso estado
Este rincão amado.

A história passou por mim
Como um livro desfolhado,
Cruzando época, tempo, espaço...
Fazendo um estardalhaço.

Dormi lado a lado com o passado
Lutando, pelejando,
Neste mundo encantado
Que trago em mim guardado,
Onde todos os nobres guerreiros
Encontrarão-me no entrevero
Em novas aventuraras no meu travesseiro.

Antonio Carlos de Barros (República Rio Grandense)



20 de setembro – Dia do Gaúcho


No ano em curso, 2019, transcorre o 184º (centésimo octogésimo quarto) aniversário do início do Movimento Farroupilha. Esse Movimento custou o sacrifício de muitas vidas ao Império Brasileiro e ao Rio Grande de São Pedro, foi a luta interna Brasileira de maior duração, perfazendo 9 (nove) anos, 5 (cinco) meses e 10 (dez) dias.

O Movimento Farroupilha teve início em 19/09/1835 e encerrou em 28/02/1845. Podemos dividir esse Movimento em duas etapas distintas à saber:
REVOLUÇÃO FARROUPILHA – 1835 a 1836
GUERRA FARROUPILHA        - 1836 a 1845.



A Revolução estava tramada, através dos Irmãos componentes da primeira Loja Maçônica do Rio Grande do Sul, a Philantropia & Liberdade, sob a obediência do Grande Oriente Nacional Brasileiro. Essa Loja se originou da "Sociedade Literária Correntino", embrião e baluarte do Movimento Farroupilha. Bento Gonçalves da Silva foi o seu primeiro Presidente sendo portanto, no linguajar Maçônico, o primeiro Venerável Mestre dessa Loja Maçônica.

O planejamento estratégico e logístico das primeiras ações revolucionárias foi desenvolvido entre as colunas desse Templo Maçônico, que existe até hoje e está sediado em Porto Alegre/RS, tendo ali sido firmado o Pacto Revolucionário Farroupilha em 18 de
setembro de 1835.

As causas do conflito foram várias, políticas, econômicas, militares e sociais, mas foi essa última que reuniu os diferentes seguimentos sociais no ideal comum e revolucionário, unindo negros, índios e brancos.

A província de São Pedro (Estado do Rio Grande do Sul) era totalmente abandonada pelo poder central. Inexistia uma única escola pública, as estradas eram precárias, não havia uma ponte construída, a infraestrutura era nenhuma. O Império, que nem mesmo as fronteiras defendiam, eram alvos constantes de invasões castelhanas.

As milícias formadas por cidadãos comuns que, esporadicamente viam-se obrigados relegar a um segundo plano suas atividades diárias e fazer às vezes de exército para defender a Pátria. Apesar do seu continuado sacrifício nessas batalhas de fronteiras e apesar da riqueza da Corte advinda do cultivo do café, apesar do massacre de sua população masculina dizimada pelas guerras, apesar do infindável luto das mulheres Gaúchas, o Rio Grande do Sul não recebia qualquer atenção ou reconhecimento por parte do Império. O descontentamento do povo era total. Em cada casa luzia um candeeiro revolucionário, iluminando as consciências para a rebelião necessária. Havia necessidade de mudanças imediatas e já que pelas palavras não houvera efeitos, quem sabe pelas armas o Rio Grande do Sul faria valer os seus direitos.

Como sendo o homem indicado para comandar a rebelião, e com o apoio total da Maçonaria Gaúcha, Bento Gonçalves da Silva tudo organizou na campanha, principalmente acercando-se de liberais valorosos, marcando o dia 20 de setembro de 1835 para a definitiva explosão armada, desenvolvendo o seguinte plano militar:

Finalidade. Conquistar Porto Alegre e derrubar o Presidente da Província, expulsando junto com o seu suporte militar o Comandante das Armas e assumir o controle total da Província.

Objetivo. Conquistar o controle de Alegrete, São Borja, Cruz Alta e respectivas áreas de influências. Conquistar ainda o controle político e militar de Bagé, São Gabriel, Rio Pardo, Piratini, Encruzilhada, Triunfo, Cachoeira e Viamão.

Para isto, Bento Gonçalves já contava com o apoio das unidades de linha de Jaguarão, Bagé, Rio Pardo e São Gabriel.

Bento Gonçalves da Silva e demais revolucionários, juntaram-se nas imediações da Azenha, com outros revoltosos, em torno de 400(quatrocentos), comandados por José Gomes Vasconcellos Jardim e Onofre Pires e partiram para atacar Porto Alegre, em 19 de Setembro de 1835.

No Dia 20 de Setembro de 1835, Porto Alegre era tomada pelo exercito Farrapo, deflagrando assim, a mais longa luta armada enfrentada pelo Império Brasileiro: A Revolução Farroupilha.

Na batalha do Seival os Farroupilhas derrotaram as Tropas Imperiais. Aproveitando o entusiasmo da vitória, General Antônio de Souza Neto Proclamou a República Rio-Grandense, em 11 de setembro 1836, lendo o seguinte texto aos cavaleiros que se encontravam em formação: “Bravos Companheiros da 1ª Brigada de Cavalaria!!! Ontem obtivestes o mais completo triunfo sobre os escravos da Corte do Rio de Janeiro! São sem número as injustiças feitas pelo Governo Imperial!!! Seu despotismo é o mais atroz!!! Os Rio-Grandenses não estão mais dispostos a sofrer a prepotência de um Governo tirânico, arbitrário e cruel!!! Em todos os ângulos da Província bradamos por Independência, República, Liberdade ou Morte!!! Camaradas! Gritemos pela primeira vez!
VIVA A REPÚBLICA RIO-GRANDENSE!!!
VIVA A INDEPENDÊNCIA!!!
VIVA O EXÉRCITO REPUBLICANO!!!
 “Proclamamos a Independência desta Província, a qual fica desligada das demais do Império e forma um Estado livre e independente, com o título de República Rio-Grandense”
.

A declaração foi realizada no campo dos Meneses, onde trocaram a Bandeira Imperial pela da Bandeira Nacional da República Rio-Grandense. É realizada a Eleição Presidencial, sendo eleito o General Bento Gonçalves da Silva.

Chegada ao Pampa de BENTO GONÇALVES, fugiu do Presídio da Bahia, com o auxílio da Maçonaria e do Cônego Antônio das Mercês.  Bento Gonçalves assume a Presidência.

Criação do HINO RIO-GRANDENSE, Letra de Francisco Pinto da Fontoura e Música de José Joaquim de Medanha.

