sábado, 18 de fevereiro de 2017

Olivaldo Júnior (Liberdade)

Ulisses era um menino de oito anos e meio que morava perto de casa. Cabelo nos olhos, sorriso nos lábios e pés firmes no chão, aprontava com os meninos da rua. Era um menino mágico, livre, que queria voar. Não voava, mas pensava que, se corresse muito, mas muito mesmo, nasceriam asas em suas costas e ele veria o mundo de outra forma. Ora, ele sonhava! Sonhar é voar?

Acontece que, em nossa rua, tinha um velho que não me lembro o nome, bem turrão, criador de passarinhos. "Um dia solto todos eles!", dizia para si mesmo o garoto com nome heroico, tão forte quanto os sonhos que ele tinha. Sonhar é para os fortes. Ouça.

O velho tinha treze gaiolas no quintal caipira, coberto de flores e de ervas daninhas, que ele não fazia separação entre as plantas. Não era um mau homem, mas tinha o mau hábito de cerrar os passarinhos em prisões, gaiolas que luziam o triste olhar de Ulisses assim que ele passava em frente à casa do velho. Ah, por que não se deixava livre um ser de asas, um sol a pino, um céu aberto?

Eram quase seis horas da tarde. Tinha chovido. A rua brilhava com as poças d'água que o choro da chuva formara. Os meninos estavam em casa. Menos um. Sabendo que o velho tinha saído, Ulisses, pé ante pé, pulou o muro da casa das aves e, com as mãos em fúria de quem toca os sonhos, soltou os pássaros ao céu azul, amarelo e rosa de um fim de tarde imenso, intenso, quase tão grande quanto a alma daquele "El Niño" que, radiante, em suas costas sentia o nascer das asas com que sempre sonhou. Um a um, ganhavam o mundo, pedindo licença para ser o que um dia foram: livres. Ulisses, um menino de oito anos e meio, voava com eles, partia com os pássaros rumo ao sem-fim! Libertava alguém e se libertava também, pode haver coisa melhor que aquela? Pulando em volta das grades, cabelo nos olhos, sorriso nos lábios e pés livres do chão, aprontava sua maior travessura. Era um menino mágico, livre e que fazia voar.

Fonte:
O Autor

Álvares de Azevedo (Poemas Escolhidos)


SONETO DO ANJO

Pálida, à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar! na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti — as noites eu velei chorando,
Por ti — nos sonhos morrerei sorrindo!
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SONETO DOS MOÇOS PERDIDOS

Um mancebo no jogo se descora,
Outro bêbedo passa noite e dia,
Um tolo pela valsa viveria,
Um passeia a cavalo, outro namora.

Um outro que uma sina má devora
Faz das vidas alheias zombaria,
Outro toma rapé, um outro espia...
Quantos moços perdidos vejo agora!

Oh! não proíbam pois ao meu retiro
Do pensamento ao merencório luto
A fumaça gentil por que suspiro.

Numa fumaça o canto d'alma escuto...
Um aroma balsâmico respiro,
Oh! deixai-me fumar o meu charuto!
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SONETO DA PREGUIÇA

Ao sol do meio-dia eu vi dormindo
Na calçada da rua um marinheiro,
Roncava a todo o pano o tal brejeiro
Do vinho nos vapores se expandindo!

Além um Espanhol eu vi sorrindo,
Saboreando um cigarro feiticeiro,
Enchia de fumaça o quarto inteiro...
Parecia de gosto se esvaindo!

Mais longe estava um pobretão careca
De uma esquina lodosa no retiro
Enlevado tocando uma rabeca!

Venturosa indolência! não deliro
Se morro de preguiça... o mais é seca!
Desta vida o que mais vale um suspiro?
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SONETO DA ARMIDA

Os quinze anos de uma alma transparente,
O cabelo castanho, a face pura,
Uns olhos onde pinta-se a candura
De um coração que dorme, inda inocente.

Um seio que estremece de repente
Do mimoso vestido na brancura,
A linda mão na mágica cintura,
E uma voz que inebria docemente.

Um sorriso tão angélico! tão santo
E nos olhos azuis cheios de vida
Lânguido véu de involuntário pranto!

É esse o talismã, é essa a Armida,
O condão de meus últimos encantos,
A visão de minh'alma distraída!
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SONETO DA MORTE

Já da morte o palor me cobre o rosto,
Nos lábios meus o alento desfalece,
Surda agonia o coração fenece,
E devora meu ser mortal desgosto!

Do leito embalde no macio encosto
Tento o sono reter!... já esmorece
O corpo exausto que o repouso esquece...
Eis o estado em que a mágoa me tem posto!

O adeus, o teu adeus, minha saudade,
Fazem que insano do viver me prive
E tenha os olhos meus na escuridade.

Dá-me a esperança com que o ser mantive!
Volve ao amante os olhos por piedade,
Olhos por quem viveu quem já não vive!
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SONETO DA VIRGEM

Passei ontem a noite junto dela.
Do camarote a divisão se erguia
Apenas entre nós — e eu vivia
No doce alento dessa virgem bela...

Tanto amor, tanto fogo se revela
Naqueles olhos negros! só a via!
Música mais do céu, mais harmonia
Aspirando nessa alma de donzela!

