sábado, 1 de maio de 2021

Adega de Versos 17: Gislaine Canales

 


Contos e Lendas do Mundo (O Gigante lenhador)

Segundo as lendas dos colonizadores europeus, o maior lenhador de todos eles - algumas referem-se a ele como o primeiro lenhador – foi um gigante chamado Paul Bunyan.

A senhora Bunyan sabia que havia algo de especial com o seu filho Paul quando ele nasceu.

- O nosso rapaz vai ser alguém grande neste mundo - disse ela ao marido cheia de orgulho, mas provavelmente nunca pensaram na grandeza que ele viria a atingir.

Quando começou a andar, o seu filho era maior e mais forte do que a maioria dos homens da cidade. Toda a gente sabia quem era o Paul Bunyan e ao fim de pouco tempo todos tinham a sua história para contar acerca dele.

Uma manhã, as pessoas acordaram com um enorme estrondo seguido do barulho de vidros estilhaçados - e o som viera da casa dos Bunyan. As pessoas saltaram das suas camas, vestiram as calças, calçaram as botas e foram a correr ver se podiam ajudar.

- O que é que aconteceu? - gritou um, quando o pai de Paul apareceu à porta, o chão coberto de vidros partidos. - Estás bem?

- Estamos todos bem, obrigado, amigos - asseverou-lhes o pai de Paul. - Só que o jovem Paul está com uma leve constipação e um dos seus espirros partiu os vidros de todas as janelas.

As pessoas, com olhos de sono, riram-se e voltaram para casa para tomar o pequeno almoço.

Quando atingiu a idade adulta, Paul Bunyan não era grande, era enorme! Nunca ninguém conseguiu medir a sua altura, porque não havia uma fita métrica suficientemente comprida. Paul em breve ficou demasiado grande para a sua cidade natal e resolveu tornar-se lenhador na floresta. O trabalho dos lenhadores era cortar árvores para madeira, de modo a que outras pessoas pudessem construir casas novas e móveis para essas casas.

A madeira era usada para fazer carroças para transportar pessoas e mercadorias, e para fazer chulipas para os carris do caminho de ferro para que as pessoas pudessem viajar até paragens distantes. Era também usada na construção de igrejas, hotéis e prisões, e para fazer postes telegráficos para que as pessoas pudessem enviar mensagens umas às outras.

O trabalho de lenhador num campo de derrube de árvores era um trabalho pesado - um trabalho de fazer fome - para homens fortes, e o campo onde Paul Bunyan estava não era diferente dos outros.

Por trás dele havia um lago, mas este não era um lago vulgar. Em vez de águas cristalinas e azuis, este lago estava cheio de um líquido borbulhante, espesso e esverdeado. Era um lago de sopa de ervilhas quente e pronta a servir, noite e dia. E deviam ter visto a chapa de ferro em cima do fogão que os lenhadores usavam para fazer as suas panquecas. Para a engordurarem, dois cozinheiros tinham de prender dois presuntos aos pés e deslizar com eles para cima dela, enquanto a gordura frigia com o calor - era enorme!

O campo de Paul Bunyan era o maior e o melhor que alguma vez existiu. Ele trabalhava tanto que o guarda-livros - que registrava toda a madeira que vendiam - gastava mais de vinte barris de tinta por semana.

- O dinheiro que gastamos em toda aquela tinta poderia ser mais bem gasto em machados novos ou em comida suplementar para os homens - disse o guarda-livros. - Tens alguma ideia de como podemos fazer uma poupança? - perguntou a Paul Bunyan um dia.

- Não ponha os pontos nos is e os traços nos tês - disse Paul.

E foi exatamente o que o guarda-livros fez e conseguiu poupar seis barris de tinta em pouco mais de dois meses!

Tudo o que dizia respeito a Paul Bunyan era maior do que a vida – até o seu animal de estimação. Era um boi enorme e não era assim tão vulgar como isso. Era um boi gigantesco e, ainda por cima, de um azul-vivo. E o que é que Bunyan chamava a esse animal enorme com os seus chifres afiados e músculos colossais? Babe.

Babe tinha um celeiro só para si - porque era muito grande - mas até o celeiro já era demasiado pequeno para ele. Uma manhã, Paul encontrou Babe com o celeiro no lombo como se de uma sela se tratasse. O boi crescera excessivamente durante a noite e agora estava com o celeiro preso em cima dele!

Existem muitas histórias incríveis das aventuras de Paul Bunyan e de Babe. Como a do dia em que Bunyan teve problemas em levar uma carga de troncos por uma estrada sinuosa até ao rio. Troncos direitos e curvas são duas coisas que não ligam bem. Existia apenas uma estrada até ao rio, e essa era sinuosa. Logo que os troncos estivessem na água, seriam transportados até à serração através da corrente... mas Bunyan tinha de os levar primeiro pela estrada.

Delineou um plano, usando a sua inteligência e os músculos de Babe. Arranjou uns arreios ao boi e prendeu-os a uma ponta da estrada sinuosa. Com a promessa de cubos de açúcar, Babe puxou a estrada até todas as curvas terem desaparecido, ficando tão direita como uma corda.

Mas não foram só estradas direitas que Paul Bunyan deixou atrás de si. Alguns dizem que ele até criou o Grand Canyon... por engano! O canyon é uma fratura no solo do Arizona que tem mais de trezentos e vinte quilômetros e mais de mil e quinhentos metros de profundidade nalguns locais. A lenda diz que foi feito pelo enorme machado que Bunyan arrastava atrás de si - e ele nem percebeu o que estava a fazer.

Parece que Paul Bunyan ajudou realmente a moldar a América do Norte - de várias formas!

Fonte:
Mitos & lendas norte americanas. Disponível em Biblioteca sem limites.

Caldeirão Poético XLIV


Isabel Furini

(Curitiba/PR)

BATALHA POÉTICA


Árduo o trabalho do poeta...
Em luta quase infinita,
mas sua tarefa acarreta
uma vivência bendita.

Pelas letras têm paixão,
pelas palavras transita.
Quando ele sente aflição
o seu coração palpita.

Quer alimentar sua alma
com a mais pura poesia.
Quando perde a sua calma

trabalha com euforia,
preservando a nobre chama
que poetiza a cada dia.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Pedro Bezerra de Araújo
(Caxias/MA)

CAMINHAR, ERRAR, PERDOAR


Na caminhada da vida,
Que todos nós temos feito,
Tantas e quantas besteiras,
Que pra falar não há jeito.

Nesta dinâmica esteira,
Surgem defeitos certeiros;
Bem em nós, quando nos outros,
Logo, chamamos rejeitos.

Mas, ao crescer, percebemos
Contentamento não há,
Se o outro não entendermos,

Perdoar, não acusar,
Reconhecer, sim, que errar
Só faz o bem triunfar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Frei Francisco Lopes Neto, OFMCap*
(São Pedro do Piauí/PI)

CÂNTICOS, 6


Dez segundos, te vi ó Amado
Por iguais dez minutos perdi-te
Dez mil vezes meu ser procurou-te
Por dez vezes agora, achei-te!

Às dez horas desceste ao jardim
De açucenas e bálsamos, fontes.
Ó Pastor dos meus vales e montes!
Sou do Amado e Ele é pra mim.

Sem defeito, qual pomba a voar
Tal rebanhos às fontes, és Tu
Das romãs és botão sem par

Como a aurora avanças, quem és?
Como a lua e o sol, o esquadrão ...
És o Amor, do diadema aos pés!
__________________________
*OFM Cap – Ordem dos Frades Menores Capuchinhos
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

José Valdivino de Carvalho
(Água Verde/Pacatuba/CE)

CARMELITAS


Ei-las à sombra calma do convento,
faces veladas, corações em prece,
povoando de Deus o pensamento
ao silêncio cristão de quem padece.

Visse-as alguém assim, talvez dissessem
viverem só de dor e desalento,
na saudade mortal que não esquece
do mundo desprezado, o encantamento.

Mas como é pura a vida dessas santas!
Como os cilícios e o sofrer não prezam!
Consolo da oração, como as encantas!

Heroínas de Deus, a dor não medem.
Vivem rezando pelos que não rezam,
Pedem contritas pelos que não pedem!
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Edir Pina de Barros
(Brasília/DF)

CONFISSÕES


De nada nos valeu a despedida,
as lágrimas, o beijo, o forte abraço,
as confissões de mágoas, de cansaço
das noites sem dormir, da paz perdida.

Nossa intenção tornou-se desvalida,
porque resiste o amor, persiste o laço,
tornando-se mais forte do que o aço,
que a um novo enlace sempre nos convida.

Ah se eu pudera, sim, te esqueceria,
para acabar de vez com essa agonia,
esse febril estado de desejo.

Mas cá estamos nós de novo juntos,
os lábios mudos, sem quaisquer assuntos,
a tremular na súplica de um beijo.

Fonte:
Luciano Dídimo (org.). 100 sonetos de 100 poetas.
Fortaleza/CE: Expressão Gráfica e Ed., 2019.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 16: Tal como os Cátaros de Albi

NO EXAME FINAL DO CATECISMO, para a Primeira Comunhão, o velho padre Ramaphosa chamou seus meninos à discorrerem sobre os ensinamentos trazidos à baila, notadamente do sinal da cruz, antes de se recolherem aos afagos do descanso de seus quartos. O pároco, mês inteiro, batera muito nesta tecla da obrigatoriedade de elevar os pensamentos aos céus, em agradecimento e, logo em seguida, feita uma pequena prece, se benzer conforme os exaustivos conselhos reiterados no final de cada encontro.  

— Vamos começar com você, Luiz Alberto. Qual é mesmo a última coisa que faz antes de ir se deitar?

— Peço a bênção aos meus pais.

— Só isto, Luiz Alberto? Nada mais?

— Só isto, seu padre.

Passou ao menino seguinte:

— E você, Carlinhos?

— Dou boa noite à mamãe.

— E a seu pai não?

— Meu pai mora com outra mulher.

O prelado, sem graça, desconversou:

— Não sabia Carlinhos. Me desculpe. E você, Catarino?

— Ah, seu vigário, eu beijo o Toninho na boca.

O santo homem arregalou os olhos, assustadíssimo:

— Cristo Salvador, a que ponto chegamos! Tenha piedade desta alma. E seus pais não falam nada? Não lhe ensinaram que este gesto é pecado e contra os princípios das leis divinas?

— Ué! Desde quando beijar o meu cachorro é todo este absurdo  que o senhor falou?

— Espera ai, Catarino. O Toninho é um cachorro?

— Sim, seu reverendo. Quem o senhor pensou que fosse?

— Retiro o que disse, Catarino.

O guri insistiu, esclareceu um pouco mais a história.

— Ganhei o Toninho da mamãe, no dia do meu aniversário.

O ministro de Senhor sorriu meio desajeitado com o rumo que a conversa havia tomado. Tratou logo de mudar de assunto. Fingindo um certo constrangimento pelas crianças, em face das coisas do Pai Maior não serem lembradas, como ensinara, apesar deste desgosto, seguiu em frente:

— Barnabé, qual a última coisa que você faz antes de se recolher?