Como a aurora precursora
Do farol da divindade
Foi o Vinte de Setembro
O precursor da liberdade.

Refrão
Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra.
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra.
De modelo a toda terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra.

Mas não basta pra ser livre
Ser forte aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo.
Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra.

Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra.
De modelo a toda terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra.


Em 1966, durante o Regime Militar, a seguinte estrofe foi oficialmente retirada.

Entre nós reviva Atenas
para assombro dos tiranos
Sejamos gregos na glória
e na virtude, romanos


A partir de 1836, aqui se instalou a República Rio-Grandense, com Bandeira, Hino, Moeda, Imprensa, Impostos e Instituições Governamentais próprias.

Quis Deus o nosso Grande Arquiteto Do Universo guiar os Contendores Irmãos na mesma Luz, para a busca da PAZ, pela: LIBERDADE, IGUALDADE e FRATERNIDADE.

A então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul voltou a ser integralmente parte do Brasil em 28 de Fevereiro de 1845 pelo lado Farrapo e 01 de março de 1845 pelo lado do Império, quando foi assinada a paz entre Farroupilhas e Imperiais.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Imagem da Revolução Farroupilha: https://escolaeducacao.com.br

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Trova 359 - Milton S. Souza


Carlos Drummond de Andrade (Caso de Ceguinho)


— Não viu o letreiro: “É expressamente proibida a entrada”?

— Desculpe, mas… O senhor não está percebendo?

A bengala branca palpava terreno. Era cego. Um rapaz tão bem-apanhado! Duas ou três funcionárias aproximaram-se, enquanto o servidor que fizera a pergunta, encabulado, ia dando o fora. Os óculos pretos do ceguinho (todo cego é ceguinho, no coração da gente) ocultavam-lhe pudicamente o mal. Cercado de moças, pareceu mais à vontade, e dirigiu-se a uma delas, por acaso a mais bonita:

— Sei que não é permitido, peço mil desculpas… A necessidade me obriga a isso. Não, não é auxílio. Eu vendo blusas, soutiens, essas coisinhas, compreende?

As moças entreolharam-se, o regulamento não admite comércio em repartição, ainda mais repartição da Fazenda. Mas, pode haver regulamento para ceguinhos? E aquele era tão bem-apanhado. E há sempre necessidade, desejo ou curiosidade de uma blusa nova, um baby-doll. Todas estavam precisadas de alguma coisa, todas estavam, por assim dizer, nuas. Então a moça a que ele recorrera tomou a iniciativa de comprar. Os homens fingiram não perceber a infração. O ceguinho abriu a valise de avião e foi tirando seus artigos. Gabava-lhes a renda finíssima, a qualidade da espuma de látex, o elástico substituível. Pedia licença para estender a blusa no peito das moças, para que vissem o efeito.

Compraram tudo de que precisavam ou não, ele agradeceu à madrinha — porque a essa altura já a considerava madrinha:

— A senhorita me deu sorte. Santa Luzia que a faça muito feliz!

E, apertando-lhe o braço, com efusão:

— Posso pedir mais uma caridade?

Podia. Era acompanhá-lo a outras salas. Ele temia ser mal recebido outra vez. Com o seu anjo da guarda não haveria perigo. E lá se foram, ela guiando, ele vendendo. Que confiança adquirira rapidamente na moça! Ia amparado a seu braço, talvez com um pouco de exagero. Ela ia pensar isso — mas arrependeu-se antes de pensar. Um pobre ceguinho!

Quando extirparás de teu coração, Adelaide, a erva má da suspeita?

Pois com tanto cuidado, ainda assim ele tropeçou em alguém no corredor, e teve de agarrar-se a ela, com expressão ansiosa no rosto. Sua respiração era apressada, tinha as mãos quentes. Que susto! Ficou assim algum tempo, como aninhado em sua benfeitora. Não seria tempo demais? Ela ia de novo achar esquisito. Seria mesmo cego, o rapaz? Aqueles óculos indevassáveis… Conteve-se, antes de sentir-se mais uma vez uma infame pecadora:

— Não é melhor o senhor ir embora? Deve estar cansado, já vendeu bastante…

Ele entendia que não, estava disposto a vender até o fim do expediente, com uma fada a protegê-lo, não é todos os dias que se encontra uma fada no caminho. Ela o foi encaminhando para perto do elevador, dizendo-lhe que não era fada coisa nenhuma, era uma simples datilógrafa mensalista, ele protestava, queria de novo sentir-se aconchegado, defendido, gabava-lhe o perfume… O elevador abriu-se. Com suavidade e firmeza ela o impeliu para dentro, pediu ao cabineiro que tivesse cuidado com o ceguinho — se é que ele era mesmo ceguinho.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 historinhas.

Antônio Augusto de Lima (Poemas Escolhidos)


A SERENATA

Plenilúnio de maio em montanhas de Minas!
Canta ao longe uma flauta, e um violoncelo chora.
Perfuma-se o luar nas flores das campinas,
Sutiliza-se o aroma em languidez sonora.

Ao doce encantamento azul das cavatinas,
Nessas noites de luz mais belas do que a aurora,
As errantes visões das almas peregrinas,
Vão voando a cantar pela amplidão afora.

E chora o violoncelo e a flauta ao longe canta.
Das montanhas, cantando, a névoa se levanta,
Banhada de luar, de sonhos, de harmonia.

Com profano rumor, porém, desponta o dia,
E na última porção da névoa transparente,
A flauta e o violoncelo expiram lentamente.

DE TARDE

Eu vi voando caminho do Ocidente,
O bando ideal de minhas ilusões;
Do sol, um raio trêmulo, dormente,
Dourava-as com seus últimos clarões.

Para longe corriam doidamente
A crença, o amor, meigas aspirações...
Creio até, que entre as aves, tristemente,
Iam partindo os nossos corações.

Além, além... e os pássaros risonhos,
Foram-se todos. Vênus lacrimosa
Brilhou. No mais, deserta a imensidade.

Não! No ocaso do sol e de meus sonhos,
Ficou, ainda a pairar triste e formosa,
A ave formosa e triste da saudade.

ESPERANÇA E SAUDADE

Sorte falaz a que nos guia a vida!
Por que há de ser tão rápida a ventura,
Que só a amamos quando é já perdida
Ou depende de uma época futura?

O que ao presente, mal nos afigura,
Era esperança, há pouco apetecida,
E uma vez no passado, eis que perdura
Como saudade que não mais se olvida.