Como era doce aquele seio arfando!
Nos lábios que sorriso feiticeiro!
Daquelas horas lembro-me chorando!

Mas o que é triste e dói ao mundo inteiro
É sentir todo o seio palpitando...
Cheio de amores! e dormir solteiro!
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SONETO DA DOR

Perdoa-me, visão dos meus amores,
Se a ti ergui meus olhos suspirando!...
Se eu pensava num beijo desmaiando
Gozar contigo uma estação de flores!

De minhas faces os mortais palores,
Minha febre noturna delirando,
Meus ais, meus tristes ais vão revelando
Que peno e morro de amorosas dores...

Morro, morro por ti! na minha aurora
A dor do coração, a dor mais forte,
A dor de um desengano me devora...

Sem que última esperança me conforte,
Eu — que outrora vivia! — eu sinto agora
Morte no coração, nos olhos morte!
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SONETO DA MÃE

Ó páginas da vida que eu amava,
Rompei-vos! nunca mais! tão desgraçado!...
Ardei, lembranças doces do passado!
Quero rir-me de tudo que eu amava!

E que doido que eu fui! como eu pensava
Em mãe, amor de irmã! em sossegado
Adormecer na vida acalentado
Pelos lábios que eu tímido beijava!

Embora — é meu destino. Em treva densa
Dentro do peito a existência finda...
Pressinto a morte na fatal doença!...

A mim a solidão da noite infinda!
Possa dormir o trovador sem crença...
Perdoa, minha mãe — eu te amo ainda!
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SONETO DO BEIJO

Um beijo ainda! os lábios teus, donzela,
Nos meus se pousem — junto de teu seio
Que treme-te e palpita em doce enleio
Beba eu o amor que teu olhar revela. —

Vem ainda uma vez! és pura e bela,
Arfa-te o seio, amor, n'olhos te leio...
Que importa o mais? vem, anjo, sem receio!
Um beijo em tua face! ind'outro nela!

Aperta-me ao teu colo — assim — um beijo
Desses em que ao céu um'alma se transporta!...
— E o mundo?... — Um louco. — E o crime? — Só te vejo.

— Mas quando a vida em nós gelou-se morta
— E o inferno? — Contigo eu o desejo.
— E Deus? — Meu Deus és tu. — E o céu? — Que importa!
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SONETO DO AMIGO

Perdoa se hoje em verso rude não cadente
Ledos os sentimentos de minha alma exprimo:
Tu verás que na arte de poeta eu não primo
Porém verás que só digo o que meu peito sente.

Mas os teus anos que me alegram a mente,
Triste pensamento me faz vir do imo
De meu peito alegre. De ti que eu tanto estimo
Para o ano, em igual dia hei de estar ausente!

Mas se de ti separar-me a extensão tão imensa,
A grande distância que entre nós estiver
Lembrança de ti não me fará perder.

Faz que tua alma a distância também vença,
Neste dia entre os amigos não te esquece
Daquele em quem tua lembrança não fenece.

Contos do Oriente (O Caso do Prefeito Dong)

O prefeito Dong fez 40 anos e morreu poucos dias depois de uma febre maligna. Sua casa parecia amaldiçoada. A primeira mulher tinha morrido três anos antes. Depois, ele casou-se novamente com uma belíssima mulher. Jovem, cheia de vida e amorosa. E antes que o prefeito Dong tivesse descendência, foi levado deste mundo pela febre.

A viúva, Feng Li, passou dois dias prostrada, chorando a morte de quem tinha sido seu único e grande amor. Um amor que havia durado anos, pois ela, desde criança, havia se apaixonado por ele, naqueles amores ardentes, contidos e impossíveis.

A morte da primeira esposa de Dong foi um sinal. O incêndio subterrâneo que consumia Feng Li, propagando-se pelo calor do seu ardor juvenil, voltou à superfície. Mas não ressurgiu arrebatador, como da primeira vez, mas na forma de flores de pessegueiro despetalando-se sobre o Lago Tian.

Todo mundo no povoado conhecia o prefeito Dong. Sua bondade. Suas virtudes excepcionais. Sua disposição em ajudar quem tivesse necessidade. E um dia, durante uma visita que os pais de Feng Li fizeram a Dong, ele percebeu enfim sua rara beleza e algum tempo depois se casaram.

Nisso Dong morreu. E estava ali, agora, no leito, ainda nupcial, seu corpo, que em breve seria levado embora, como um último sopro, de olhos úmidos, sobre sentimentos tão intensos. Foi nesse momento que Fen Li ouviu um profundo suspiro. O suspiro transformou-se em gemidos e esses gemidos vinham de onde se encontrava o prefeito Dong.

Sim, era ele. Pequenos movimentos. De início, quase imperceptíveis. Depois, mais agitados. E era ele, enfim, que despertava, movendo os lábios e pedindo um copo d’água. E ao falar, a voz era bem a sua, Dong, o prefeito. Bebeu um pouco de chá, pensativo, com os olhos semi-abertos, ainda não habituados com a luz, mas o brilho das pupilas não conseguia esconder pequenas nuvens escuras criando uma atmosfera de preocupação.