— Dou uma surra em meu avô Barbozinha.

O da batina fuzilou o infante em vista do que ele acabara de confessar:

— Surra?

— Sim, seu padre. Surra.

— Meu filho, quantos  anos tem seu avô?

— Oitenta e cinco...  

O prior foi mais além. Boquiaberto, estupefato. Deu um tremendo salto de seu assento, um pulo tão barulhento da cadeira onde se achava sentado, que São Jorge, ao lado, numa espécie de andor imenso, quase despencou do lombo do cavalo se espatifando em cima do dragão que soltava fogo pelas ventas.

Estava o embatinado realmente deveras  furioso:

— E você tem coragem de dar uma surra em seu avô? Sabia que este procedimento é feio, digo mais abominável que tudo aos olhos do Altíssimo? Onde já se viu dar uma surra no avô?  Seus pais não reclamam com você, não falam nada, não lhe põe de castigo nem lhe chamam nos eixos?

— Que nada! Eu e vovô jogamos buraco, outras vezes Pif-Paf... Vovô gosta de roubar no jogo. Agora que eu descobri que ele esconde as cartas de baralho nas mangas da camisa, eu passei a lhe dar uma surra. Não deixo que ele ganhe. O vô fica é muito fulo da vida...

— Ah, bem! — Eu pensei — falou o padre mais calmo e passando um lenço na testa. — Eu imaginei que você descesse o braço no seu avô. Me perdoe.  Vamos à frente. E você, Augustinho?

— O que tem eu, seu pontífice?

— Qual a última coisa que faz antes de dormir? Sugiro, ao dar a sua resposta, refletir no desfecho de nossos encontros aqui na igreja antes de todos voltarem para suas casas.

— Eu espero toda a galera se recolher. Ai eu me esgueiro sorrateiramente até a cozinha e assalto a geladeira da mamãe. Tomo todo o suco que ela deixa numa jarra e devoro os pães de queijo que ficam  guardados no forno para quando meu pai chegar do trabalho...

— Que coisa feia, Augustinho. Jesus não gosta que seus pequenos ajam desta forma. Precisamos pensar em nossos semelhantes.

—  Mas eu penso, seu padre.

—  Como assim... Se você bebe o suco e come os pães de queijo?

—  Quando eu me esgueiro até a cozinha, papai já chegou e nós dois fazemos um lanche. É o único momento que eu tenho com ele, tardão da noite, uma vez que ele trabalha o dia inteiro e uma parte da noite e quase não o vejo em casa. Este momento, seu padre, é só nosso.

Finalmente chegou o instante do santo clérigo dar voz ao remanescente dos pirralhos. Talvez este se lembrasse dos ensinamentos que o representante do Altíssimo, durante todos os encontros tratou de colocar na cabeça de cada um. ‘Lembrem, antes de dormir, fazer uma pequena prece e renovar o sinal da cruz’.     

— Helinho, meu jovem, chegou a sua vez. Diga para nós, o que você faz antes de ir para a cama?

E o Helinho, com um rostinho resplandescendo a formosura dos seus oito anos, sem pestanejar, mandou ver:

— Eu vou ao banheiro e faço cocô.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (Os Maias, de Eça de Queiroz)

UMA TRAGÉDIA MODERNA


Em junho de 1888, os livreiros portugueses começaram a vender os primeiros dos cinco mil exemplares da primeira edição de Os Maias. É tiragem que impressiona ainda hoje. O que dizer então naqueles tempos de um Portugal pouco habitado e não muito lido? Foi uma temeridade, mas à audácia dos editores correspondeu a curiosidade dos leitores e o interesse da crítica. E o livro do desconfiado Eça de Queiroz transformou-se, desde então, num sucesso de vendas.

E assim é [ou voltou a ser] hoje em dia. Andou uns tempos esquecido, é verdade, mas bastou que a televisão fosse buscar inspiração no velho romance, para que as novas reedições sumissem, recém-chegadas às livrarias, pouco antes do Natal, e fossem totalmente consumidas pouco antes do novo ano.

Eça de Queiroz foi impreciso e modesto ao dar a Os Maias o subtítulo 'episódios da vida romântica'. Na verdade, o seu mais famoso romance é uma tragédia, tal como a entendia Sófocles quando, já na maturidade, compôs o seu Édipo. Uma tragédia burguesa, mas apesar de tudo uma tragédia, pois que lá está a grave transgressão moral, cometida em completa inconsciência por seus dois personagens centrais — Carlos Eduardo e Maria Eduarda.

De Maia, ambos, irmãos, apaixonados e incestuosos ambos, e belos e trágicos.

Instigado pela minissérie, vai ler esse livro pela primeira vez. Terá prazer único e irreproduzível. As releituras que hão de vir, mais tarde, servirão de consolo, mas não de substituto. Esse prazer estará certamente na elegância barroca da forma e no desenvolvimento astucioso das entrelinhas. Mas estará também, ou principalmente, nos admiráveis retratos que Eça faz de seus tipos principais, com a elegância e a minúcia de um genial pintor romântico, mas com 'o seu olho à Balzac'.

A começar não por um tipo, mas por uma casa, mais exatamente a 'casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875', que surge, penumbrosa e prenunciadora, logo na primeira frase do livro, e que era conhecida como a casa do ramalhete 'ou, mais simplesmente, o Ramalhete'.

Então, lemos, já encantados:

Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas janelas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação dos tempos da Sra. D. Maria I; com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar-se-ia a um colégio de jesuítas”.

Ai está o cenário da tragédia. O Ramalhete é, pela ordem de entrada, o primeiro personagem em cena, com suas paredes sempre fatais àquela antiga família da Beira, tão rica e tão infeliz. E será no Ramalhete e em torno dele que vamos ser apresentados aos personagens nos quais Eça de Queirós se insinua, para nos falar através de suas muitas vozes.

Seus retratos eram sempre perfeitos e, ao longo da trama, coerentes. A única personagem que o confunde é Maria Eduarda, por sua beleza de deusa. Quando ela aparece — e como custa a aparecer! —, “é alta, loura, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplendor da sua carne”; algumas páginas adiante, Carlos a revê e nota que “os cabelos não eram louros, como julgara de longe, à claridade do sol, mas de dois tons, castanho-claro e castanho-escuro, espessos e ondeando ligeiramente sobre a testa”.

Falei de retratos e o mais correto é falar de auto-retratos.

Se Fernando Pessoa tinha seus heterônimos, Eça tinha os seus “eus”, como diz Beatriz Berrini, que eram muitos e muito se pareciam. Ele nos fala pela voz severa do velho Afonso da Maia, que “era um pouco baixo, maciço, de ombros quadrados e fortes...o cabelo branco todo cortado à escovinha, e a barba de neve, aguda e longa”, a reclamar melhores destinos para o seu lamentável país e a cobrar, do neto tão promissor, menos diletantismo e mais realizações.

Fala-nos também com as palavras cruéis e desassombradas do neto Carlos, “um formoso e magnífico moço, alto, bem-feito, de ombros largos, com uma testa de mármore sob os anéis de cabelos pretos, e os olhos dos Maias, aqueles irresistíveis olhos do pai, dum negro líquido, ternos como os dele e mais graves”, e que costumava vociferar: “A única coisa a fazer em Portugal é plantar legumes, enquanto não há uma revolução que faça subir à superfície alguns dos elementos originais, fortes, vivos, que isto ainda encerre lá no fundo”. Ao que o avô respondia, já impaciente com esse diletantismo do neto, como se falasse em nome do autor: “— Pois então façam vocês essa revolução. Mas pelo amor de Deus, façam alguma coisa!

Mas nenhum de seus “eus” foi mais ele mesmo que João da Ega, ou João da Eça, ou o Ega de Queirós, que todos esses trocadilhos, embora fáceis, têm cabimento e justiça. Talvez só o Fradique Mendes se lhe possa comparar, mas esse não vem ao caso, agora, porque não é personagem d´Os Maias. Eram “eus” idealizados e muita vez caricaturados, mas que, no fundo, o reproduziam com verdade e o exprimiam com coerência.

Ao Ega, deu-lhe o Eça a existência que gostaria de ter tido: discutido e admirado, com a mãe devota, rica e viúva, a lhe garantir o presente e o futuro, permitindo-lhe desfrutar as sofisticações, as intimidades e os desvelos de uma família de aristocratas, como era a dos Maias; mais alguns amores ardentes e com saúde razoavelmente forte para gozar, sem medos nem cuidados, o prazer das boas comidas e dos bons vinhos, dos conhaques e das águas ardentes, das noitadas com espanholas e das devassidões vespertinas, com amantes de luxo.

É a conclusão que se chega no momento em que Eça retrata o Ega — e se auto-retrata: cheio de verve e de irreverência, de frases retumbantes e ditos irônicos, um talento amaldiçoado, temido e exaltado. Vejamos o Ega pelos olhos do Eça:

O esforço da inteligência [...] terminou por lhe influenciar as maneiras e a fisionomia; e, com a sua figura esgrouviada e seca, os pelos arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito — tinha alguma coisa de rebelde e de satânico”. Ora, se não é esse ou quase esse o retrato do próprio Eça, tal como captado na célebre caricatura que dele fez Rafael Bordalo Pinheiro, então já não sei ver nem distinguir.

É ainda o Ega que, em momento de impaciência com a mediocridade e a hipocrisia da sociedade burguesa, e como que falando em nome de seu criador, deixa Lisboa e corre para restaurar-se no interior, lançando a Carlos e a Craft, os dois grandes amigos que o foram acompanhar à diligência, esta frase aterradora:

“— Sinto-me como se a alma me tivesse caído a uma latrina! Preciso um banho por dentro.”

Tal como Carlos da Maia, também João da Ega era um diletante. Ambos têm revoltas pouco profundas e de pouca duração. As suas grandes promessas de realização pessoal e de transformação do mundo terminam por desmaiar no culto quase religioso do luxo e do tédio. Passam a representar o que mais incomodava o inconformado Eça: a renúncia e o conformismo.

É com mãos hábeis, orgulhosas e brilhantes que Eça os faz florescer em Coimbra, em tempos de sonho e de estudo, a prometer insubmissão e luta. É com olhar de desalento e pessimismo que Eça os deixa vencidos e melancólicos, a “correr desesperadamente pela rampa de Santos”, atrás de um bonde e de um jantar, “sob a primeira claridade do luar que subia”. Tal como o próprio Eça se sentia, Ega e Carlos eram, naquele momento, dois “vencidos da vida”.

E assim a tragédia se consuma e nos obriga a repensar o ser humano com inquietação e desconfiança.

Lisboa, 1875. A cidade não apenas como um cenário mas como uma personagem, viva, interveniente, testemunha e cúmplice dos acontecimentos. A cidade acorda, o movimento cresce.