Há sempre queixas do atual momento,
E entre as datas se eleva o pensamento,
Como uma ponte de sombrio aspeto.

Em busca da ventura que ignoramos,
Temos saudade ao bem que não gozamos,
Ilusão de ilusões, sonho completo.

FLOR MARINHA

Há nos seus ademanes curvilíneos,
A doce languidez da vaga esquiva.
Seus olhos são dois fúlgidos escrínios
De gemas com que o afeto nos cativa.

Flor das espumas, dos corais sanguíneos,
Nenhum tem de seus lábios a cor viva.
Quanto aos cabelos, meu amor define-os:
"Fios de ébano em onda fugitiva".

Não sou homem do mar, contudo afago
Na alma um doido capricho, um sonho vago,
Um vago sonho singular talvez:

É de um dia, na praia, surpreendê-la,
E unir minha sorte à sorte dela,
Sobre o dorso espumante das marés.

O CÉTICO

"Percorro da ciência o labirinto,
Em tudo encontro um eco duvidoso:
Matéria vã, espírito enganoso,
Mentis, tudo é mentira, eu só não minto.

Vejo, é verdade, a vida e a vida sinto,
A caloria, a luz, a dor e o gozo,
A natureza em flor, o sol formoso
E o céu das cores da Aliança, tinto.

Mas quem, senão eu mesmo, vê tudo isto
E quem pode afirmar-me que eu existo,
Visões celestes, velhas nebulosas?"

E em seu crânio a razão desponta e morre,
Como o santelmo fátuo, que discorre
Na solidão das minas tenebrosas.

PAISAGEM NOSTÁLGICA

Deixei meu berço por destino incerto,
Mas a paisagem, guardo-a na pupila.
Guardo-a no coração, donde se estila
Toda a essência das lágrimas que verto.

Sons de sino perdidos no deserto...
Campanários da quase oculta Vila...
Serros magoados que a distância anila,
Mais formosos de longe que de perto.

Não vos esquecerei, por me lembrardes,
Enquanto prantear do alto das tardes,
A estrela Vésper que me viu partir.

Do astro do sonho onde minha alma adeja,
Quando colher as asas, só deseja,
No vosso seio maternal dormir.

VOLTA AO PASSADO

Quis rever em memória o santo abrigo
Onde deixei as ilusões dormindo.
"Vou despertá-las", murmurei, partindo,
"E hei de trazê-las outra vez comigo".

Nova e última ilusão. No sítio antigo,
Jardim outrora florescente e lindo,
Já ninguém dorme. Tudo é morto e findo.
Só de cada ilusão resta um jazigo:

Campas sem epitáfio... Agora é tudo
Um cemitério pavoroso e mudo,
Bem que inda de flores se alcatife.

E dos ciprestes na última avenida,
Vejo a última ilusão que me convida,
Martelando nas tábuas de um esquife!

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 73


Cecy Barbosa Campos (O Artista)


Era um menino bonito, quieto, educado. Na escola, cumpria suas obrigações com eficiência, mas nunca mostrava muito entusiasmo. No recreio, ao invés de participar das correrias e brincadeiras usuais aos garotos de sua idade, preferia sentar-se numa pedra grande, que ficava próxima ao campinho de futebol e, com um graveto na mão, absorver-se, elaborando desenhos na terra úmida que havia no local.

Apesar de seu distanciamento, era estimado pelos colegas. Vez por outra, algum deles se aproximava, sentava-se na pedra ou no chão ao lado e conversava com o "artista" - como o chamavam - até que a agitação característica da idade interrompia o assunto, por mais interessante que fosse.

Assim foi levando a vida, e o tempo passando. Como não causava problemas, era aceito pelos pais e irmãos que não se aprofundavam na questão e ignoravam o seu transitar silencioso sem tentar analisar aquela situação ou considerar se ela era, de fato, normal.

Não havia preocupação financeira na família, de modo que os filhos não tinham obrigações além do estudo.

Ingressando na Universidade, após três anos de curso, os pais lhe perguntaram se já estava próxima a formatura. A resposta surgiu com a maior tranquilidade:

– Não vou me formar, O que ensinam lá, não me interessa. Os rumos que vou tomar são diferentes.

Atônitos, os pais não souberam o que dizer. Passadas algumas semanas, o filho avisou que iria viajar para continuar suas pesquisas e observações pelo mundo. Ninguém conseguiu arrancar-lhe explicações. Disse que não se preocupassem, e que enviaria notícias. Não precisava de dinheiro, pois da mesada que recebia pouco gastava.

De fato, ao contrário dos irmãos, nunca fora de pedir nada e parecia não tomar conhecimento dos depósitos que os pais faziam mensalmente, para os filhos. Usava as roupas que ganhava nos aniversários e natais, principalmente dos de casa, que o consideravam relaxado com a aparência, embora, admitindo que ele era dono de uma elegância natural. Mantinha-se limpo, mas, moda para ele, não queria dizer nada.

Por alguns breves telefonemas e mensagens eletrônicas ainda mais sucintas, os pais iam tendo suas notícias. Souberam que fazia sucesso na Europa e nos Estados Unidos quando depararam com uma entrevista cujo título, "Jovem artista brasileiro fala das obras que produz usando elementos da natureza, tais como terra, folhas e sucata em geral", chamou-lhes a atenção.

Tempos depois, reapareceu em seu país. O estilo era o mesmo; roupas despojadas, um tanto ultrapassadas, largas e confortáveis. Os cabelos tinham crescido e passara a usar sandálias. Bonito, quieto, educado, com um olhar sonhador que transmitia ingenuidade quase infantil.

Ganhava muito dinheiro, mas casara-se mal e a mulher, aplicando-lhe um golpe, levou tudo que ele havia adquirido, deixando-lhe os bolsos e o coração vazios. Não ficou muito tempo em casa dos pais. Sentia-se incomodado com a presença daqueles que sempre conhecera e com as perguntas das quais preferia se esquivar. Não entendia porque as pessoas se interessavam tanto pela vida uns dos outros.

Resolveu partir. Desta vez, soube-se que iria rumo à Amazônia, pois a floresta mais diversificada do planeta poderia proporcionar-lhe novas ideias. Como era de seu feitio, não deu indicações de seu destino. Na verdade, nem ele mesmo sabia.

Ao chegar lá, deixar-se-ia levar pelas águas dos rios, ou pelo vento que sacudia os ramos das árvores.    Ficassem tranquilos que suas notícias chegariam.   