Ele bebeu um pouco de chá, sentou-se no leito e pediu que Feng Li chamasse alguém para tomar notas, pois ele tinha tido um sonho bastante estranho para contar. Com as costas apoiadas no travesseiro, esperou a chegada dos criados e então, com todos em volta, começou a contar:

“Na noite passada, disse ele, na terceira batida do sino, uma voz me chamou pelo nome. Eu fui até à varanda e percebi no jardim um desconhecido, com roupa de um alto funcionário do Palácio. Ele estava perto de um carro, com dois cavalos atrelados. Mantilhas brancas, que cintilavam à luz do luar, cobriam os dois animais.

Ele disse que tinha uma convocação oficial no meu nome e, em seguida, apertou meu braço com punhos de ferro e me fez subir na carruagem que imediatamente se pôs em movimento, depressa, depressa, veloz, cada vez mais veloz, quase voando. Nós passamos os portões da Prefeitura, escancarados àquela hora da noite, e avançamos na escuridão.

As sombras das árvores também eram velozes, deslizando vertiginosas ao nosso lado, e de repente fomos engolidos por densa neblina. Não demorou muito e a neblina foi se adelgaçando, em farrapos, que contornavam uma imponente muralha, em volta de uma cidade imensa, certamente capital de algum reino distante.

Depois de andarmos ao redor da muralha, escura, como picumã, chegamos a uma porta pintada de vermelho. Ela era flanqueada por duas torres, com as bases na forma de um animal estranho e dessas torres saíam barrotes, que tinha nas extremidades cabeças de mortos recentes ou peles humanas esfoladas que drapejavam como estandartes. Com a nossa aproximação, os dois batentes abriram-se rangendo de um jeito sinistro.

A cidade era recortada por ruas largas, que serviam de limite para uma grande quantidade de quarteirões, palácios, templos e edifícios oficiais. A carruagem parou no pátio interno de um deles e, depois de me fazerem subir por uma escada majestosa, meu guia me conduziu a uma sala de audiências onde estavam três juízes.

Meirinho, disse um deles, me traz o arquivo de capa preta, com um laço roxo, aberto na página de um homem chamado Dong, que exerce a função de Prefeito no Império do Meio.

Depois de um tempo um tanto longo, mesmo em termos de burocracia, a voz do juiz cortou novamente o silêncio:

— Meirinho! O que está acontecendo? Por acaso está dormindo em cima dos registros?

— Queira me desculpar, senhor, não consigo achar o nome do Prefeito Dong.

O juiz começou a trautear sobre o tampo da mesa, arrancando sons secos que logo se espalharam no ambiente. Dessa vez sua voz soou condescendente:

— Tome alguma iniciativa, caro amigo. Estamos perdendo um tempo precioso. O tribunal está atravancado de processo nesses tempos difíceis, disse ele, procura então um arquivo vermelho, o dos casos em litígio.

O meirinho trouxe um novo arquivo, de onde foi retirando folhas de papel amareladas. No fim exclamou:

— Eu bem sabia que estava consignado aqui! Dong, prefeito do Império do Meio. Homem virtuoso, de uma compaixão sem nome e de uma retidão exemplar. Caso muito raro na administração da Dinastia atual. Fez muitas coisas boas e ajudou muita gente sem se importar com posição ou riqueza. Morre aos 40 anos sem deixar descendência.

Os três juízes falaram em voz baixa durante alguns momentos e depois o presidente do tribunal declarou num tom solene:

— Deve ter algum erro aqui. Trata-se, sem dúvida, da negligência de algum funcionário do estado civil do destino. Que injustiça! Um homem assim, cheio de méritos, que morre na força da idade sem deixar ninguém para carregar o seu nome. Isso constitui um terrível mau exemplo para os outros humanos. Não é nada encorajador para outras pessoas que queiram fazer o bem. Vamos entrar com um recurso junto a Sua Majestade Yan Lo. Processo seguinte!

Eu então me virei na direção de meu guia e perguntei:

— Desculpe minha curiosidade, mas não seria esse, por acaso, um dos tribunais do inferno? Se estou entendendo bem, significa que eu morri?

Ele pôs a mão sobre o meu ombro e me respondeu com um sorriso:

— Não fique preocupado, tudo vai dar certo, seu processo está em boas mãos. Você caiu no melhor dos 24 tribunais do Inferno. Juízes íntegros e escrupulosos. Como você está nos registros vermelhos, o das pessoas virtuosas em situação irregular, e como aqui não precisa de dinheiro para suborno nem incenso ou libação para influenciar os juízes, tem todas as chances de voltar para casa.

Enquanto eu esperava, trouxeram um mandarim que tinha uma roupa de seda e distintivos de jade de alto dignatário da Corte Imperial.

— Meirinho — ordenou o juiz. — Diga-nos a identidade e o passado terrestre desse réu.

O escriba abriu o registro de cor preta e leu o seguinte:

— Chen Li, ministro da Justiça do Império do Meio. Depois de ter feito intrigas para afastar injustamente um de seus colegas, a fim de usurpar seu lugar, usou seu cargo para se enriquecer e estender seu poder sem escrúpulos. Culpado de corrupção, sequestros, falso testemunho, luxúria, tortura e condenação de inocentes. Ele morreu no seu leito sem manifestar nenhum remorso.