De entre a multidão que circula vão-se destacando, anunciadas pela narradora, as principais personagens desta história. Mais tarde, ao serão, no interior da casa dos Maias, conhecida como o Ramalhete, reúnem-se alguns distintos representantes da sociedade da época: da intelligentsia à alta burguesia lisboeta, até alguns políticos do constitucionalismo regenerador. Lá estavam, entre outros, João da Ega, amigo incondicional de Carlos da Maia, sagaz e polêmico, sempre crítico da mediocridade nacional.

Ou ainda Craft, com quem, nessa mesma noite, Carlos da Maia acabaria por negociar uma quinta, nos Olivais. Ou ainda Dâmaso Salcede, pretensioso e burlesco que revelaria, eufórico, como uma das suas recentes conquistas, a aproximação de Maria Eduarda de Castro Gomes, o que não deixara de provocar uma ainda inexplicável irritação a Carlos da Maia. A sólida presença de Afonso da Maia, patriarca da família, constitui, para todos, um valor de referência. Na realidade, Carlos da Maia alimentava já por Maria Eduarda de Castro Gomes uma secreta paixão e não deixava de a visitar diariamente a pretexto de assistir clinicamente a sua governanta inglesa, Miss Sarah. Numa dessas visitas como médico à residência dos Castro Gomes, - na rua de S. Francisco - percebe-se claramente a existência de uma reciprocidade de sentimentos, da qual Dâmaso Salcede acabará inadvertidamente, por ser testemunha, não escondendo a sua surpresa e o seu despeito, que o levara a engendrar uma forma de vingança. Entretanto, Carlos e Maria Eduarda vivem já o seu romance na nova Quinta dos Olivais, comprada a Craft.

Assim corre o tempo dividido entre as apressadas idas ao Ramalhete e a clandestina vida nos Olivais. Certo dia, no Ramalhete, Carlos e Ega trocam algumas confidência sobre a vida atribulada do primeiro, que procura esconder do avô a situação familiar da sua amante, conhecida em Lisboa, como a senhora Castro Gomes. Será, pois, com a maior estupefação que Carlos receberá em sua casa o próprio Castro Gomes que lhe esclarece, com algum acinte, que aquela que todos dão como sua esposa não é senão a sua amante, com quem vive e a quem paga uma existência requintada em troca de companhia. Perante o desespero e a humilhação de Carlos, Ega sugere-lhe que usufrua, como vinha fazendo até aí, desse amor ilegítimo. Porém, a súbita chegada de Monsieur Guimarães vai precipitar o fim da história, ao trazer consigo num pequeno cofre, o espólio de Maria Monforte, mãe de Maria Eduarda, que morrera em Paris. Nesse espólio confirma-se que Maria Monforte fora a esposa que levara ao suicídio Pedro da Maia, pai de Carlos.

A tragédia precipita-se - os dois amantes eram, no final, irmãos.

Tal revelação levará à morte o velho Afonso da Maia, ao afastamento dos dois amantes, à partida de Carlos para o estrangeiro. Só dez anos depois Carlos voltará a Portugal, reencontrando-se com os amigos de sempre, e sobretudo com Ega, com quem fará um saldo do passado, carregado de ironia e ceticismo, uma síntese dos seus destinos pessoais e do destino coletivo do país, como nação. Vidas falhadas ou ainda a tempo de apanhar o futuro?

Principais personagens

Afonso da Maia: era um homem baixo, de cabelos e barbas brancas. Descrito como um homem culto, religioso e sem defeitos. Afonso é a síntese das tradições e virtudes portuguesas.

Pedro da Maia: é um homem frágil criado pela educação livresca e clerical do avô, Afonso da Maia. Ele era temperamental e instável emocionalmente. É movido pela moral do sentimento e como resultado, se suicida após a fuga da mulher.

Maria Monforte: filha de um negreiro, é uma mulher dominadora, descrita como dona de uma extrema beleza. Ela era alta, loira e sensual. Se casa com Pedro da Maia contra a vontade de Afonso da Maia. Tempos depois, foge com um príncipe napolitano e leva a filha.

Carlos da Maia: protagonista da história. fruto do casamento de Pedro da Maia e Maria Monforte. Descrito como um rapaz belo, alto, de olhos pretos e pele branca. O autor diz que ele parecia um “belo cavaleiro da Renascença”. Carlos é culto e bem-educado.

Maria Eduarda: filha de Maria Monforte e Pedro Maia e divide o protagonismo com o irmão, Carlos da Maia, com quem tem um relacionamento sem saber do parentesco.

Castro Gomes: brasileiro que se envolve com Maria Eduarda. Todos achavam que era casado com Maria Eduarda, mas na verdade, era sua amante e não se incomoda com a relação dela com Carlos da Maia.

João da Ega: amigo boêmio de Carlos da Maia e responsável pelo jantar que resulta em Carlos conhecendo Maria Eduarda. É descrito como um personagem contraditório, por ser romântico e sentimental, mas também progressista e crítico.

Vale ressaltar que diversos personagens são introduzidos na narrativa de “Os Maias”, e cada um possui seu papel na história. Contudo, focamos apenas nos personagens da narrativa principal entre Carlos da Maia e Maria Eduarda.

Análise da obra

“Os Maias” é dividido em dois planos narrativos: um se trata das três gerações da família, centrado no personagem do Carlos Maia e o segundo foca na crítica sobre a alta sociedade de Lisboa, em 1880.

Traz uma representação dos espaços sociais internos e externos onde situam os personagens.

Ao representar esses espaços, o autor exprime uma crítica a sociedade portuguesa, incidindo nos costumes e comportamentos da burguesia da época.

“Os Maias” ainda traz uma abordagem hereditária, ou seja, os comportamentos do personagem do Carlos, quando ele é descrito como um jovem de caráter fraco, herdado do avô e do próprio pai, e o desequilíbrio amoroso que herdou da mãe.

Além disso, envolve assuntos psicológicos. Por exemplo, Carlos mesmo sabendo que a mulher com quem tem uma relação amorosa é sua irmã, não deixa de se envolver com ela. O fato de descobrir que Maria Eduarda é sua irmã, não é suficiente para que ele a não deseje.

As personagens femininas são representadas sempre como o símbolo da luxúria, do pecado, da perdição. Esta é característica não somente da obra “Os Maias”, mas também presente em outras obras de Eça de Queiroz, como “O Primo Basílio” e “O Crime do Padre Amaro”.

Alguns estudiosos afirmam que essa forma de representar o papel da mulher em suas obras é reflexo da rejeição que o escritor recebeu da própria mãe.

Em “Os Maias”, várias mulheres mantêm relações adúlteras, isto é, fora do casamento. Por exemplo: a mãe de Carlos e Maria Eduarda, Maria Monforte que foge com Tancredo e abandona o filho e o marido.

José Maria de Eça de Queiroz foi um romancista, contista, poeta, advogado e diplomata português nascido em 24 de novembro de 1845, em Portugal, e falece aos 54 anos em 16 de agosto de 1900, na França.

O escritor que tem como tradição o romantismo e o realismo. E muitos consideram o romance “Os Maias” o melhor romance do Realismo em Portugal.

Eça de Queiroz nasceu de uma relação não-marital. Mesmo que seus pais tenham se casado, não há registro da sua mãe. Ele foi criado pela avó e depois com uma ama, e posteriormente foi para um colégio. Além disso, o incesto presente na obra “Os Maias” veio também de sua família, pois há registro de episódios incestuosos no diário de sua prima.

O livro está disponível para download no domínio público em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ph000181.pdf

Fontes:
Algo Sobre
Os Maias. Disponível em Guia Estudo. Acesso em 01 de maio de 2021.

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Varal de Trovas 496

 


Jessé Nascimento (O Assaltante)

Era um local onde, diariamente, ocorriam muitos assaltos.

Parou indecisa ao pé da passarela, olhou para cima e sentiu-se um pouco amedrontada. Lá estava um homem de idade mediana, encostado no gradil. Sua aparência não era das mais recomendáveis. Às vezes seu olhar acompanhava alguns passantes, às vezes se perdia na observação dos veículos que transitavam nas diversas pistas.

O sol praticamente já declinara e o anoitecer empurrava  o restante da claridade do dia, a fim de iniciar mais uma vez o seu reinado.

Continuou indecisa. Enfrentaria a situação e subiria os degraus, correndo o risco de ser molestada e assaltada ou optaria pela possibilidade de ser atropelada ao tentar atravessar aquela perigosas pistas?

Os segundos - que pareciam eternizar-se - se passavam  e ela sem saber o que fazer. A aproximação de mais algumas pessoas, que também subiriam a passarela, fê-la tomar a decisão. Iniciou a subida, degrau a degrau, quando, na realidade, gostaria de vencê-los de uma só vez. O coração aos pulos. Os olhos fixos no homem, no perigoso homem atravessado em seu caminho.

À medida que subia foi ficando intrigada. O homem, completamente imóvel, estava olhando fixamente para o chão, pouco se importando com quem passava ao seu lado. Lá embaixo, os veículos rareavam por causa do semáforo fechado pouco atrás.

Terminou a subida e, ainda um pouco temerosa, apressou a caminhada. O homem não a molestara. Pelo contrário, continuava imóvel, olhos agora direcionados para os carros que se aproximavam com a abertura do semáforo.

Parecia mais alguém que estivesse  ali há horas pensando na vida. Talvez nem fosse um ladrão. Como ela fora idiota e como o julgara mal! Quem sabe fosse alguém esperando uma ajuda, sem coragem de pedi-la. Um trabalhador sem o dinheiro da passagem. Ou um desempregado sem saber o que fazer da vida. Talvez fosse até mesmo um ladrão esperando o melhor momento para agir.

Misturada a outros poucos passantes que ali transitavam, pois a maioria preferia arriscar-se atravessando as pistas, iniciou a descida do outro lado. Ao pisar no 2º ou 3º degrau, ouviu um baque surdo. Parou, assim como os demais, para ver o que acontecia. O medo cedera lugar à curiosidade. Estarrecida viu um corpo ricocheteando no teto de um ônibus, caindo na frente de outro e acabando por ser esmagado.

Voltou seus olhos para o local onde estivera seu possível assaltante.               
 
Não estava mais ali.