Passaram-se meses. Finalmente, o pai recebe um comunicado vindo do Serviço de Saúde de uma cidadezinha do interior do Amazonas. Pediam a presença de alguém que pudesse identificar um homem branco aparentando pouco mais de trinta anos e que, pelas peças que produzia demonstrava ser artista plástico. Como o homem dificilmente pronunciava uma palavra, pois estava muito debilitado, só após várias tentativas e investigações descobriram aquele endereço e solicitavam a vinda de algum conhecido ou pessoa da família que pudesse encaminhá-lo a tratamento ou levá-lo de volta a casa.

Em lá chegando, o pai, que fora acompanhado do filho mais novo, teve um choque. Encontrou o rapaz magro e abatido, definhando sobre um catre mal-cheiroso. Quase nada restava que lembrasse o jovem de porte elegante e olhos sonhadores. Observando mais detalhadamente, notou que a linha do queixo mostrava a obstinação que marcara a sua vida, sempre isolada dos demais.

O reencontro emocionado mostrou ao artista o sofrimento do pai e a existência de um amor que, até então, não havia percebido.

Sem forças para falar, permaneceu em silêncio, condição que, afinal, era a sua característica. Entretanto, o pai percebeu o brilho que ressurgiu em seu olhar e teve certeza de que, com o cuidado e a atenção de todos, o filho renasceria para a vida.

Retirado num pequeno avião daquele humilde barraco em que se alojara, foi conduzido para um hospital em Manaus, do qual, seria transportado para a casa da família logo que o tratamento inicial o permitisse.

A assistência dos pais, a companhia da mãe, que logo veio ao encontro do filho, e as visitas frequentes dos irmãos fizeram com que seu ânimo retornasse surpreendentemente.

A atitude dos pais mudara em relação a ele. Sentia-se amado, o que não havia notado até então. Ele era o filho que passava despercebido, pois, como não dava trabalho e não participava de farras e bebedeiras, propiciara aos pais uma vida confortável à qual o acomodaram, achando que não precisavam preocupar-se com ele.

A indiferença causa o mais doloroso dos sentimentos. Machuca mais do que a raiva ou a agressão. Sentindo-se ignorado, o rapaz sofria com a sua invisibilidade. Contudo, descortinava agora os caminhos que se abriam a sua frente e se sentia feliz e disposto a percorrê-los.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXVI


OTIMISMOS

Falas só por falar, não que a vida te doa,
não que o mundo te faça desejar um fim.
Quanta gente acharia a tua vida boa
e quantos sonhariam ter um mundo assim...

Tens mais que um rei - que importa se não tens coroa?
Tens teu lar, teu trabalho, e crianças no jardim...
Não andes por aí te maldizendo à toa,
nem a vida e tão má'... nem o mundo é tão ruim...

Falas só por falar... Pensa, a ficarás mudo
ao ver que te pertencem os maiores bens
do mundo, e que afinal a tua vida, é tua!

Basta olhar ao redor, tomar posse de tudo!
Ninguém, por mais que tenha, há de ter o que tens;
se tudo é teu: - o céu, o mar, a praia, a rua!

PALAVRAS

Ah! como me parece inútil tudo quando
sobre nós tenho escrito e hei de ainda compor...
não há verso que valha uma gota de pranto
nem poema que traduza um segundo de dor.

Nem palavra que exprima a singeleza e o encanto
de um pedaço do céu, de um olhar, de uma flor!
Ah! como me parece inútil tudo quanto
na vida, tenho escrito sobre o nosso amor.

Não devia existir a palavra... Devia
existir tão somente a infinita poesia
dos gestos e da luz, - que o amor do meu enlevo

quando o sinto, é profundo, indefinido e imenso,
mas se o chão tão grande quando nele penso
parece-me tão pouco se sobre ele escrevo!

PALAVRAS À TUA TIMIDEZ ...

Antes se arrepender de um gozo ja' vivido
mesmo tendo custado aflição e amargura,
do que o arrependimento de se ter perdido
o que podia ser, ventura . . . ou desventura.

Antes o coração ferido e a alma cheia
de imagens a emoções, de prazeres e amores,
que um destino vazio sobre um chão de areia,
- sem arvores, sem sons, sem fontes a sem flores.

Antes essa certeza amarga, mas sentida,
esse gosto de fel que é mais doce no fundo,
que a imensa solidão de quem fugiu da Vida
e covarde impressão de quem fugiu do mundo!
.......................

Por que temer a vida pelo sofrimento?
Por que preocupações inúteis te consomem?
- O mesmo amor que dói, causa contentamento,
e que falta faria o sofrimento ao homem!

Não transformes a vida em teu próprio degredo
nem queiras perguntar o que ninguém responde.
Abre os olhos, e avança! Abre os bravos, sem medo!
É na vida que a estranha resposta se esconde.

PARADOXO

A dor que abate, e punge, e nos tortura,
que julgamos as vezes não ter cura
e o destino nos deu e nos impôs,

- é pequenina, é bem menor, e até
já não é dor talvez, dor já não é
dividida por dois !

A alegria que às vezes num segundo
nos dá desejos de abraçar o mundo
e nos põe tristes sem querer, depois,

-aumenta, cresce, e bem maior se faz,
já não é alegria é muito mais,
dividida por dois.
..........

Estranha essa aritmética da Vida
nem parece ciência, parece arte,
compreendo a dor menor, se dividida,
não entendo, é aumentar nossa alegria
se essa mesma alegria
se reparte !

PARAÍSO PERDIDO

Penso isto: penso que devemos fugir para nos mesmos.

Não são apenas os amigos que nos levam sem reação,
são os cinemas, os teatros, as horas que perdemos nas ruas
quando nosso quarto se fecha silencioso, sem tempo
e esperanças.

Não são apenas as horas que o trabalho me rouba
inapelavelmente, e que não me serão devolvidas.

É a nossa vida, feita sem tempo e de desencontros,
sem pausa para a criação, sem paz para o recolhimento,
sem silêncio para o pensamento, sempre ininterrupta,
passando por nós, enquanto nos deixamos ficar sem alcançá-la...

Penso isto : só a fuga para nos mesmos seria a salvação.
Conheço um amigo pintor que se encontrou em Itatiaia
e ouve o canto dos pássaros e das águas junto às Agulhas Negras.