Os juízes deliberaram e um deles leu a seguinte sentença:

— O referido Chen Li, tendo desonrado sua profissão que lhe havia sido confiada pelo Filho do Céu, é condenado a sofrer todo tipo de suplício que ele infligiu aos seus semelhantes. Ele será detido durante quatro ciclos celestes ena cela nove vezes do Inferno, a fim de purificar seu espírito pelos cinco elementos. Ele deverá em seguida reencarnar na forma de um cachorro, depois na de um burro e finalmente em uma família miserável.

O ministro protestou energicamente, clamou inocência, invocou erro judiciário, gritou que iria apelar, ameaçou os juízes. Os guardas, demônios com cabeça de cavalo, de porco, de serpente, irromperam na sala, amarraram o preso numa cadeira. Um dos juízes dirigiu-se ao condenado nos seguintes termos:

— Saiba que todas as coisas que você fez e todos os seus gestos, foram registrados escrupulosamente nesses arquivos e nada do que acontece no mundo pode nos escapar. A lista de seus crimes e delitos, bem comprida, foi verificada minuciosamente, e por isso mesmo a instrução desse processo demorou mais de um ano. Saiba igualmente que a justiça do Reino das Sombras é implacável e imparcial. Todo mérito é cedo ou tarde recompensado, toda falta, sancionada. E para refrescar sua memória e para que você acabe com essas recriminações, tragam o Espelho da Verdade.

Um auxiliar tirou de uma caixa ricamente trabalhada o espelho de sua alma, onde o condenado pôde ver com horror estampado na face todos os crimes odiosos de que ele era responsável. Depois, com um leve gesto, o juiz deu uma ordem e os guardas levaram o prisioneiro. Nesse meio tempo, chegou um mensageiro. Ele trazia um rolo e o entregou ao presidente do tribunal, que o estendeu sobre a mesa. Depois de fazer um sinal para que eu me aproximasse, o magistrado declarou:

— Sua Majestade Yan Lo, Rei dos Infernos, levou pessoalmente seu processo até o Imperador Celeste. Sua Grandeza Sereníssima permite que você reencarne por mais dois ciclos duodecimais terrestres e concede também, por merecimento, a extensão de sua descendência."

O prefeito Dong, que contava essa história com uma voz fraca e tremente, levou a mão aos olhos e murmurou essa última frase, antes de cair novamente em sono profundo:

— Eu então desmaiei e acordei novamente há pouco na minha cama.

Quatro semanas depois, a jovem esposa do prefeito ficou sabendo que estava grávida e um ano depois da curiosa doença de seu marido, deu à luz um bebê encantador, que segundo alguns adivinhos, trazia os sinais característicos de uma pessoa predestinada.

Fonte: 

Fernando Sabino (A Faca de Dois Gumes)

Aldo Tolentino "E ali estava ele: Aldo Tolentino, 50 anos de idade, advogado, viúvo , um filho do primeiro casamento, dois do segundo, traído pela mulher com seu amigo e colega de escritório, escondido em sua própria casa..." 

Dr. Marco Túlio. "mais baixo, mas desenvolto, bem vestido, queimado de sol, aparência esportiva" 

Maria Lúcia fútil e infiel Paulo Sérgio o filho de Aldo Tolentino acusado injustamente de homicídio - representa o outro lado do gume (ferido) 

Síntese - enredo 
Aldo tenta vingar-se de sua adúltera esposa Maria Lúcia; para tanto furta a identidade de um subalterno do escritório, forja uma viagem de negócios e embarca para São Paulo a mando de seu chefe Marco Túlio. Já em solo paulista nosso herói hospeda-se em um hotel, para que não haja suspeitas e, discretamente evade-se do hotel direto para o Rio de Janeiro via ponte-aérea com passaporte falso na volta.

Ao retornar sigilosamente para casa, promove um flagrante nos adúlteros, aniquilando-os. O crime perfeito ocorre e a vítima será o próprio Aldo Tolentino que vê o próprio filho pagar por seu crime ao suicidar-se na cadeia. Paulo Sérgio chegara na madrugada do crime em casa, lá encontrara os cadáveres e fora o principal suspeito do crime. 

Estrutura da obra: 
Desfragmentação da estrutura narrativa - o discurso em 3° pessoa é permeada de psicologismo, e o fluxo de consciência é retomado o tempo todo por Aldo Tolentino. 

Estrutura textual: 
A violência das obras contemporâneas é recurso notório do retrato de nosso tempo na literatura. A visão do desejo enquanto sexualidade e ódios urbanos se confundem.

A coloquialidade do discurso é também outro fator que nos interessa, o pessimismo é notório e o existencialismo acerca da vida, é clara no final do conto: "...O delegado informou que Paulo Sérgio havia se enforcado com a camiseta em sua cela. - Vou já para aí ( disse Aldo Tolentino) Em vez de sair, foi até a copa, ainda sonolento, apanhou o vidro no armário e tomou todos os comprimidos.

Depois voltou ao escritório, estendeu-se no sofá e em pouco voltava a dormir. 

Aspectos Relevantes 

Tendências Contemporâneas 
O experimentalismo estético da Semana de 22 gera uma ideologia com a qual foram reexaminados os problemas da cultura, como qualidade e tradição. O interesse pela vida contemporânea norteou Josué de Castro, Caio Prado Júnior, Jorge Amado e Jorge de Lima. O Estado Novo (1937-1945) e a Segunda Guerra Mundial aguçaram as tensões no plano das ideias e novas configurações históricas geraram novas experiências nas artes, principalmente na literatura. A produção dos autores da primeira metade do nosso século deixa transparecer angústias e projetos inéditos nos trabalhos de poetas, narradores e ensaístas.