Rita Mourão (Poemas Escolhidos) 4

A VIDA E SEUS MISTÉRIOS

 
Curvada sobres minhas indagações, caminho.
Estou, mas não sei se estarei.
Nasci manchada de sangue
e as chagas do ontem ainda permanecem.
Há uma sentença de morte
sem que eu possa me defender.
Sibila no ar o grito rouco do carrasco invisível, mas cruel!
Sinto em meu corpo as dores do parto e da partida.
A estrada é só minha e o fim é meu fim.
E a vida, senhora de si e das horas me segue.
Com  os olhos de fera faminta.
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FINAL ABERTO
 
Sou um texto vivo repleto de hiatos, vírgulas e reticências.
Procuro interpretar-me e sem  respostas  me vejo refém do silêncio.
 Questiono-me
 e  aceito o desafio  de um final  aberto.
Fecho-me sem epílogo, sem garantia do amanhã.
Com o olhar de uma deusa pagã a vida tremula seus guizos.
E, para não morrer de angústia, POETIZO!
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INTROSPECÇÃO
 
Gosto de me olhar por dentro,
me  silenciar.
O silêncio me rende poesia.
No meu universo,
tenho   gosto de misturar  em minhas fantasias
as  pedras e ao sopro do vento,
segredos   da minha  cura interior.
O vento e as pedras me trazem  melodias
de outros tempos!
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MEU PASSADO

Meu passado?
Um chalé colorido com janelas de esperança
que  mostravam um horizonte acenando sonhos.
O  tempo  galopou  no dorso dos adeuses
e  me levou a outros horizontes.
 O chalé   perdeu a cor, as janelas se fecharam
e  os sonhos  se cristalizaram na memória.
O tempo  passou, sem respeitar sentimentos.
E eu sobre o que me resta, vou recriando  a vida.
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NÃO ME ROUBES DE MIM
 
Não me roubes os sonhos.
Quero que sejas a soma das minhas conquistas,
a âncora dos ideais que me levam ao mar
onde   sufoco  minhas carências de ti.
Não me leves do que sou,  não  me roubes a esperança.
Completa-me.
Enche-me da tua presença e serei uma enormidade.
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PREFERÊNCIAS

Passei minha infância nos arredores
de vastos campos e matas.
Por ter sido assim,
tenho um olhar contemplativo.
Sempre me transmudo
diante de um cenário verde.
Combino melhor com árvores,
pássaros e formigas,  isso eu sei ser e espiar.
Gosto de ouvir o gorjeio
das árvores que viram pássaros
para alegrar minhas carências.
E, para saciar a sede das ausências,
bebo copos de luares.
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UM JEITO DE AMAR
 
Chegaste  sem  aviso e cheio de improvisos
derrubaste  minha resistência.           
Não me disseste a palavra amor,
mas  exercitaste o verbo e o verbo era tudo.
Ofereceste-me  água e sal, rituais de completude.
Mataste a tua e a minha sede
e fizeste do amor um substantivo concreto.

Fonte:
Versos (Di) Versos. Disponível no site de Rita Mourão.

Célio Simões (O Drama da cheia)

As palavras com *, estão no glossário ao final do texto.
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Zé Lopes olhou desolado a imensidão líquida, inspirou profundamente, fazendo aquele gesto tipicamente latino de botar as mãos na cintura, apertar os olhos e balançar a cabeça... Realmente, para ele nada restava, a não ser arribar.

Equilibrado precariamente na cerca meio submersa, ele contemplava aquele cenário triste, sentindo um nó apertar-lhe a garganta. É que a enchente chegara!

Do seu terreno de várzea conseguido à custa de suor e privações, sobrara a copa dos igapós*, o caule retorcido das mungubeiras*, os vestígios da roça perdida. Zé previra a enchente e sabia do seu tamanho. Achara ovos de uruá* no alto do mourão que fincara para amarrar a montaria. O patinho d´água com seu canto agourento não calara durante todo o verão e a lua estivera sempre tombada para o lado esquerdo no dia de Ano Novo. Nada, portanto, era surpresa.

Os boatos iam e vinham. Falavam de fortes chuvas lá pras bandas do Acre e o sol teimando em permanecer aberto sobre um tal de Andes (?) derretendo muito gelo. Ele lembrava bem o dia em que fora buscar as vacas no pasto, a ventania espalhando a cabeleira dourada do taripucú*, quando tudo ainda era alegria e tranquilidade. Voltou com uma preocupação: o espraguejado do acauã*, peito estufado no alto do paricazeiro, cantava compulsivamente, chamando o aguaceiro.

Zé improvisou a maromba*. Esta lhe valeu a salvação das minguadas reses, ao todo, meia dúzia de vacas macilentas e um trôpego mamote*. Do pangaré sobrou a ossada no campo, transmudando-se em fogo-fátuo, abatido pelo ataque traiçoeiro da surucucu*. O que lhe restava estava ali, um lote esquálido e faminto, olhando esperançoso a premembeca* que flutuava descendo o Amazonas em ponto morto. Não havia como salvá-las.

O capim rareava e o tempo perdido em conseguir alguns peixes, fisgados ao fio da correnteza e trazidos na surrada igarité*, tirava-lhe a chance de socorrer a própria família. Esta, coitada, nem era bom pensar. O assoalho do barraco fora suspenso e eles andavam curvados, espremidos entre o teto de palha e o chão de pranchas de paxiúba*, vivendo o seu dia a dia miserável e ignorante, aferrados à reza diária e confortadora.

Nada obstante, Zé Lopes os amava. Sua mulher, a outrora “ajeitada” Joana, estava transformada pela gravidez, enjoando constantemente. A parteira já dera seu veredito: “Daqui a três meses, mais um curumim* vai chegar, se Deus quiser”. Zé ficou matutando que seria mais um para chorar de fome, como as outras três irmãs e o irmão. Joana, mesmo levando a tiracolo a imensa barriga (seriam gêmeos?), rebocando nas saias as cuiantãs* truíras e seminuas, era um braço com que ele sempre contava. Bem ou mal, nunca lhe faltara disposição para cuidar da chepa, remendar a roupa, preparar o glorioso caribé*e até dar um adjutório na estrovação do anzol, no preparo do espinhel*

Zé sentiu-se só, jogado naquela beira de rio, sem dinheiro, sem terra, sem remédios, quase sem comida e sem esperança.

Sem esperança? Não era então essa que morre por último? Por que iria perdê-la quando mais dela precisava, único bem que o gigantesco rio lhe poupara? Crispou a face com expressão determinada: jamais cairia sem lutar, nem permitiria aos vizinhos surpreendê-lo derrotado, no fundo do poço! Já demonstrara sua garra no cabo do terçado*, quando transformara em pasto a capoeira brava, reduzindo-a a pó nas cinzas da coivara*; sentindo na pele a inclemência do sol e das terríveis formigas de fogo brotadas das manhouranas. Iria mudar de vida.

Ainda era novo e poderia recomeçar de modo menos sofrido, labutar em algo que não fosse o permanente recomeçar permeado de medo e sobressalto. Aquilo – benza Deus – não era vida para cristão! Já bastava a lembrança da descomunal cheia de 1953, que de uma chuvinha besta virou um toró de mais de um mês, inundou os tesos, devastou os rebanhos e fez caboclo virar pedinte na cidade. E o que dizer daquela de 2009, o maior dilúvio que a Amazônia vivenciou nos últimos 50 anos?

Quem dera fosse todo o tempo verão! Zé apertava os olhos para ver como num filme a fartura de frutas, os ovos de tracajá*, o leite fresquinho, o piracuí* e o peixe abundante. Pasto nativo sobrando para o gado, a perder de vista. Mas aí vinha o inverno, o inverno trazia a cheia, a cheia trazia a fome, a fome trazia as dívidas. Porém seria aquele, o último ano de penúria. Um plano ousado teimava em sua cabeça. E se não desse certo? Mas daria, tinha que dar...

Caso o aguaceiro deixasse, venderia suas reses para o primeiro marchante, depois do reparador pasto da vazante. Aquele terreno provavelmente perderia, pois o banco, tão solícito na hora de emprestar a grana, não contemporiza com quem deve. Todo banco, oficial ou particular, realiza-se plenamente quando o cliente se torna escravo de sua própria dívida. Mas tudo bem. Talvez só com o dinheiro do gado... Era com esse dinheiro que faria o “milagre”.

A menos de uma hora de viagem de barco estava Óbidos e ali certamente acharia trabalho. O mesmo podia pensar de Santarém, distante umas oito horas rio abaixo. Nunca se imaginara naquela vida de cidade. Seria custoso partilhar seu espaço com carros, ter que andar todo tempo de sapato, aguentar o barulho do molecório próximo aos colégios e, acima de tudo, o suplício de saber que a parede de sua casa é também a parede do vizinho.

Ainda por cima, teria que pagar luz e água, principalmente esta, que no momento o Amazonas lhe impunha abundante e de graça. Em contrapartida, naqueles mesmos colégios barulhentos seus filhos poderiam estudar, aprender ao menos a escrever o nome. Sua Joana poderia lavar roupa de algum “barão” e quanto a ele... bem, ele acharia trabalho, disposição não lhe faltava; quem sabe fazendo carreto ou como braçal da prefeitura, na capinação de rua, agora que a lida com a juta e a castanha tinha fracassado e emprego andava vasqueiro*.

Em Óbidos, bem que tentou arranjar emprego no dia do Círio de Sant’Ana*, quando falou com o deputado que estivera em sua casa no ano anterior mendigando voto para se reeleger, prometendo-lhe mundos e fundos. O pilantra fez que não o conheceu, desconversou, disse que não podia ajudar, que nem mesmo se lembrava dele. Ficou arrasado.

O certo é que seu compadre Manoel, conhecido nas arpoações de pirarucu como “Manduca Mãe do Sono”, estava feliz da vida vivendo por lá, fazendo não se sabe bem o quê, ele e seu filho mais velho de 13 anos, que de tanto estudar ficou bamba na tabuada e já dava “quinau” em gente grande, sem ligar para enchente, gado ou fome. E olha que o Manduca, salvo sua disposição como pescador, era até meio indigno para outras tarefas, tanto que entre uma e outra tarrafeação*, vivia escornado pelos cantos tirando uma pestana, daí o apelido. Há dois anos ele abandonara a várzea, foi pra cidade e nunca mais pensou em voltar. Se com aquele desinfeliz dorminhoco dera certo, por que não daria com ele, que não enjeitava serviço?

Lá no bairro da Cidade Nova, que o prefeito da época criou para moradia de gente pobre, aterrando impiedosamente o Igarapé do Juncal, compraria uma barraca. Depois levaria a família, trabalharia que nem jumento de verdureiro, mas educaria os filhos. Seu caçula – que ainda estava na barriga – não iria sofrer como os outros. Seria livre para brincar em terra firme, longe das cobras, das sanguessugas e das dolorosas mordidas das formigas tracuás*. Olhou novamente a cidade, na contraluz da tarde que se findava.

As torres da Catedral de Sant’Ana, como que espetando o céu, faziam redobrar sua fé da padroeira, a quem dirigiu muda e emocionada súplica. Concordasse ou não Joana, aquele plano tinha que ser tentado. Fugir para a cidade para não morrer à míngua, era a saída que lhe restava. Olhou sua própria imagem refletida na água. Vestia andrajos. Haveria de dar certo...

Por entre a chiadeira asmática do velho rádio de pilha, outro salvado da enchente que já lhe arrebatara a parabólica, distinguiu os suaves acordes da Ave-Maria, inspirando a quietude das seis horas. Tornou a olhar e viu Joana aproximar-se, andar arrastado, escolhendo aonde pisar no precário madeirame. Notou algo estranho naquela fisionomia abatida que um dia achara bela. Alguma coisa de anormal acontecera.