Meu amor: sinto que vamos chegando à hora em que
devemos voltar ao Paraíso,
ou jamais o reconquistaremos.

PIANO DE BAIRRO

Na rua sossegada onde moro, - à tardinha,
quando em sombras o céu lentamente escurece,
- um piano solitário, em surdina, - parece
acompanhar ao longe a tarde que definha...

Nessa hora, em que de manso a noite se avizinha,
seus acordes pelo ar tem murmúrios de prece...
- Ah! Quem não traz como eu também, na alma sozinha,
um piano evocativo que nos entristece?

Há sempre um velho piano de bairro, esquecido
na memória da gente, - e que nas tardes mansas
sonoriza visões de outrora ao nosso ouvido.

Seus monótonos sons, seus estudos sem cor,
repetem no teclado branco das lembranças
o inconcluso prelúdio de um longínquo amor!

POR QUÊ?

Por que não hei de colher a flor e o fruto
com uma só mão ?

Por que sempre este duplo gesto, no destino
das coisas bipartidas, se sou um só
e se és uma somente...

Por que serás a flor, hoje serás a flor,
e hei de colher o fruto noutro corpo
que nunca foi botão ?

Ah! se fosses flor e fruto, como outrora,
para que pudesse te colher como dantes
com o mesmo gesto fiel, e a mesma ânsia…

PRECE

Bendita sejas tu em meu caminho!
Bendita sejas tu, pela coragem
com que fizeste de um amor selvagem
esse amor que se humilha ao teu carinho!

Bendita sejas, porque a tua imagem
suaviza toda angústia e todo espinho...
Já não maldigo a insipidez da viagem,
nem me sinto só, nem vou sozinho...

Bendita sejas tantas vezes quantas
são as aves no céu; e são as plantas
na terra; e são as horas de emoção

em que juntos ficamos, de mãos dadas,
como se nossas vidas irmanadas
vivessem por um mesmo coração!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

Lima Barreto (O Feiticeiro e o Deputado)


Nos arredores do “Posto Agrícola de Cultura Experimental de Plantas Tropicais”, que, como se sabe, fica no município Contra-Almirante Doutor Frederico Antônio da Mota Batista, limítrofe do nosso, havia um habitante singular.

Conheciam-no no lugar, que, antes do batismo burocrático, tivera o nome doce e espontâneo de Inhangá, por “feiticeiro”; o mesmo, certa vez a ativa polícia local, em falta do que fazer, chamou-o a explicações. Não julguem que fosse negro. Parecia até branco e não fazia feitiços. Contudo, todo o povo das redondezas teimava em chamá-lo de “feiticeiro”.

É bem possível que essa alcunha tivesse tido origem no mistério de sua chegada e na extravagância de sua maneira de viver.

Fora mítico o seu desembarque. Um dia apareceu numa das praias do município e ficou, tal e qual Manco Capac, no Peru, menos a missão civilizadora do pai dos incas. Comprou, por algumas centenas de mil-réis, um pequeno sítio com uma miserável choça, coberta de sapé, paredes a sopapo; e tratou de cultivar-lhe as terras, vivendo taciturno e sem relações quase.

A meia encosta da colina, o seu casebre crescia como um cômodo de cupins; ao redor, os cajueiros, as bananeiras e as laranjeiras afagavam-no com amor; e cá embaixo, no sopé do morrete, em torno do poço de água salubre, as couves reverdesciam nos canteiros, aos seus cuidados incessantes e tenazes.

Era moço, não muito. Tinha por aí uns trinta e poucos anos; e um olhar doce e triste, errante e triste e duro, se fitava qualquer coisa.

Toda a manhã viam-no descer à rega das couves; e, pelo dia em fora, roçava, plantava e rachava lenha. Se lhe falavam, dizia:

— “Seu” Ernesto tem visto como a seca anda “brava”.

— É verdade.

— Neste mês “todo” não temos chuva.

— Não acho… Abril, águas mil.

Se lhe interrogavam sobre o passado, calava-se; ninguém se atrevia a insistir e ele continuava na sua faina hortícola, à margem da estrada.

À tarde, voltava a regar as couves; e, se era verão, quando as tardes são longas, ainda era visto depois, sentado à porta de sua choupana. A sua biblioteca tinha só cinco obras: a Bíblia, o Dom Quixote, a Divina Comédia, o Robinson e o Pensées, de Pascal. O seu primeiro ano ali devia ter sido de torturas.

A desconfiança geral, as risotas, os ditérios, as indiretas certamente teriam-no feito sofrer muito, tanto mais que já devia ter chegado sofrendo muito profundamente, por certo de amor, pois todo o sofrimento vem dele.

Se se é coxo e parece que se sofre com o aleijão, não é bem este que nos provoca a dor moral: é a certeza de que ele não nos deixa amar plenamente…

Cochichavam que matara, que roubara, que falsificara; mas a palavra do delegado do lugar, que indagara dos seus antecedentes, levou a todos confiança no moço, sem que perdesse a alcunha e a suspeita de feiticeiro. Não era um malfeitor; mas entendia de mandingas. A sua bondade natural para tudo e para todos acabou desarmando a população. Continuou, porém, a ser feiticeiro, mas feiticeiro bom.

Um dia Sinhá Chica animou-se a consultá-lo:

— “Seu” Ernesto: viraram a cabeça de meu filho… Deu “pa bebê”… “Tá arrelaxando”…

— Minha senhora, que hei de eu fazer?

— O “sinhô” pode, sim! “Conversa cum” santo…

O solitário, encontrando-se por acaso, naquele mesmo dia, com o filho da pobre rapariga, disse-lhe docemente estas simples palavras:

— Não beba, rapaz. E feio, estraga—não beba!

E o rapaz pensou que era o Mistério quem lhe falava e não bebeu mais. Foi um milagre que mais repercutiu com o que contou o Teófilo Candeeiro.

Este incorrigível bêbado, a quem atribuíam a invenção do tratamento das sezões, pelo parati, dias depois, em um cavaco de venda, narrou que vira, uma tardinha, aí quase pela boca da noite, voar do telhado da casa do “homem” um pássaro branco, grande, maior do que um pato; e, por baixo do seu voo rasteiro, as árvores todas se abaixavam, como se quisessem beijar a terra.

Com essas e outras, o solitário de Inhangá ficou sendo como um príncipe encantado, um gênio bom, a quem não se devia fazer mal.