Na poesia, a geração de 45 isolou os cuidados métricos, procurando se contrapor à literatura de 22, menosprezando as conquistas do modernismo. No panorama da nova poesia brasileira, Fernando Ferreira de Loanda insiste na afirmação da diferença e na busca de novos caminhos. É a posição de Alphonsus Guimarães Filho, Péricles Eugenio da Silva Ramos, João Cabral de Melo Neto, Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino e Lêdo Ivo, entre outros. Todos defendem um gênero intimista onde imagens são correlatas ao sentimento que os símbolos ocultam e sugerem. Submetem-se às exigências técnicas e formalizantes. 

No romance psicológico caminha-se pela introspeção da psicanálise. Socialismo, freudismo, catolicismo são usados para a compreensão do homem social. Esteja sempre atento para a leitura de obras contemporâneas, pois o que melhor interessa-nos é a sua estrutura narrativa, condensadora e atrativa para o leitor contemporâneo de tantas imagens do mundo digital.

Fonte:

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Antonio Brás Constante (O Sofredor)

Ser goleiro não é fácil. É uma posição que exige um certo talento, ou ao menos alguma técnica. Enquanto todos os demais jogadores torcem para que a bola venha para o seu lado. O goleiro reza para que ela permaneça sempre o mais distante possível dele.

Nas partidas ele sempre fica atrás. Sozinho. Esperando que o pior aconteça. E o pior vem de forma redonda e rápida. A bola é a arquiinimiga do goleiro. Parece uma serpente, pronta para dar o bote através dos pés adversários, acertando, ou melhor, desviando do pobre goleiro para se acomodar junto à rede.

Pior ainda é a situação dos goleiros de fim de semana (como no meu caso). Onde a destreza com a “redonda” é quase nula. Ficamos lá no fundo da quadra. Vítimas de goleadores habilidosos. Sendo apelidados de peneiras, ou ouvindo chamarem nossas goleiras de aviários (já que elas vivem recebendo frangos).

Muitos de vocês sabem como é este sentimento. Pois também se arriscam no gol. Quando defendem, os outros insinuam que foi pura sorte. Mas quando ela passa, as expressões de reprovação na face de seus colegas são as piores possíveis.

Imagine-se em sua partida semanal. Os últimos três jogos perdidos. A culpa pelas derrotas, colocada sobre seus ombros. Não com palavras, mas com olhares. Aqueles olhares fulminantes. Esmagando-o como se fosse uma barata asquerosa.

“Mas aquele jogo será diferente”, você pensa. Irá provar que tem seu valor. O jogo vai seguindo. Algumas boas defesas. Várias desastrosas falhas. Porém seu time continua na frente por um gol.

Então acontece. Faltam poucos minutos para o jogo acabar. O goleiro adversário – aquele que defende melhor que você, e por isso mesmo você o odeia com todas as suas forças – recebe uma bola, chutando-a em sua direção. Um chute forte, que executa um arco perfeito, passando pela cabeça de todos (inclusive a sua), entrando com graça dentro de sua goleira.

O gol do empate. Todos do seu time querendo matá-lo, como se a culpa fosse sua. Você grita com eles. Agora é tudo ou nada. O jogo está para acabar. Um dos zagueiros lhe recua a bola (mais por falta de opção do que por vontade). Os jogadores do seu time prendem a respiração. Você só tem uma fração de segundo para se livrar daquele perigoso globo.

Resolve se vingar. Reúne todas as suas forças e chuta aquela esfera com ódio e determinação. Vai devolver na goleira adversária o gol que acabou de levar. Ao chutar se desequilibra caindo de joelhos. Os braços abertos tal qual um mártir que pretende se redimir de seus pecados.

A bola sobe. Mas não sobe o suficiente. Bate nas costas do zagueiro e volta. Miseravelmente volta de onde partiu. Você impotente vendo a trajetória da maldita, que poderia ter ido para qualquer lugar dentro da enorme quadra, mas preferiu adentrar com uma maldade cruel em seu próprio gol.

A campainha toca. Final de jogo. Seu time sai de cabeça baixa. Nem sequer lhe olham. Mas no fundo você está tranqüilo. Sabe que na próxima semana voltará a atacar no gol. Como foi dito no inicio do texto, alguns jogadores têm talento, outros têm técnica, e você...Bem...Se você for como eu, possuíra aquilo que se considera essencial em qualquer partida: você terá a bola.

Fonte: O Autor

Estante de Livros (Luzia-Homem)

Luzia-Homem é um romance do escritor brasileiro Domingos Olímpio, publicado em 1903.

É um exemplo do Naturalismo regionalista. Passado no interior do Ceará, nos fins de 1878, durante uma grande seca, vai contando a história da retirante Luzia, mulher arredia, de grande força física (o apelido Luzia-Homem provém desta força que lhe permitia trabalhar melhor que homens fortes). 

Marcado pela fala característica dos personagens, Luzia-Homem mantém duas características clássicas do naturalismo por toda obra: o cientificismo na linguagem do narrador; e o determinismo, teoria de que o homem é definido pelo meio.