– Zé, meu velho, os meninos tão com febre alta e o corpo sarapintado. Acho que é catapora. Antes que esta maldita enchente mate, vende as nossas vacas para que a gente cuide deles...

Zé Lopes ficou cabisbaixo. Esmagado por mais aquele imprevisto, torturado pela ideia de permanecer naquele tijuco* sabe-se lá por quanto tempo mais, deixou escapar um suspiro profundo. Levantou-se, olhou em torno como que procurando alguma coisa e meio vacilante tomou o rumo da barraca, na qual entrou praticamente agachado, espremido entre a ponte tortuosa e o beiral superior da porta. Que m... de vida, pensou!
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Glossário:
ACAUÃ = ave falconiforme com cerca de 47 cm de comprimento, plumagem amarelo-creme, dorso escuro, com faixa negra, que se estende até a nuca, e cauda negra, barrada de branco. Seu canto, emitido no crepúsculo e ao alvorecer, é considerado mal-agourado e prenunciador de chuvas.
CARIBÉ = alimento líquido, cujo ingrediente primeiro é a farinha de mandioca. Inventado pelos caboclos da Amazônia paraense que atribuem ao alimento carga curativa, sendo capaz então, de fortificar, sustentar e restabelecer aqueles sujeitos que por ventura tenham sido acometidos por alguma enfermidade.
DIA DE CÍRIO DE SANT’ANA – festa religiosa no 2º Domingo do mês de julho e marca “o início dos festejos de Nossa Senhora Sant'Ana”, Padroeira da Diocese e da Paróquia de Óbidos.
COIVARA =galharia e troncos derrubados pelas cheias e que descem os rios.
CUIANTÃ = moça, mulher jovem.
CURUMIM = garoto, menino.
ESPINHEL = artefato para pesca de fundo composto de uma linha forte e comprida com várias linhas curtas presas a ela, a intervalos regulares, cada uma com um anzol na ponta.
IGAPÓS = vegetação baixa e uniforme da floresta amazônica, pobre em espécies, com árvores afastadas.
IGARITÉ = embarcação cargueira do Amazonas com capacidade até 2 t.
MAMOTE = filhote crescido que ainda mama.
MAROMBA = cabo de aço ou de fibra vegetal, suspenso de uma margem à outra de um curso de água, sobre o qual os tripulantes das embarcações de travessia exercem tração manual para fazê-las deslocar
MUNGUBEIRA = árvore de até 25 m de folhas compostas, flores eretas e frutos capsulares, com paina fina e pardacenta; Nativa da Amazônia, é usada para a extração de celulose e de fibras para cordoaria.
PAXIÚBA = palmeira de até 20 m do Amazonas e outros estados e países da região, especialmente em áreas alagadas, com características raízes-escoras, estipe fino e anelado, folhas pinadas e frutos ovoides, amarelo-avermelhados, cuja madeira é usada pela população ribeirinha para a confecção de bengalas e tabuados, e pelos indígenas para a confecção de arcos, flechas e lanças.
PIRACUÍ = iguaria feita de peixe seco em pó.
PREMEMBECA = tipo de capim que forma grandes aglomerados ao longo dos rios e em suas várzeas.
SURUCUCU = serpente venenosa de grande porte, pode alcançar 2 m ou mais de comprimento, e apresenta colorido marrom-amarelado com grandes manchas triangulares pretas. É a maior serpente venenosa da América do Sul.
TARIPUCÚ = espécie de capim.
TARRAFEAÇÃO = puxar boi pelo rabo para derrubar.
TERÇADO = facão grande.
TIJUCO – lugar de solo mole, charco, pântano.
TRACAJÁ = tartaruga de água doce encontrada nos rios amazônicos, com cerca de 50 cm de comprimento, carapaça abaulada, pardo-escura, e cabeça com manchas alaranjadas. Os ovos, colocados nas praias dos rios, são apreciados pelo povo amazônico.
TRACUÁS = formigas da Amazônia, que vive em cupinzeiros arborícolas abandonados e forma colônias numerosas. É agressiva e solta cheiro forte quando esmagada.
URUÁ = palmeira de até 20 m, nativa do Amazonas, de estirpe anelado, folhas verde-reluzentes e frutos drupáceos
VASQUEIRO = difícil de conseguir, de encontrar.


Fonte:
Texto e foto da cheia enviado pelo autor, de seu livro “Um pouco de muitas histórias”. 1. Edição. Editora TrêsC, 2016, pág. 81/85.

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Sammis Reachers (É uma macumba? É um despacho? Não, é um despachante!)

Luiz Antônio (Nome de guerra: "Macumba") é um despachante atualmente em atividade na Auto-Lotação Ingá. Antigo e experimentado malandro, morador da Baixada, rodado nos paranauês e na Central do Brasil, e com conhecidos entre bandidos e milicianos. É também um cara zoador e sacana, sempre pronto pra fazer a galera rir (mesmo sem querer!) com sua expressão brava, mas divertida.

Numa certa época, Macumba era despachante do turno da manhã no bairro de Charitas, ponto final das então três linhas 62 (Fonseca / Sta. Bárbara / Caramujo x Charitas). Seu parceiro de então, o despachante da tarde, era o Lucas, jovem centrado e de grande capacidade, então recém-promovido de cobrador a despachante.

Todos os dias, ao chegar ao ponto para a rendição, Lucas perguntava a Macumba qual era o último carro que ele marcara e o horário do mesmo. Assim, Lucas iniciava seu mapa (planilha onde se marcam os horários dos ônibus da linha) a partir daquele último ônibus marcado.

Ah, antes de continuar deixem-me abrir um parêntese: Na Ingá e em algumas outras empresas há uma disputa silenciosa, um torneio secreto para saber qual despachante tem a letra mais feia e incompreensível. Na Ingá a disputa era acirrada: Macumba de um lado, Adão de outro, Paulo Maluco (Lobisomem) na outra ponta e por fim o baixinho do Eduardo, que muitos acreditavam ser o campeão. Mas a disputa estava em aberto, e, como veremos, prestes a decidir-se.

Um belo dia, Lucas chega ao ponto e, apanhando sua prancheta, rotineiramente principia a preencher seu mapa de horários. Há um ônibus parado no ponto, o último que Macumba marcara, Lucas, como era corriqueiro, pergunta ao enfezado Macumba qual fora o horário que ele marcara para aquele carro. Ao olhar em seu mapa, Macumba arregala os olhos, em seguida aperta-os, como quem se esforça para enxergar algo pequenino, e por fim percebe que não pode compreender o que ele mesmo marcara. Isso mesmo, o bruto não conseguia entender a sua própria letra.

Na dúvida, foi até o veículo e pediu a ficha ou guia ao motorista. Ao olhar o horário escrito na ficha, novamente não entendeu a própria letra. E por sinal, nem mesmo o motorista entendera nada. E nem Lucas, que também fora olhá-la. A confusão estava estabelecida. Macumba então pergunta ao motorista:

- Está ruim de entender... Você não se lembra que horário que eu falei, não?

- Hum, Macumba, eu não me lembro não. Mas uma coisa eu sei: um camarada não entender a própria letra, isso eu nunca vi.

A galera próxima caiu na gargalhada. Para arrematar, o despachante Lucas, vendo um pratinho de quentinha jogado na lixeira do ponto, perguntou a Macumba:

– Já almoçou?

– Já sim, almocei onze horas,

– Comeu o que hoje?

Macumba pensou um pouco... E pensou mais um pouco... E depois de uma última e forte pensada, concluiu:

– Xará, sabe que eu não sei?

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 8 –

A chuva que cai do teto
pelo zinco a noite inteira,
é partitura de afeto
na voz de cada goteira!
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Ah, mãe! Ao me por de joelhos,
em silêncio e de mãos postas,
quero ouvir bem teus conselhos,
ante enigmas sem respostas!
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Ante os mistérios da vida,
posso afirmar sem maldade,
que do pão da despedida
se faça o pão da saudade!
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Bem-vinda a chuva que encerra,
a seca triste, inclemente,
e rega o ventre da terra,
para brotar a semente!
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Crer num ser supremo, eu creio!
À fé, me curvo e me entrego;
a prova é não ter receio
de crer na cruz que carrego!
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Disse ao cego, ante o bom gosto,
ao vê-lo partindo o pão:
– Se te falta a luz do rosto,
sobra luz no coração!
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Em teus chinelos, meu pai,
deixaste, em cada viés,
uma impressão que não sai,
das digitais de teus pés!
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Hoje, eu retirei do armário,
minha velha antologia;
meu primeiro breviário
das lições de cada dia.
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Mesmo com a vida aos frangalhos,
segue o pobre sem tardança,
buscando em falsos cascalhos
pepitas vãs de esperança!
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Não há luxo no meu rancho;
fiz igual ao passarinho
que, com sargaço e garrancho
tece o luxo do seu ninho!
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Não sei se tu me permites
que eu te dê explicação:
– A um velho amor, sem limites,
não se impõe mais permissão!..
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Nem precisa que te peça,
mas me apresso e peço agora:
– Ó lua, volta depressa,
que a noite negra te implora!
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Numa longínqua tapera,
ainda vi, enclausurados...
Meus sonhos de primavera,
e outros sonhos sepultados!
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Nunca se dá passos vãos,
quando outra vida se arruma;
é que o amor perfuma as mãos,
de quem, outra mão perfuma!
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O ciúme, que o amor cerceia,
causa entre nós tal revés,
que vê falsos pés na areia
sem ter marcas de outros pés!
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O nosso amor tem por lema,
a perfeição de uma flor;
e essa flor, virou poema
de linda história de amor!
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O sol, que a manhã decora,
carrega em seus alfarrábios,
o rubro riso da aurora
na cor rubra de seus lábios!
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Pela cruz apedrejada,
à distância, se deduz
quanto sofre a alma penada,
pelo desprezo da cruz!
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Qualquer lição de virtude
que em minha alma ainda vive,
é sobra da juventude
da infância pobre que eu tive!
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Quando a noite estende os braços
ofuscando a luz da lua,
o silêncio, apressa os passos
da solidão pela rua!
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Que dor, que vazio imenso,
quando partes para o mar!...
Do barco, acenas teu lenço,
no cais, meu lenço, a acenar!
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Sê como o Sol!... Pelo brilho,
não cobra o bem que nos faz.
Só quem faz o bem, meu filho,
põe os pés no chão da paz!
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Se tu tens fé, larga o tédio
dessa dor que te entorpece,
e põe teu mal sem remédio
nas mãos santas de uma prece!
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Só depois que o sol desmaia
e a noite acelera o passo,
a lua cor de cambraia
faz versos brancos no espaço!
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Solitário, um monge velho,
interpreta com ternura,
no silêncio do evangelho,
a solidão da clausura!
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Só pelo amor, se descobre,
o que a pobreza revela;
Que a vida humilde é mais nobre,
se o amor é a riqueza dela!
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Teu olhar, luz de minha alma,
lindo entre as luzes pagãs,
que brilham mantendo a calma
do sol de minhas manhãs!
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Teu regresso, não me importa;
o tempo já dá sinais,
da esperança quase morta,
nos braços de um "nunca mais"!
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Tua ausência não me cansa,
nem me canso de te amar;
por ser servo da esperança,
vale a pena te esperar!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Figueiredo Pimentel (O Macaco e o moleque)

Iaiá Romana era o apelido porque toda a gente conhecia uma velhinha que possuía uma bela roça, onde havia além de muitas outras frutas, uma bela plantação de bananeiras.