Houve mesmo quem o supusesse um Cristo, um Messias. Era a opinião do Manuel Bitu, o taverneiro, um antigo sacristão, que dava a Deus e a César o que era de um e o que era de outro; mas o escriturário do posto, “Seu” Almada, contrariava-o, dizendo que se o primeiro Cristo não existiu, então um segundo!…

O escriturário era um sábio, e sábio ignorado, que escrevia em ortografia pretensiosa os pálidos ofícios, remetendo mudas de laranjeiras e abacateiros para o Rio.

A opinião do escriturário era de exegeta, mas a do médico era de psiquiatra.

Esse “anelado” ainda hoje é um enfezadinho, muito lido em livros grossos e conhecedor de uma quantidade de nomes de sábios; e diagnosticou: um puro louco.

Esse “anelado” ainda hoje é uma esperança de ciência…

O “feiticeiro”, porém, continuava a viver no seu rancho sobranceiro a todos eles. Opunha às opiniões autorizadas do doutor e do escriturário, o seu desdém soberano de miserável independente; e ao estulto julgamento do bondoso Mané Bitu, a doce compaixão de sua alma terna e afeiçoada…

De manhã e à tarde, regava as suas couves; pelo dia em fora, plantava, colhia, fazia e rachava lenha, que vendia aos feixes, ao Mané Bitu, para poder comprar as utilidades de que necessitasse. Assim, passou ele cinco anos quase só naquele município de Inhangá, hoje burocraticamente chamado – “Contra-Almirante Doutor Frederico Antônio da Mota Batista”.

Um belo dia foi visitar o posto o Deputado Braga, um elegante senhor, bem-posto, polido e cético.

O diretor não estava, mas o doutor Chupadinho, o sábio escriturário Almada e o vendeiro Bitu, representando o “capital” da localidade, receberam o parlamentar com todas as honras e não sabiam como agradá-lo.

Mostraram-lhe os recantos mais agradáveis e pinturescos, as praias longas e brancas e também as estranguladas entre morros sobranceiros ao mar; os horizontes fugidios e cismadores do alto das colinas; as plantações de batatas-doces; a ceva dos porcos… Por fim, ao deputado que já se ia fatigando com aqueles dias, a passar tão cheio de assessores, o doutor Chupadinho convidou:

— Vamos ver, doutor, um degenerado que passa por santo ou feiticeiro aqui. E um dementado que, se a lei fosse lei, já de há muito estaria aos cuidados da ciência, em algum manicômio.

E o escriturário acrescentou:

— Um maníaco religioso, um raro exemplar daquela espécie de gente com que as outras idades fabricavam os seus santos.

E o Mané Bitu:

— É um rapaz honesto… Bom moço – é o que posso dizer dele.

O deputado, sempre cético e complacente, concordou em acompanhá-los à morada do feiticeiro. Foi sem curiosidade, antes indiferente, com uma ponta de tristeza no olhar.

O “feiticeiro” trabalhava na horta, que ficava ao redor do poço, na várzea, à beira da estrada.

O deputado olhou-o e o solitário, ao tropel de gente, ergueu o busto que estava inclinado sobre a enxada, voltou-se e fitou os quatro. Encarou mais firmemente o desconhecido e parecia procurar reminiscências. O legislador fitou-o também um instante e, antes que pudesse o “feiticeiro” dizer qualquer coisa, correu até ele e abraçou-o muito e demoradamente.

— És tu, Ernesto?

— És tu, Braga?

Entraram. Chupadinho, Almada e Bitu ficaram à parte e os dois conversaram particularmente.

Quando saíram, Almada perguntou:

— O doutor conhecia-o?

— Muito. Foi meu amigo e colega.

— É formado? indagou o doutor Chupadinho.

— É.

— Logo vi, disse o médico. Os seus modos, os seus ares, a maneira com que se porta fizeram-me crer isso; o povo, porém…

— Eu também, observou Almada, sempre tive essa opinião íntima; mas essa gente por aí leva a dizer…

— Cá para mim, disse Bitu, sempre o tive por honesto. Paga sempre as suas contas.

E os quatro voltaram em silêncio para a sede do “Posto Agrícola de Cultura Experimental de Plantas Tropicais”.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Paulo Leminski (L) "Depois de hoje"


Carolina Ramos (Os Três)


Eram três. Três marginalizados que a fatalidade confinou na mesma cela. E quando a vida, aranha traiçoeira, teceu sua teia, teve o cuidado de envolvê-los muito bem, com fios viscosos, de maneira que não mais se separassem.

Três: — "Bá", o gaúcho, bravo como o diabo, que acumulava no costado sabe-se lá quantas mortes! “Mengo", carioca, alma de cuíca gemedora, cumprindo pena sem saber se, fruto inocente da violência urbana, ou culpado, pela contribuição pessoal, para um todo violento, ainda que por interferência mínima. Certo, é que estava entre as grades, com maior ou menor culpa, a batucar nas paredes o protesto ritmado contra o peso excessivo da mão da lei, pousada sobre seus ombros. O terceiro era mineiro. Desconfiado, sim, entremeando estágios de mutismo, com fases de loquacidade desenfreada. Pagava o pecado, amargo, da cupidez incontrolada. Estupros vários. Um deles seguido de morte.

Eram três diabos, vindos de pontos diferentes, a arder na mesma fornalha da Pauliceia. Entendiam-se. Chegavam às confidências. Arquitetavam planos para o futuro. E desses planos a violência não constava.

A boa conduta dos três presidiários chegou aos altos escalões, com retorno satisfatório.

A notícia de que poderiam passar as festas natalinas em liberdade condicional, junto às famílias, foi recebida com particular entusiasmo pelo gaúcho.

— Bá! Presente de Pai Noel! Melhor, só a liberdade definitiva!

A alma queixosa do "Mengo" despertou como cuíca em Quarta-feira de Cinzas, melancólica, gemendo em surdina, num canto da cela.

O mineiro, ou "Mineirão", nome de guerra, introverteu-se. Deixou-se engolir pelo silêncio, no canto oposto.

Sem eco, a alegria do gaúcho esmoreceu como gaita murcha:

— E então?! — indagou, desafiante, aos dois vultos encolhidos.

A única resposta veio, soluçada, lá das bandas cariocas:

— Belo presente, meu! Mas, só mesmo pra quem tem sapato. Quem não tem família, fica como noix, no tanto faix, como tanto feix!

"Mineirão" nem deu sinal de vida. Enrustido em si mesmo, era cápsula, hermética, resguardando os próprios pensamentos. Ostra, fechada, preservando a pérola.