Luzia trabalha na construção de uma prisão e é desejada pelo soldado Capriúna. Mas Luzia não se interessa por amores e mantém uma relação de amizade e ajuda mútua com Alexandre.

Após Alexandre propor-lhe casamento (existe por toda a história a relutância de Luzia de admitir que gosta de Alexandre), este é preso por roubar o armazém do qual era guarda. Luzia passa visitar-lhe na prisão e sua amiga, a alegre Teresinha, para cuidar de sua mãe doente. Após um certo tempo, Luzia para de lhe visitar na prisão. Ao fim Teresinha descobre que Capriúna era o verdadeiro ladrão e uma das assistentes de Luzia (ela havia sido dispensada e depois voltara ao trabalho, mas como costureira) lhe falar que a testemunha contra Alexandre mentia, o culpado é preso.

A família de Teresinha aparece (ela havia fugido de casa com um amante que morreu meses depois) e ela, humilhada fica subserviente a eles, especialmente ao pai que a rejeita. Luzia descobre isto e, depois de um interlúdio, convence-a a viajar com ela, migrando para o litoral. No caminho Capriúna se liberta e vai ataca Teresinha, a culpada de sua prisão. Encontrando Luzia, mata-a e acaba caindo de um desfiladeiro. 

CARACTERÍSTICAS DA OBRA

A importância desse romance reside no fato de ser ele um dos grandes romances regionais de um estilo de época que floresceu na segunda metade do século XIX: O naturalismo. Estilo marcado pela objetividade, concepção de amor baseado na atração sexual, com ênfase nas características negativas das personagens, o Naturalismo legou-nos romances em que é possível perceber a grande influência de Darwin e A Origem das Espécies: o meio ambiente condiciona todos os seres, deixando sobreviver apenas os mais fortes. Por isso, a natureza de todos os seres, inclusive a do homem, seria determinada por circunstâncias externas. A vida interior é reduzida a nada.

Em Luzia-Homem, tais pressupostos são nítidos, basta que o leitor observe a caracterização e trajetória das personagens. Luzia, por exemplo, está fadada a sucumbir, pois num jogo de forças com o vilão, de nada valeu sua força física, assim como não valeram seus bons sentimentos e até a doçura de alma escondida atrás de tantos músculos. Tornou-se, portanto, vítima da fatalidade das leis naturais, que a impediam de ter outro destino. A morte como desfecho vem coroar esse determinismo, pois é a única saída possível para a personagem. Não há a menor possibilidade, nos romances desse estilo, de ocorrer um acaso ou ‘‘milagre’’, comuns em romances românticos, em favor da personagem. 

Crapiúna, por sua vez, tem sua trajetória iniciada pelo interesse por Luzia, porém, um interesse que vai, aos poucos, se transformando em um caso patológico. Portanto, seu comportamento é coerente com sua obsessão e não há limites que o impeçam de realizar seu intento: ter Luzia a qualquer preço, não porque sentisse amor profundo, mas porque sua atração era sexual, cada vez mais atiçada pelas recusas da moça. Ele é, então, um personagem previsível, já que, pela lógica naturalista, seu destino também estava determinado. 

Em tudo, Domingos Olímpio foi fiel à tendência literária da época: a rudeza e brutalidade das cenas, a crueza dos episódios, o entrechoque dos instintos, a intensidade das forças desencadeadas. A cena final do romance é exemplo perfeito dessas características: a violência que Crapiúna usa contra Terezinha e Luzia é assustadora. A reação de Luzia é ainda mais assustadora: arranca com as unhas um dos olhos de Crapiúna e morre com aquele macabro troféu entre os dedos da mão direita enquanto que, sobre o peito, misturados ao sangue que jorrava, murchavam os cravos que lhe dera Alexandre. Mesmo não sendo o ponto máximo do Naturalismo, é, sem dúvida, um dos mais bem realizados romances brasileiros.

ANÁLISE DA OBRA, pela profa. Anna Cristina Torres

Publicado em 1903 e considerado um clássico do gênero Ciclo das Secas, da Literatura Nordestina, Luzia-Homem é um exemplo do Naturalismo regionalista. Marcado pela fala característica dos personagens, Luzia-Homem mantém duas características clássicas do Naturalismo por toda obra: o cientificismo na linguagem do narrador e o determinismo (teoria de que o homem é definido pelo meio). A obra também se vincula ao realismo sertanejo, - que alguns chamam de regionalismo - apresentando com tintas carregadas o flagelo da seca em sua região, ao mesmo tempo em que enfoca a força física e moral da sertaneja Luzia, criatura intermediária entre dois sexos, o corpo quase másculo numa alma feminina e que termina assassinada por um soldado quando se dispunha a amar ternamente outro homem. 

TEMÁTICA DA OBRA 

A obra tematiza a violência e o sadismo que florescem como literatura naturalista. Há nuances de Romantismo na morosidade da descrição das paisagens, onde a natureza, às vezes, é madrasta principalmente por causa da seca. Explora a duplicidade da personagem principal, ela é bonita, gentil e retirante da seca, mas também tem força descomunal. No romance, Luzia integra um grupo de retirantes, e sua figura forte e personalidade marcante logo atrai a atenção dos homens que disputam o seu amor. 