Quando as bananeiras estavam carregadas de cachos, a velha não tinha por quem mandar tirá-las, se sorte que ficavam maduras, e eram comidas pelos passarinhos, ou apodreciam.

Um dia, apareceu-lhe na roça um macaco, que lhe disse:

– Ó tiazinha, por que é que a senhora não colhe essas bananas, que já estão maduras, e não as põe na dispensa? Se não tiver quem lhe faça esse serviço, aqui estou eu, ao seu dispor.

Romana aceitou o oferecimento. O macaco, porém, assim que se pilhou trepado nas bananeiras, começou a comer as maduras e jogar as verdes para a velha, que, desesperada, jurou vingar-se.

Desde esse dia, vivia constantemente a procurar um meio de apanhá-lo. Qual! O bicho era esperto, e ela ficava sempre lograda.

Mas, um dia, a velha lembrou-se de fazer uma figura de alcatrão, fingindo um moleque, e colocou-lhe um tabuleiro de bananas bem madurinhas no cabo, como, se as estivesse vendendo.

Poucas horas depois apareceu o macaco. Supondo que era mesmo um pretinho, pediu uma banana. O moleque ficou calado.

– Moleque, dá-me uma banana, senão levas um sopapo! gritou.

O moleque permaneceu calado, e o macaco desandou-lhe a mão, ficando com ela grudada no alcatrão.

– Moleque, larga a minha mão, senão levas outro sopapo!... repetiu o macaco.

E o moleque sempre calado.

O macaco soltou outro bofetão, e ficou com a outra mão grudada.

– Moleque! moleque! larga as minhas duas mãos, senão levas um pontapé!... berrou o mono, enfurecido.

Como é bem de ver, o moleque calado estava e calado continuava.

O macaco deu-lhe um pontapé, ficando com o pé preso.

– Moleque dos diabos, larga meu pé que te dou outro pontapé! exclamou.

E o moleque calado.

O macaco deu outro pontapé, e ficou com os pés presos.

Aí não se conteve mais, e disse:

– Moleque dos infernos, larga os meus dois pés e as minhas mãos, senão te dou uma umbigada!

E o moleque calado.

O macaco deu-lhe uma umbigada, e ficou completamente agarrado ao alcatrão.

Assim que o viu preso, Iaiá Romana apareceu, foi ao mato, cortou umas varinhas, e começou a dar-lhe com toda a força uma sova enorme, enquanto ia dizendo:

– Eu não te disse, macaco, que havias de me pagar? Toma lá agora, para não vires caçoar comigo!

O macaco tanto se debateu, que afinal conseguiu se livrar do alcatrão, e nunca mais quis graças com a velha Romana.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Adega de Versos 16: Junior Adelino

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 23, 24 e 25


O ANTICIRCO


— É preciso inventar alguma coisa — disse o sapo. — Alguma coisa de novo, surpreendente. Pular ao som do fandango paranaense já está me tirando a alegria de viver. Eu queria pular ao ritmo da Marselhesa, por exemplo.

— Não te fica bem a Marselhesa — ponderou o caxinguelê. — Não só é antiquada, como o teu jeito é mais para o folclore do Sul. Talvez uma
rancheira, uma polquinha de galpão fosse mais indicada. Mas o caxinguelê também não andava satisfeito com o seu número.

Ágil e serelepe como é de natureza, tinha de imitar o filho de Guilherme Tell, imóvel, com a maçã na cabeça, esperando a flechada paterna. O pai era representado por um macaco simpático, que alimentava o desejo de, lá um dia, acertar no caxinguelê.

— Não tenho vocação para estátua nem para vítima. Vou deixar este circo, a menos que me nomeiem gerente. Tenho vocação para gerente,
você sabia?

O sapo não sabia nada. Estava farto de fandango, que o obrigava a uma dança inconveniente para sua idade e condição. De resto, nenhum animal daquele circo sentia prazer executando o número que lhe deram. Era o circo mais inconformado que já existiu.

Seu dono ignorava isto, porque morava longe e nunca assistiu a uma
função.

O circo jamais pegou fogo. Seus animais descontentes constituíam a maior atração. Cada vez seduziam mais público. Era o anticirco.
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O ASSALTO

A casa luxuosa no Leblon é guardada por um molosso de feia catadura, que dorme de olhos abertos, ou talvez nem durma, de tão vigilante. Por isso, a família vive tranquila, e nunca se teve notícia de assalto à residência tão bem protegida.

Até a semana passada. Na noite de quinta-feira, um homem conseguiu abrir o pesado portão de ferro e penetrar no jardim. Ia fazer o mesmo com a porta da casa, quando o cachorro, que muito de astúcia o deixara chegar até lá, para acender-lhe o clarão de esperança e depois arrancar-lhe toda ilusão, avançou contra ele, abocanhando-lhe a perna esquerda. O ladrão quis sacar do revólver, mas não teve tempo para isto. Caindo ao chão, sob as patas do inimigo, suplicou-lhe com os olhos que o deixasse viver, e com a boca prometeu que nunca mais tentaria assaltar aquela casa. Falou em voz baixa, para não despertar os moradores, temendo que se agravasse a situação.

O animal pareceu compreender a súplica do ladrão, e deixou-o sair em estado deplorável. No jardim ficou um pedaço de calça. No dia seguinte, a empregada não entendeu bem por que uma voz, pelo telefone, disse que era da Saúde Pública e indagou se o cão era vacinado.

Nesse momento o cão estava junto da doméstica, e abanou o rabo, afirmativamente.
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O BEBEDOR TOTAL

— O senhor tem lista dos uísques importados?

— Aqui está. Tenho certeza de que encontrará a sua marca preferida.

Explicou que não era de preferir marca. Preferia todas. Seu prazer consistia em ir do Ancestor ao White Horse, não desprezando nenhum dos que começam pelas demais letras do alfabeto.

O gerente ficou assombrado. Que bebedor enciclopédico!

— Noto uma coisa. A lista me parece bastante lacunosa. O senhor não tem uísques das letras E, I, K, M, N, Q, T, U, X, Y e Z. É pena.

— Perdão, mas será que não bastam as cinquenta e tantas marcas que ponho à disposição?

— Não, infelizmente. Queria o abecedário completo.

— E… iria comprar todo ele?

— Comprar? Absolutamente não. Não pretendo comprar sequer uma garrafa. Com esses preços, nem mesmo as miniaturas, sabe? Eu sou bebedor de lista. A lista me invoca, me embriaga, me transporta ao sonho. Mas só uma lista bem completa. Obrigado, passe bem.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) V

SUSPIROS E SAUDADES


Depois de tantas perdas só restou-me
Na soledade,
Em que deixou-me a dor, para consolo
Roxa saudade.

Esta flor, tão estéril nos prazeres,
Quando em retiro
Quase sempre do seio magoado
Brota um suspiro.

Achava estes suspiros e saudades
Encantadores,
Embora fossem flores da tristeza,
Sempre eram flores.

Demais, quem tem das ditas deste mundo
Chegado ao termo,
Quem traz de ingratidões e desenganos
O peito enfermo;

Quem tem com a flor que às almas venturosas
Do prazer fala?
Que ao ver-lhe o coração trajando luto
Traja de gala?

A tristeza que tendes, minhas flores,
É vosso encanto.
E como éreis formosas orvalhadas
Pelo meu pranto!

Mas secastes também?! Faltou-vos água?
Demais tivestes.
Fogo? Desde nascidas sempre em chamas
De amor vivestes.

Secastes? Com razão, que destas flores
Certo não é
Verdadeiro alimento, água nem fogo
Faltando a fé.

Vivem com fogo e água, se dos prados
Nascem no chão;
Mas não se flores d’alma dentro d’alma
Nascendo vão.

Quando morta a f’licidade,
A fé expira também!
Saudades de que se nutrem?
Os suspiros que alvo têm?

Morta a fé, vai-se a esperança,
Como pois viver pudera
Saudade que não tem crença,
Saudade que desespera?

Onde as graças do passado,
Se altivo gênio sanhudo
O ceticismo nos brada,
Foi mentira, engano tudo?

Em nada creio do mundo:
Ludibrio da desventura
A felicidade me acena,
Só de um ponto — a sepultura.

Morreram minhas saudades,
E meus suspiros calados
Dentro d’alma pouco a pouco
Vão morrendo sufocados.
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À TERRA NATAL *

Adeus!... Vou procurar talvez um túmulo
Longe do teu regaço.
Nunca me foste mãe, mas sou teu filho,
Concede-me um abraço!

Abençoa-me! — Parto; dá-me a bênção!
Que ao filho desgraçado,
Mesmo o ser infeliz dá mais direitos
A ser abençoado.

És rica, eu nada tenho; mas ao nada
Me soube acostumar;
Dispenso os teus tesouros, mas a bênção
Não posso dispensar.

Adoro-a, quero-a, sim; porque custou-me
Aspérrimo desgosto,
Torturas inauditas, conservar-lhe
Sem manchas este rosto.

Quero de filial doce ventura
Encher meu coração,
Revendo nela, filho abençoado,
A minha filiação.

Nunca me foste mãe pelos carinhos;
Ao menos um sinal
Dá-me, dá-me de mãe, que sou teu filho,
Na bênção maternal.

Adeus!... Perdoa se me queixo; as queixas
Que exalo em minha dor
Ofender-te não devem, que são filhas
De meu ardente amor.

Esses braços ao filho que se aparta
Estende por quem és,
Que o filho por teus braços abraçado
Abraçará teus pés!...
–––––-
*Escrita quando o poeta partiu para a Bahia para concluir seu curso de Medicina.
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ÚLTIMO CANTO DO CISNE

Quando eu morrer, não chorem minha morte,
Entreguem meu corpo à sepultura;
Pobre, sem pompas, sejam-lhe a mortalha
Os andrajos que deu-me a desventura.

Não mintam ao sepulcro apresentando
Um rico funeral d’aspecto nobre:
Como agora a zombar me dizem vivo,
Digam-me também morto — aí vai um pobre!

De amigos hipócritas não quero
Públicas provas de afeição fingida;
Deixem-me morto só, como deixaram-me
Lutar contra a má sorte toda a vida.

Outros prantos não quero, que não sejam
Esse pranto de fel amargurado
De minha companheira de infortúnios,
Que me adora apesar de desgraçado.

O pranto, açucena de minh’alma,
Do coração sincero, d’alma sã,
De um anjo que também sente meus males,
De uma virgem que adoro como irmã.