As lembranças das confidências trocadas fizeram-se presentes na cabeça eufórica do Bá. A verdade é que os dois companheiros de reclusão não tinham família e, portanto, não tinham, também, motivos para partilhar da alegria que lhe inflava o peito atlético.

— Duro não ter ninguém lá fora! Duro demais, tche!...

No ermo da cela, um raio de magnanimidade acoplou-se sobre os cabelos negros e lisos do gaúcho, que decidiu a questão:

— Nada de tristeza, amigos... os dois vão comigo. Tenho uma casa, tche... tenho uma guapa chinoca e uma guria que é uma beleza! Onde comem três... comem cinco! Estamos conversados.

Piscou o olho malicioso, acariciando os fartos bigodes:

— Vais provar o chimarrão, mineiro velho! E tu também, Mengão. Os dois vão conhecer os pampas, ao sentir o mate quentinho escorregar goela abaixo, até a cuia roncar de gozo. Barbaridade! não há coisa melhor no mundo! Só mesmo o beijo da minha chinoca consegue ganhar dessa gostosura! Bah!

Na penumbra da cela, dois pares de olhos ganharam brilho.

Ninguém interrompeu o devaneio gauchesco. Logo, havia festa antecipada, ao toque dos preparativos para a partida.

Presentes! Precisavam levar presentes. Ao menos, para a menina.

O mineiro, vasculhando os "trens", encontrou a caixinha de guardar badulaques, feita, por ele mesmo, de fósforos queimados. Trabalho paciente, que deveria agradar a chinoca do Bá.

Isto lembrou ao Mengo o porta-lápis, elaborado no seu lazer forçado, com palitos de sorvetes, que, com certeza, a guria do gaúcho não desprezaria, se pintada de cores vivas e adornada de desenhos.

Às vésperas do Natal, as portas do presídio do Carandiru abriram-se prazerosamente, dando passagem aos três amigos que, findas as festas e expirada a licença, assumiam o compromisso de retomar, para cumprimento do restante da pena.

Bem... o tempo não para...

A guria do "Bá" tinha já quinze anos, desabrochara. Por isso mesmo, o coração deslumbrado do Mengo chegou-lhe às mãos, dentro do porta-lápis, espremido, latejante de amor, desses tais amores que eclodem à primeira vista!

Com o "Mineirão" a coisa não foi diferente. Só que, por azar, a graça da chinoca é que lhe roubou o sossego. Ficou doidinho de todo, ao ver de perto o decantado beijo trocado pelo par gaúcho. Sentiu, a seco, o gosto doce do chimarrão, antes mesmo de tê-lo provado. Não o sabia amargo!

Na primeira oportunidade, atacou. Todos os seus impulsos reprimidos vieram à tona. A gaúcha, subjugada, cravou-lhe as unhas de gata brava, riscando-lhe a face, de alto abaixo, em linhas paralelas, que logo se tingiram de rubro.

Nada precisou ser dito para que o gaúcho, sem mesmo ter visto a cena, tomasse sentido do que se passara.

Uma bala certeira vingou-lhe a honra insultada,

"Mineirão" foi cumprir o resto da pena em terras mais quentes.

"Bá", inapelavelmente, dobrou a sua.

E “Mengo” ao transportar para cela uma esperança doce, tomou mais curtos e mais suaves seus dias de penitente. Nem "mermo" a mão da justiça parecia pesar-lhe sobre os ombros. Abafou dentro da alma a voz gemedora da cuíca. Trocou-a por outra, lírica e seresteira, de violão cantador!...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

Lição (2)

2a. parte do conteúdo do Folhetim Literato Desiderata - Tema: Lição

Sílvia Araújo Motta
Belo Horizonte/MG

A FOLHA CAÍDA


Aquela “Folha” quis mostrar caída
que era o momento certo para amar...
Quem sabe até, por ser também sofrida
quis dar a chance para a luz brilhar.

A folha seca pela dor vencida,
envelhecida veio às mãos, lembrar:
-Terceira idade pode ser querida
para envolver quem quer beijar, sonhar.

Beijos nas mãos selou adeus, que a lua
pode antever, por sua vez, soluços,
da alma, que também foi quase sua.

Fim da viagem, folha foi ao chão...
Quanta saudade! Sento e me debruço!
Computador já pode ver lição.
___________________________
António José Barradas Barroso
Parede/Portugal


Quando acaba a fantasia
e se busca a aprendizagem,
lição é sabedoria
que a alma acolhe, de passagem.
___________________________
Milton S. Souza
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS


No entrevero, metido, que alegria,
deixo a chuva molhar meu coração,
pois eu sei, esta chuva que desliza
traz na seiva esta paz de cada irmão,
e a palavra precisa que preciso
para ser bom aluno na lição.
_____________________
JB Xavier
São Paulo/SP


Meu pai me ensinou: ”Reflita!”
Nunca esqueci a lição:
“a velhice não se evita.
maturidade é opção!”
________________________________
Gilson Faustino Maia
Petrópolis/RJ

RENASCIMENTO


Nasce outra rosa no jardim florido,
nasce o perfume, o amor, a poesia,
tão logo raia o sol de um novo dia
e morre a madrugada sem gemido.

Levanto o meu olhar enternecido
e vejo um horizonte que extasia,
de luz e cores, tudo em harmonia,
cenário que me deixa comovido.

E eu choro a minha humana imperfeição
diante do esplendor da natureza,
sem sentir do Universo esta lição:

se o passado morreu, viva a certeza
de um novo amor que invade o coração
matando a dor, o pranto e a tristeza.
______
António José Barradas Barroso
Parede/Portugal


O fim do mundo receio,
e acabe tanta beleza,
que o dirigente anda alheio
à lição da natureza.
___________________________
Carlos Drummond de Andrade
Itabira do Mato Dentro/MG, 1902 – 1987, Rio de Janeiro/RJ

ENTRE O SER E AS COISAS


Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.

As almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.