CRENDICES E SUPERSTIÇÕES

As personagens do romance são marcadas pelas crendices e superstições, santos, orações, rezas, promessas, novenas, o Lunário Perpétuo, são sempre mencionados. 

Como é o caso de Teresinha e Luzia que pagam 3 mil réis para que uma curandeira descubra o verdadeiro ladrão do armazém para que Alexandre possa ser libertado. Para isso, Luzia vende seus cabelos à mulher do promotor, que por bondade os compra por 5 mil réis, contanto que Luzia os mantenha em sua própria cabeça, cuidando sempre deles.

LINGUAGEM REGIONALISTA

A linguagem mescla o português padrão, culto na voz do narrador com as expressões regionalistas usadas pelas personagens do romance.

“É menas verdade, interrompeu Crapiúna”

ZOOMORFISMO e DESCRIÇÕES NEGATIVAS

Essa característica muito comum no Naturalismo em que as personagens são sempre aproximadas dos animais é bastante presente no romance. Bem como o enfoque de aspectos negativos das personagens e da paisagem.

“... esquálidas criaturas de aspecto horripilante, esqueletos automáticos, dentro de fantásticos trajes, rendilhados de trapos sórdidos, de uma sujidade nauseante, empapados de sangue purulento das ulceras, que lhes carcomiam a pele até descobrirem os ossos, nas articulações deformadas”.

“O formigueiro de retirantes”

TRAÇOS ROMÂNTICOS

Em alguns momentos as descrições mais belas e saudosistas remetem ao estilo romântico.

“Nessa evocação saudosa de um passado morto, ressurgiram as adoráveis peripécias da infância, os episódios da vida de adolescente na penumbra da puberdade, salteada pelas primeiras investidas dos instintos; as festas, os Sãos Gonçalos, os Bumba-meu-boi, as vaquejadas, as caçadas de avoantes nos bebedoiros, a colheita dos ovos que elas, abatendo-se em nuvens sobre as várzeas, punham aos milhões, junto dos seixos, das toiceiras de capim, ou nas barrocas feitas, durante o inverno, pelas patas do gado. 

PERSONAGENS

Luzia, a protagonista, é do tipo mulher masculinizada, de músculos fortes, mas de sensibilidade aguçada. É taciturna, solitária, boa, corajosa, firme de caráter, constituindo-se num "símbolo da mulher cearense, heroica na sua luta contra o flagelo da seca, da emigração e da prostituição - como interpretou Abelardo Montenegro". 

“Ela, animando Alexandre com a protetora carícia de um olhar inefável, voltou-se resoluta e calma para os circunstantes. Do desalinho das roupas, o lençol pendido do braço a arrastar pelo chão, o cabeção de renda emoldurando o seio nu e palpitante, as desgrenhadas madeixas a lhe caírem em ondulações fulvas de serpentes negras; dos olhos, do gesto e da voz, um concerto de convicção e firmeza, irradiava sobrenatural encanto, empolgando o auditório, subjugado pela esplêndida e fascinante exibição da força e da beleza, harmonizadas naquela admirável criatura.”

Crapiúna: mau soldado, excessivamente sensual e inconsciente. Obcecado por Luzia, faz de tudo para conquistá-la. 

Teresinha, frágil, loira, prostituída, vítima de terceiros, fugiu de casa com seu primeiro amor Cazuza, que em seguida morreu. Tornou-se então prostitua, viveu com outro homem, Seu Berto, depois abandonou-o fugindo com outro rapaz chamado Bentinho. Mas quando estava com Bentinho sentia saudade de Berto, até que Seu Berto a encontra, e numa luta com Bentinho, Berto é morto pelo rapaz. Arrependida, Teresinha esfria seu relacionamento, indo embora e voltando à prostituição. 

Alexandre, apaixonado por Luzia, homem de coragem, justo, generoso, trabalhador, acusado falsamente de roubar o armazém do povoado. 

Dona Josefina (Tia Zefa): mãe de Luzia, velha e entrevada, jogada numa cama, só se recupera mais ao final do romance, após tomar o medicamento receitado pelo médico, do qual ela sempre desconfiava. Sendo que atribuíra sua cura a rezas e santos.

Raulino: vaqueiro corajoso e de bom coração, amigo de Luzia-Homem. Eternamente agradecido a ela, pois a moça o salvara de um touro, quando o sertanejo domava e havia caído. Raulino também era exímio contador de causos. 

D. Matilde: esposa do promotor, generosa, compra os cabelos de Luzia para ajudá-la.

Gabrina: apaixonada e desprezada por Alexandre, se alia a Crapiúna para botá-lo na prisão. Para isso mente que recebera presentes de Alexandre. Depois de descoberta a farsa, é presa.

Quinota: menina esperta que é salva por Alexandre quando Crapiúna a perturbava. Amiga de Luzia, revela para a moça a armação de Crapiúna e Gabrina.

Chica Seridó: dona do prostíbulo.

Belota: soldado que fazia jogatinas em sua casa e é preso junto com Crapiúna, por incentivar jogo ilegal.

Rosa Veado: parteira, rezadeira e curandeira.

Sargento Carneviva: subdelegado, responsável pela prisão de Crapiúna e Belota.

Seu Marcos: pai de Teresinha, homem que já fora rico e que quando reencontra a filha não a perdoa por ter fugido e se tornado prostituta.