Tenho um jovem amigo, também quero
Que junte em minha Essa os prantos seus
Aos de um pobre ancião que perfilou-me
Quando a filha entregou-me aos pés de Deus

Dos meus todos eu sei que terei preces,
Saudades, lágrimas também;
Que não tenho a lembrança de ofendê-los
E sei quanta amizade eles me têm.

E tranquilo, meu Deus, a vós me entrego,
Pecador de mil culpas carregado:
Mas os prantos dos meus perdão vos pedem,
E o muito que também tenho chorado.

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas.

Rubem Braga (O Amigo sonâmbulo)

Na semana passada chegou a Primavera; na semana que vem são as eleições, e no futebol já teve início o returno; eia, pois, ergue-te, cronista, e cumpre o teu dever. Mas o cronista sonha; nem as açucenas primaveris nem a cívica peleja nem o clamor do Maracanã o despertam; será morfina, será maconha, será amor? Será amor? Talvez apenas um vago sonho de amor. Ele sorri; alguém lhe falou da bem-amada de um amigo, a que se vestia de rendas negras e tinha ao ombro uma rosa-chá; sorri como quem manda em silêncio um recado: sede felizes. Para si mesmo ele não pretende isto; nem pensa.

Ama? Animula vagula, blandula essa que ama, sonâmbulo. Muito antigamente já terá sido mulher, e amor. Mas ficou tão longe, se fez tão longe, que é uma sombra junto a si, pairando... Amiga? Ele se humilha. A amiga é feito a crase, no tempo em que Ferreira Gullar era poeta e, no lugar de dizer ema lema eva leve leva leme, dizia: “a crase não foi feita para humilhar ninguém”, e ouvia o galo cantar, e sabia aonde; agora ninguém sabe mais. Talvez saibam, não digam.

Importa pouco. Os galos cantam em direção do Oriente; dê sua direita ao amor, fique de frente para o passado, terá o remorso à esquerda e a sombra da morte às suas costas. A boa sombra; a que virá crescendo devagar, e então você não sonhará, não desejará sequer beijar o pé da amada, não se angustiará, não será mais.

Esta é, na verdade, a grande consolação. Mas entrementes ainda estamos vivos, todos nós, mesmo ele, o sonâmbulo; e na vida há sol, há ventos, rios correndo, ondas a estourar nas pedras. Isso não desperta o sonâmbulo, mas o agita. Está dopado de amor.

Como lhe devolver a dignidade? A ele, que já teve gestos ásperos; e ia calado; ia; topava; era duro, viril. Amar não é viril. Isto é, amar assim, sem esperança de ser amado, amor de menino burro ou doente. O sentimento que ele tem de estar sobrando na vida, de ninguém precisar dele: vaga estima, tolerância amiga. Viajou.

“Ah, viajou? Mas escute, você já viu esse filme do Metro?” Ou: “Falar nisso, e aquele amigo dele que esteve na Rússia, como é que se chama?” Enfim, qualquer frase serve de necrológio ao desamado ausente.

Certo, Manuel Bandeira fala de uma “limpa solidão”, ou alguém disse isso dele. Não creio. Solidão limpa só com vassoura e aspirador permanente: a solidão do homem é cheia de detritos, lembranças, pequenos fantasmas que são como objetos inúteis, quebrados, em um porão, nomes riscados em um caderno de telefones, teias de antigas aranhas.

Mas por que lamentar o sonâmbulo? Ele sorri. Neste momento, ao menos, está feliz. Seus dedos movem-se, como se acariciassem os cabelos da amada, a esquiva nuca. Murmura: vem... Isso, entretanto, nos corta o coração. Podíamos prendê-lo em um banho turco para suar suas melancolias, mandar-lhe um jato de água fria, ataca–lo para que reaja, despertá-lo com gargalhadas para que acorde banhado em ridículo e chore, leve um tapa na cara, tome dexamyl spansule, morda pimenta malagueta, viva! Ou apelaremos para a psicanálise, o hipnotismo, a lavagem de cérebro, a propaganda subliminar durante o banho de mar?

Na verdade, temos outras coisas a fazer e desistimos tacitamente de jamais recuperar o sonâmbulo; vamos disfarçando, disfarçando até que um dia ele morra e então diremos sem muita hipocrisia: coitado.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.

Estante de Livros (O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna)

Eudoro Vicente manda uma carta a Eurico dizendo que lhe pedirá o seu bem mais precioso.

Na casa do comerciante, moram a filha Margarida, a irmã de Eurico, Benona, a empregada Caroba e, já há algum tempo, Dodó, filho do rico fazendeiro Eudoro. Dodó vive disfarçado, finge-se de torto, deformado e sovina. Assim conquistou Eurico, que lhe atribuiu a função de de guardião da filha, quem Dodó namora às escondidas.

O desenrolar dos fatos se desencadeia com a carta enviada por Pinhão, empregado de Eudoro e noivo de Caroba, empregada de Euricão. Eudoro informa que fará uma visita para pedir esse bem tão precioso a Eurico, que fica apreensivo, pois pensa que lhe pedirá dinheiro emprestado. Eurico insiste em de dizer pobre, repetindo as frases: "Ai a crise, ai a carestia".

Na sala da casa de Eurico, onde as cenas se desenrolam, há uma estátua de Santo Antônio, de quem Eurico é devoto, e uma antiga porca de madeira, a quem ele dedica especial atenção e que logo o público saberá que esconde maços de dinheiro.

Caroba, muito esperta, percebe que Eudoro pedirá margarida em casamento, é assim que ela entende o bem mais precioso de Eurico que o fazendeiro, pai de Dodó, quer saber. Então ela arma um circo para alcançar alguns objetivos: ganhar algum dinheiro, pois quer casar com Pinhão, casar Dodó e Margarida além de Eudoro e Benona, que já tinham sido noivos há muitos anos. Eudoro, viúvo, querias Margarida, mocinha; Benona, solteirona, queria Eudoro, fazendeiro; Margarida queria Dodó, pois o amava; Caroba e Pinhão se queriam; Euricão queria a porca, ou será que queria a proteção de Santo Antônio para a porca?

Caroba negocia uma comissão com Eurico para ajudá-lo a tirar vinte contos de Eudoro Vicente, antes que este peça dinheiro a Eurico. Acertam-se. Aí Caroba convence Benona que Eudoro virá pedi-la em casamento e se dispõe a ajudá-la. São então tramas de Caroba: fazer Eurico pedir vinte contos a Eudoro para o casamento (na realidade, para um jantar); convencer Benona de que Eudoro viria pedi-la em casamento; fazer Eudoro acreditar que pede Margarida; fazer Eurico crer que Eudoro pede Benona; armar um encontro entre Eudoro e Margarida na penumbra; ficar no lugar de Margarida, com o vestido dela.

Consequências das armações de Caroba: Dodó sente ciúme de Margarida, pois pensa que ela irá encontrar-se com Eudoro; Pinhão sente ciúme de Caroba quando sabe que ela irá em lugar de Margarida; Euricão desconfia que querem roubar sua porca recheada, pois ouve falarem em devorar porca e pensa ser a sua, quando é a do jantar que se encomendou para receber Eudoro; Pinhão desconfia de Eurico e o observa, porque este age estranhamente.

Na hora do encontro entre Margarida e Eudoro, Caroba tranca Margarida no quarto, manda Benona permanecer também no seu e vai, vestida de Margarida, receber Eudoro. Dodó vê Caroba e pensa ver Margarida, pois está com o vestido dela. Para não ter que se explicar, Caroba o empurra e tranca no quarto com Margarida. Caroba então veste roupa de Benona e esta a de Margarida. Caroba então recebe Eudoro vestida de Benona. Ele é enganado: pensa estar conversando com a antiga noiva, que se insinua a ele, na penumbra não percebe que é Caroba. Ela o leva ao quarto de Benona e o tranca com a ex-noiva, por quem agora já está novamente interessado.

Pinhão ao sair do esconderijo onde estivera observando a cena, vê Caroba e pensa ser Benona e tenta seduzi-la. Ela reage e bate em Pinhão e o manda esperar por Caroba, que tira as roupas de Benona e diz que acompanhou toda a cena, bate outra vez em Pinhão, mas na confusão começam a se beijar. Aí destrancam as portas dos quartos de Margarida e Dodó, Benona e Eudoro, e entram em outro.

Dodó e Margarida saem do quarto e pensam ter sido surpreendidos por Eurico, que entra em casa dizendo estar perdido. Na verdade Eurico havia saído para enterrar sua porca recheada dentro do cemitério. A conversa entre Eurico e Dodó é engraçada, pois ambos se enganam: Dodó fala de Margarida, enquanto Eurico fala da porca que desapareceu. Eurico pensa que o rapaz lhe roubou a porca, já que este o traiu. No desespero, Eurico finalmente revela que a porca estava cheia de dinheiro guardado há tantos anos.

Com os gritos da discussão, Pinhão e Caroba saem do quarto. Depois Eudoro e Benona do seu. A cena é divertida: são três casais que de repente estão juntos e felizes ante Euricão lamentando a perda da porca. Graças a Caroba os casais se entendem sem Euricão nem Eudoro perceberem o engano de que foram vitimas. Margarida desconfiou de Pinhão e afirmou que ele pegara a porca. Eurico lhe salta no pescoço e Pinhão acaba contando, mas exige vinte contos para dizer onde escondeu a porca, os vinte contos que Eurico conseguiu emprestados de Eudoro com a ajuda de Caroba. Com o vale do dinheiro na mão, mostra a porca que estava na casa mesmo.

Então, Eudoro faz Eurico perceber que aquele dinheiro era velho e havia perdido o valor. Eurico se desespera. Tentam dissuadi-lo da importância do dinheiro, mas ele manda todos embora e fica só, com a porca e o Santo, tentando entender o que aconteceu, qual o sentido de tudo que houvera.

Características da Obra de Sussuna:

Quando começamos a estudar a produção dos autos de Ariano Suassuna, não podemos dissociar esta análise das produções do escritor Gil Vicente. Ambos possuem semelhanças concretas, principalmente, com relação à:

1. Construção das personagens

cada personagem representa uma classe social - que é criticada - e, por vezes, possui um nome que o identifica a função que exerce na comunidade onde vive, ou apelidos cômicos, como acontece com João Grilo, Chico, a mulher do padeiro, todos do Auto da Compadecida; Gil Vicente identifica seus personagens como mercadores, padres, pobres, etc., sempre numa alusão às classes da hierarquização social da Era Humanista ( marca o fim da Idade Média );

2. Religiosidade

ambos os autores reforçam a manipulação que o clero exerce sobre o povo mais simples, compactuando com os interesses econômicos representados por coronéis, bispos (Ariano Suassuna) e por nobres, ricos (Gil Vicente); as figuras de diabos, anjos, Jesus e Nossa Senhora estarão presentes nas obras dos escritores, com a devida evolução de linguagem no caso dos textos de Suassuna - dentre essas a figura que rouba a cena é a do diabo pela sua força expressiva e sua posição de juiz das almas já que enumera as falcatruas dos outros personagens (efetuando, inclusive, uma rememoração da história que está sendo contada).