N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é, pungindo,
uma fogueira a arder no dia findo.
______________________
A. A. de Assis
Maringá/PR


A história, através dos anos,
ensina a grande lição:
– o destino dos tiranos
será sempre a solidão!
____________________________
João Felinto Neto
Mossoró/RN

DISLATE


Talvez minhas palavras sejam tolas,
minhas ações, inconsequentes;
as minhas brincadeiras, ironia;
eu próprio seja falho e negligente.
O meu discurso seja sátira;
minha seriedade, uma piada.
O meu humor seja mau gosto;
o meu dislate, permanente.
Meu riso entre dentes, atimia;
a minha faina seja ociosa;
meu pranto, uma lição jocosa
e o jeito infantil, idiotia.
Talvez a minha vida seja um fracasso;
meus versos, um engodo imoral.
Em epítome, sou um gracejo nefasto.
Meu desejo, um esboço anormal.
_____
António José Barradas Barroso
Paredes/Portugal

Quando me falam de glória,
cada vez mais me convenço
que a guerra, na nossa história,
é lição pra ter bom senso.
__________________________
Guerreiros Mura
Manacapuru/AM

A SEDUÇÃO DO BOTO COR-DE-ROSA


Todo o meu pecado
Foi amar uma linda sereia do mar
E como lição herdei a maldição
De viver nas águas contemplando a solidão
Os mistérios e as mágoas dos rios a imensidão

Mas o feitiço das escuridão
Quebrou-se ao luar
O boto cor-de-rosa emergiu
Dele o encanto surgiu
De boto a um lindo rapaz
Astucioso e sagaz
Do fundo do rio Solimões
Uniu-se dois corações

Veio seduzir a cirandeira bela
Dançarina, dançarina
De sua paixão
Com fitas brancas e amarelas
Dança a dança, dança a dança
Da sedução

Está se deslumbrando senhor
Uma linda estória de amor
Com a cirandeira bela fogosa
Amor do boto cor-de-rosa.
__________________________
Wanda de Paula Mourthé
Belo Horizonte/MG


Ao seu filho, desde cedo,
ministre a boa lição:
em vez de armas de brinquedo,
ponha um livro em sua mão!
______________________
Quem só tem o espírito da história não compreendeu a lição da vida e tem sempre de retomá-la. É em ti mesmo que se coloca o enigma da existência: ninguém o pode resolver senão tu!
Friedrich Nietzsche
(Röcken/Lutzen/Alemanha, 1844 – 1900, Weimar/Alemanha

______________________
Prof. Garcia
Caicó/RN


Trago uma lição comigo
que aprendi desde criança:
Quem tem um cachorro amigo,
não perde nunca a esperança!
______________________
Desconhecido

NADA É POR ACASO


Se as coisas fossem perfeitas
Não existiriam lições de vida
Não haveriam arrependimentos
E nem descobertas...
Se tudo fosse perfeito
Mãos não se uniriam
E sonhos não seriam valorizados.
Se tudo fosse perfeito
Olhares não se completariam
E gestos passavam despercebidos.
Se tudo fosse perfeito
As lágrimas não existiriam
As palavras seriam perfeitas.
Se tudo fosse perfeito
Eu pularia no abismo
Sem medo da morte
Pois asas eu ganharia...
Se tudo fosse perfeito
Eu atravessaria o oceano
Sem medo de ser levada pelas ondas
Sem receios de me perder em suas profundezas.
Se tudo fosse perfeito
Dores não existiriam
E a cura não seria procurada...
Se tudo fosse perfeito
Não haveria a busca pela perfeição...
Nada é por acaso
Pois nem o destino
É Perfeito.

Na vida nada acontece por acaso.
O que você faz hoje,
pode fazer a diferença
em sua vida amanhã.

Arthur de Azevedo (Em Sonhos)


– Ora, sempre há sonhos muito esquisitos! – exclamou o César, logo pela manhã, quando se ergueu da cama.

– Com quem sonhaste? – perguntou D. Margarida, que ainda se achava deitada.

– Sonhei que estávamos num jardim, D. Eponina, a senhora do Sá Coelho, e eu, e que ela se atirou a mim aos beijos apertando-me nos braços dizendo que me adorava!

– E que necessidade tinha eu de saber desse teu sonho? – perguntou D. Margarida um tanto contrariada e, cá entre nós, com toda a razão.

– Oh! meu amor! Pois queres que eu tenha segredos para ti? Eu conto-te a minha vida toda, inclusive os meus sonhos!

– Pois sim, mas uma reserva natural, ou por outra, a delicadeza mais rudimentar deveria fazer com que não me contasses coisas que não me podem ser agradáveis, e cuja revelação nenhum interesse, nenhuma conveniência tem.

– Ora esta! Nunca esperei que te zangasses!

– Não estou zangada, mas simplesmente ressentida; nenhuma esposa gosta de saber que mesmo em sonhos seu marido andou aos beijos com outra mulher!

– Em primeiro lugar, eu não beijei, fui beijado! Fui violentado!… Eu não queria!… D. Eponina caiu sobre mim com uma fúria!…

– Pois olha! Eu estou mais magoada contigo que com ela. .

– Deixa-te disso, Margarida! Os sonhos não querem dizer nada!…

– Não querem dizer nada, mas são sempre o resultado de uma impressão qualquer, recebida na vida real: se tu não tivesses tido um mau pensamento a respeito de Eponina, jamais sonharias que ela caiu sobre ti aos beijos!

– Por pouco mais, darias razão àquele fazendeiro, que mandou surrar o escravo por ter sonhado que este queria assassiná-lo!…

– Sim, tens razão, César… Sonhos são sonhos… uma tolice minha aborrecer-me por causa de uns beijos quiméricos, de que nenhuma culpa tens.

– Ora, ainda bem que te chegas à razão!.

E não se falou mais nisso: a discussão passou… como um sonho.

Três ou quatro dias depois, Margarida foi a primeira a erguer-se da cama.

– Que é isto? – perguntou César despertando. – Ergueste hoje mais cedo?

– Sim, porque estou aborrecida; tive um sonho terrível!

– Sim?… Com quem sonhaste?.

– Não quero ter segredos para meu marido: sonhei com o Braguinha!

– Com aquele patife, com aquele desavergonhado, que entendeu que podia namorar-te às minhas barbas! Pois tu sonhaste com esse homem?!.

– Sonhei; que tem isso?… Que culpa tenho eu?

– Conta-me o teu sonho.

– Isso não! Tu já ficaste tão zangado sabendo que sonhei com o Braguinha; que não farias se eu te contasse o resto?!

– Margarida! Nunca esperei que tu…

– Deixa-te disso!… Os sonhos não querem dizer nada. Demais, aconteceu-me o mesmo que a ti o outro dia: não beijei – fui beijada!.

O César saltou da cama furioso:

– Não calculas a vontade com que estou de quebrar a cara do Braguinha!

– Ora, aí tens! ~ exatamente o caso do fazendeiro!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.