D. Clara e Maria da Graça: mãe e irmã de Teresinha, que quando a encontram choram de felicidade. 

Capitão Francisco Marçal: homem mais popular da terra, latifundiário, simpatizante de Luzia.

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Luzia-Homem
Análise da obra pela Profa. Anna Cristina Torres (Brasília), disponível em http://resumoliteral.blogspot.com.br/2009/12/domingos-olimpio-luzia-homem.html

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Contos do Oriente (O tigre arrependido de Zhaocheng)

Uma mulher muito idosa de Zhaocheng, com mais de 70 anos, vivia com seu filho único. Um dia, o filho estava andando numa montanha e foi devorado por um tigre. A mulher, cheia de dor, chorou durante vários dias e várias noites, e sofreu tanto que achou que iria morrer. Ainda chorosa procurou o juiz.

— Como pôr um tigre na cadeia e processá-lo?, perguntou o juiz, achando graça das exigências da mulher.

A mulher ficou mais furiosa ainda. O juiz tentou convencê-la, mas ela não queria escutá-lo. E continuou dizendo que ele precisava tomar providências contra o tigre. Cansado, o juiz pensou, pensou, e prometeu mandar prender o animal.

A velha ajoelhou-se aos seus pés. Recusou-se a deixar o tribunal enquanto ele não escrevesse num papel o mandado de prisão contra o tigre. Li Neng, um policial que naquele dia tinha bebido muito, falou que ele mesmo se encarregaria da prisão do tigre. Ouvindo isso, a mulher foi satisfeita para casa.

Logo que Li Neng ficou sóbrio, arrependeu-se. Mas ele disse para ele mesmo que o mandado de prisão era só uma astúcia do juiz para se ver livre do choro da mulher. Ele foi devolver o mandado ao juiz. E o juiz ficou muito zangado.

— Você prometeu prender o tigre. Deu a palavra e não pode voltar atrás.

Posto contra a parede, Li Ning implorou ao juiz que pelo menos lhe concedesse reforços para capturar o tigre. Seu pedido foi prontamente atendido.

Noite e dia, Li Neng e sua patrulha percorreram a montanha na esperança de encontrar o tigre. Em vão. No fim de um mês, sem resultado nenhum, o juiz ordenou que ele fosse açoitado cem vezes. Não sabendo mais o que fazer, ele foi a um santuário taoísta que havia no leste da cidade. Caindo de joelhos, implorou ao deus do lugar até perder a voz.

Foi nesse momento que o tigre apareceu. Li Neng reteve o fôlego, certo de que iria ser devorado. Mas o tigre passou a cabeça pela porta do pequeno templo e, olhando Li Neng bem nos nos olhos, sentou-se como se sentam os tigres.

Então Li Neng disse:

— Pô tigre! Se foi você que matou o filho dessa velha, me dá licença de te prender porque senão estou perdido.

E o policial, pegando uma corda, passou ao redor do pescoço do animal. O tigre baixou as orelhas e aceitou a corda em silêncio, e o policial o levou ao escritório do juiz. O juiz perguntou ao tigre.

— Foi você que comeu o filho dessa mulher?

O tigre disse que sim com a cabeça.

— Aqui, quem tira a vida de uma pessoa, deve morrer, disse o magistrado. É a lei, uma lei tão velha como o mundo. Além do mais, essa pobre mulher só tinha esse filho. Como ela vai conseguir sobreviver a partir de agora? Mas se você conseguir pegar o lugar do filho dela, para que não fique sozinha, suspendo sua sentença de morte.

De novo o tigre disse que sim com a cabeça. A corda então foi retirada e o animal saiu, enquanto a velha se lamentava, bem triste, que o juiz tinha libertado o culpado.

No dia seguinte pela manhã, logo que ela abriu a porta, descobriu um cabritinho morto na soleira. Ela pegou esse cabritinho e foi trocá-lo na cidade por diversos produtos. E no dia seguinte foi igual, e isso durou semanas e meses. Muitas vezes, em vez de caça, o tigre trazia na boca um corte de seda para um vestido ou algumas peças, sempre depositando diante da porta.

Assim a mulher acabou não passando dificuldades. Aliás, certas dificuldades por que passava eram facilmente resolvidas pelo tigre, o que não aconteceria se seu filho ainda estivesse vivo. Depois de algum tempo, o tigre começou até mesmo a se refestelar num puxado que ela tinha e a passar o tempo ali meio adormecido. Nem os animais nem as pessoas tinham mais medo dele.

Muito tempo depois, a mulher acabou morrendo e o tigre gemeu de um jeito tão triste diante da porta da casa, que partia o coração de quem o escutava. A mulher, antes de morrer, tinha feito muitas economias, para ter um funeral bem bonito e seus parentes se encarregaram de enterrá-la.

Logo que começou a ser lançada a terra na cova, o tigre inesperadamente pulou dentro, sem que ninguém esperasse. As pessoas em volta abriram espaço, com medo. Mas o tigre foi apenas se colocar diante do caixão e deu um rugido tão triste que todo mundo começou a chorar. Pouco depois o tigre foi embora.

Para esse tigre tão leal, as pessoas de Zhaocheng colocaram uma grande pedra, onde essa história é contada para quem quiser ler.