3. Crítica social

os períodos históricos em que os autos são escritos apresentam características semelhantes: grande desnivelamento social, fome, desmandos de poderosos e, em se tratando das obras de Suassuna, há o agravante dos fatores naturais que tornam a vida do sertanejo muito difícil.

4. Ironia

é a grande marca que identifica os autores e é o grande recurso utilizado para elaborar a crítica. Em Gil Vicente, há obras cuja ironia crítica serviu de modelo para as gerações seguintes, como em Auto da Lusitânia (e os personagens "Todo o mundo" e "Ninguém"). E em Ariano Suassuna, o mesmo será comprovado no reconhecido Auto da compadecida, mas também em O santo e a porca e em Farsa da boa preguiça.

Comparação com Plauto


Na apresentação de sua peça O Santo e a Porca (1957), Ariano Suassuna a sub-intitula de uma "Imitação Nordestina de Plauto", referindo-se à Aululária, do autor latino.

A palavra imitação, usada por Suassuna, nos remete ao conceito aristotélico de mímesis, cujo significado não representa apenas uma repetição à semelhança de algo, uma cópia, mas a representação de uma realidade, mais precisamente de uma revelação da essência dessa realidade.

Essa essência está representada, nessas duas obras, pela avareza humana.

Neste trabalho, pretendemos uma abordagem desse tema, sob o aspecto de como o objeto depositário da avareza foi tratado pelos dois autores: a panela, em Aululária; a porca, na comédia de Suassuna.

Optamos pelo enfoque simbólico dessa proposta, visto que a obra de Suassuna, que se declara uma imitação da de Plauto, mantém uma distância de mais de dois milênios da original e está contextualizada, tanto geográfica como culturalmente, numa distância não menor do que a temporal.

Nesse paralelo, destacamos a trajetória dos dois objetos que constituem o eixo norteador de toda a ação das duas peças.

Na comédia do autor latino (Plauto Titus Maccus - 250?-184? a.C.), de influência grega e estilo tipicamente romano, o velho avarento Euclião descobre na lareira de sua casa uma panela cheia de moedas de ouro deixada por seu avô. O casamento de sua filha com um velho rico é o motivo que origina toda a ação da peça. Os recursos utilizados por Plauto dão à comédia um ritmo ágil e hilariante, cheio de ambiguidades e desencontros. "O diálogo, como em todas as suas peças, lembra a fala rápida da comédia musical americana (e na verdade era representada com acompanhamento musical)" (GASSNER, 1974, p.112).

Ariano Suassuna retoma o tema e situa-o no Nordeste. Seu protagonista chama-se Euricão Árabe.

Na contracapa do livro de Suassuna (1984), Manuel Bandeira comenta as duas obras:

Plauto é o mais linearmente clássico, na sua pintura de um caráter de avarento; Suassuna é o mais complicado, não só pela maior abundância de incidentes na efabulação, como pela evidente intenção de moralidade filosófica; (...) e os elementos nordestinos da porca e seu protetor, o Santo (Santo Antônio) são os grandes achados de Suassuna, e o que confere o timbre de originalidade na volta ao velho tema.

Na sequência das duas narrativas, tanto a panela quanto a porca acompanham todo o ciclo de transformação interior dos respectivos protagonistas, o que nos induz a uma interpretação simbólica desse trajeto.

Tomamos como símbolos, na Aululária ou O Vaso de Ouro, o Deus Lar, a lareira, o templo da Fidelidade, o bosque de Silvano e o objeto representativo da avareza, a panela (vaso). Em O Santo e a Porca, temos como correspondentes o Santo Antônio, a sala, o porão, o cemitério e o objeto da avareza, a porca de madeira.

Considerando os costumes e as crenças inerentes às duas épocas retratadas pelos autores, cabe primeiramente um destaque à parte mística e mítica das duas peças.

Para os romanos, os Lares eram deuses domésticos, protetores de cada família e de cada casa, cultuados no lararium, uma espécie de oratório. Tinham um templo, no Campo de Marte, onde eram feitos os sacrifícios e as oferendas. Interessante destacar que, quando se tratava de sacrifício público, a vítima ofertada era o porco (SPALDING,1982).

Euclião, até o momento da perda de sua panela com o tesouro, invoca o deus Hércules, identificado com o deus grego Héracles, símbolo da força combativa. Os romanos também o tinham como divindade protetora dos bens materiais e dos bons lucros nos negócios.

Após a perda de seu tesouro, Euclião invoca Júpiter, que simboliza tanto a expansão material como o enriquecimento vital.

Santo Antônio, por sua vez, é um santo de grande devoção popular nos países de origem latina. No Nordeste, esse santo é grandemente festejado durante as chamadas festas juninas. É tido, também, como "santo casamenteiro".

Euricão Árabe, o velho avarento de O Santo e a Porca, invoca o santo, questiona-o, do início ao fim de sua aventura. Embora, em alguns momentos, oscile entre o santo e a porca, mantém-se fiel ao santo de sua devoção. Esta oscilação poderia representar o movimento entre espiritualidade e materialidade inerentes ao ser humano.

Euclião, no entanto, é a imagem da personificação da avareza. Apela para o deus ou divindade que melhor atender à necessidade de determinado momento.

Nesse contexto de crenças e costumes, a avareza das duas personagens está representada em dois objetos: a panela (vaso) com o ouro de Euclião, escondida na lareira, e a "porca de madeira, velha e feia (...) com pacotes de dinheiro" (SUASSUNA, 1984, p.13), depositada na sala de Euricão sob a imagem de Santo Antônio.

A lareira expressa o simbolismo da vida em comum, do centro da casa. Seu calor e sua luz aproximam as pessoas, é o centro da vida. Assim como a sala, tem o significado de "um santuário, no qual se pede a proteção de Deus, celebra-se o seu culto e guardam-se as imagens sagradas" (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1994, p.536).

A panela e a porca de madeira eram guardadas, respectivamente, nesses dois ambientes domésticos - lareira e sala -; portanto, equivalentes.

O vaso com as moedas de ouro (a panela de Euclião) representa "um reservatório de vida (...), o segredo da vida espiritual, o símbolo de uma força secreta". Se o vaso for "aberto em cima, indica uma receptividade às influências celestes" (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1994, p.932).

Por sua vez, a moeda traz uma imagem ambivalente: a de valor e a de alteração da verdade.

A porca, juntamente com o porco, são considerados símbolos universais. Este representa a impureza, a voracidade, as tendências obscuras, enquanto que a porca, divinizada desde os egípcios, simboliza a abundância e o princípio feminino de reprodução, de criação da vida.

Todo o sentido da vida de Euclião e da de Euricão, simbolizado na panela guardada na lareira e na porca de madeira guardada na sala ao pé do santo, foi ameaçado por um acontecimento inesperado: o casamento das filhas. É o início do processo de vivência da perda:

Euricão: Ai minha porquinha adorada! (...) querem levar meu sangue, minha carne meu pão de cada dia, a segurança de minha velhice, a tranquilidade de minhas noites, a depositária de meu amor! (SUASSUNA, 1984, p.33-34)

Diante da ameaça, Euclião esconde seu tesouro no templo da Fidelidade, e Euricão, numa grande cova ("socavão"), no porão de sua casa.

No plano simbólico, o templo e a cova sintetizam o lugar dos segredos, a busca ao desconhecido. Para os romanos, em particular, o templo era de grande importância. Lá, eles veneravam seus deuses, acorriam para pedir graças e proteção, em troca de sacrifícios e oferendas Era, pois, o reflexo do mundo divino e de seus mistérios.

Impulsionados pela ameaça da perda de seus bens, cultivados durante toda a vida, Euclião e Euricão buscam novo esconderijo para seus tesouros. O primeiro esconde-o no bosque de Silvano; o segundo, no cemitério da igreja.

Silvano, para os romanos, era um deus campestre de significação ambígua: protegia a agricultura e presidia às florestas (silva, "floresta") e, ao mesmo tempo, era uma "espécie de bicho-papão" que causava medo às crianças.

Além de simbolizar o inconsciente, a floresta carrega o significado do vínculo que as árvores mantêm entre a terra (raízes) e o céu (copa).

Euricão esconde sua porca no cemitério da igreja, num socavão entre o túmulo de sua mulher e o muro. O socavão evoca o simbolismo da abertura para o desconhecido, no sentido do imanente ao transcendente; o túmulo, associado à morte, é o lugar da metamorfose, do renascimento, ou das trevas; o muro, também de significado ambíguo, simboliza a separação e a defesa.

Podemos sintetizar essa etapa da trajetória dos avarentos como de conflito existencial diante da perda, em direção a uma nova visão de mundo e renovação de valores.

Euclião agradece aos deuses, despede-se alegremente de sua panela e a dá de presente aos noivos.

Euricão, diante da constatação da realidade (seu dinheiro não tinha mais nenhum valor), sente-se traído pela vida. Melancolicamente, reconhece: "Um golpe do acaso abriu meus olhos (...). Que quer dizer isso, Santo Antônio? Será que só você tem a resposta?" (SUASSUNA, 1984, p.82).

Na comparação simbólica das duas comédias, vimos que os elementos representativos da avareza (a panela e a porca) podem ser associados às etapas marcantes da narrativa.

O primeiro momento (a panela e a porca; o Deus Lar e Santo Antônio) podemos caracterizar como o do potencial latente e inerente à natureza humana: o material e o espiritual. O poder de acumulação e a visão desses valores são representados, em Euclião e Euricão, pela avareza.

O segundo momento, podemos caracterizar como o do conflito e do início da transformação desses valores (o templo da Fidelidade e o porão): a busca ao desconhecido, ou seja, um momento de interiorização e reflexão das personagens, sobre os valores até então tidos como sólidos e permanentes.

O terceiro momento, finalmente, seria o da constatação da perda. E, aqui, haveria duas possibilidades de escolha: a da evolução ou a da involução, simbolizada pela ambiguidade do "bosque de Silvano" e a do "cemitério da igreja".

A escolha de Euclião e de Euricão foi a da transformação no sentido evolutivo e de discernimento de que os bens materiais são um meio e não um fim. Diríamos que foi uma escolha do caminho ascendente entre a terra e o céu, entre o transitório e o permanente.

A avareza dos protagonistas nos remete, em contrapartida, a duas outras personagens, também idosas (Megadoro, na Aululária, e Eudoro, em O Santo e a Porca), que não apresentam tal característica, sendo, portanto, opostas a Euclião e Euricão.

Concluindo, lembramos as palavras de Cícero sobre os defeitos comumente atribuídos à velhice. Diz o orador latino que: são defeitos dos costumes, não da velhice. (...) Não compreendo o que a avareza do ancião quer para si mesmo. Há algo de mais absurdo que aumentar as provisões de viagem à medida que menos caminho resta? (CÍCERO, 1980, p.81).

Fonte:
Adaptado de Artigo não assinado encontrado no site Feranet  Disponível em Algo Sobre
Resumo adaptado do Site http://osantoeaporca.vilabol.uol.com.br/