domingo, 22 de setembro de 2024

Daniel Maurício (Poética) 77

 

Gerson César Souza (Trovas em Preto & Branco)


1
A justiça, rica em falhas,
corrompida por esquemas,
enche de glória e medalhas
mãos que merecem algemas!
2
Ator, arisco ao cabresto,
rebelde, se for preciso,
a vida escreve o meu texto
e eu teimo e sempre improviso!
3
Dizem que eu sonho em excesso...
Mas insisto em voos altos!
E as pedras nas quais tropeço
impulsionam novos saltos!!!
4
Espera é aquele momento
em que a saudade dispara
e o relógio fica lento,
fica lento e quase para...
5
Foi com pregos de desgosto
que a saudade, do seu jeito,
pôs retratos do teu rosto
nas paredes do meu peito...
6
Não julgue alguém pela imagem,
pois muitos fazem de tudo
para esconder na “embalagem”
a falta de conteúdo.
7
Nas horas de despedida
sem querer a gente chora
e uma lágrima perdida
quer seguir quem vai embora...
8
Nas mãos de Deus tudo entrego
fazendo um pedido assim:
que estes sonhos que carrego
não morram antes de mim!
9
O perdão, embora escasso,
é a cola mais indicada
para unir cada pedaço
de uma promessa quebrada.
10
Quando a esperança se cansa
o amigo é quem, prontamente,
empresta a sua esperança
para amparar a da gente.
11
Siga os mais velhos e creia
na experiência que eles têm:
quem reflete a luz alheia
ganha luz própria também!
12
Vejo a fé sem fundamento
dos que, olhando o céu em vão,
buscam Deus no firmamento
mas não O enxergam no irmão...

AS TROVAS DE GERSON CÉSAR SOUZA EM PRETO & BRANCO
por José Feldman

As trovas de Gerson César Souza não apenas revelam a complexidade das emoções humanas, mas também se conectam a um rico legado poético, tanto no Brasil quanto no exterior. Essa intertextualidade enriquece a compreensão de suas trovas e destaca a universalidade dos temas abordados.

AS TROVAS UMA A UMA, SUAS TEMÁTICAS E RELAÇÃO COM POEMAS DE UM UNIVERSO DE POETAS

Trova 1. 
Temática: Justiça e Corrupção
A crítica à hipocrisia da justiça expõe a fragilidade das instituições que deveriam proteger a sociedade. Reflete um descontentamento profundo com a impunidade e a moralidade distorcida. Essa busca por justiça ressoa com realidades contemporâneas, onde a corrupção é um tema recorrente.

Bertolt Brecht (embora alemão, sua obra ressoou no Brasil): critica a moralidade da sociedade, similar à crítica da trova à justiça falha.

T.S. Eliot (EUA/Inglaterra): em "A Terra Desolada", a desilusão com a sociedade e suas instituições é um tema central, ecoando a frustração da trova com a justiça.

Pablo Neruda (Chile): "O Canto da Liberdade" também aborda a injustiça, revelando como os poderosos muitas vezes se esquivam das consequências de seus atos.

Trova 2. 
Temática: Autenticidade e Rebeldia
A busca pela autenticidade expressa uma resistência às normas sociais. Gerson enfatiza a importância de viver de maneira verdadeira, mesmo diante de pressões externas. Essa rebeldia é uma afirmação da individualidade e da liberdade pessoal, fundamentais na construção da identidade.

Cecília Meireles: "A Vida é Sonho" explora a ideia de viver a vida de forma autêntica, semelhante à rebeldia e improvisação de Gerson.

Adélia Prado: "Oração de um Amor", fala sobre a sinceridade e a necessidade de ser verdadeiro consigo mesmo.

Walt Whitman (EUA): "Leaves of Grass" celebra a individualidade e a expressão pessoal, ressoando com a teimosia do trovador em seguir seu próprio caminho.

Trova 3. 
Temática: Sonhos e Obstáculos
A perseverança diante das adversidades é central nesta trova. Fala sobre como os desafios moldam nossos sonhos e fortalecem nosso caráter. A ideia de que obstáculos podem ser trampolins para o sucesso reflete uma visão otimista da vida.

Vinicius de Moraes: "Soneto de Separação" fala sobre a superação da dor, espelhando a ideia de que as dificuldades podem impulsionar novos saltos.

Emily Dickinson (EUA): em muitos de seus poemas, a luta entre esperança e desilusão é comum, refletindo a jornada de Gerson.

Langston Hughes (EUA): "I Dream a World" fala sobre a luta por um mundo melhor, onde os obstáculos são parte do caminho para a realização dos sonhos.

Trova 4. 
Temática: Saudade e Tempo
A relação entre saudade e a percepção do tempo revela uma melancolia intrínseca. O trovador captura a essência da nostalgia, mostrando como as memórias podem tanto confortar quanto trazer dor. O tempo, nesse contexto, é um protagonista que transforma a experiência emocional.

Adélia Prado: "Poema à Mãe" fala sobre o tempo e a saudade de maneira íntima, semelhante à reflexão temporal na trova.

Vinicius de Moraes: "Soneto de Separação" expressa a dor da saudade e como ela distorce o tempo.

Marcel Proust (França): "Em Busca do Tempo Perdido" enfatiza a memória e o tempo, capturando a essência da saudade que Souza expressa.

T.S. Eliot (EUA/Inglaterra): novamente, em "A Terra Desolada", aborda a passagem do tempo e a saudade de um passado perdido, criando um sentimento de melancolia.

Trova 5. 
Temática: Memórias e Desgosto
A fixação em memórias dolorosas aborda a luta interna entre o passado e o presente. A trova nos convida a refletir sobre como as lembranças moldam nossas emoções e decisões, enfatizando que o passado pode ser um fardo, mas também uma fonte de aprendizado.

Carlos Drummond de Andrade: "No Meio do Caminho" trata da dor e das marcas que permanecem, refletindo a fixação de Gerson em memórias.

Sylvia Plath (EUA): em seus poemas, a relação com a dor e a memória é central, ecoando a intensidade da saudade do trovador.

Trova 6. 
Temática: Aparências e Conteúdo
A crítica à superficialidade das aparências desafia as convenções sociais. Destaca a importância de olhar além do que se vê, questionando a autenticidade das interações e das relações humanas. Essa reflexão é um convite à profundidade e à sinceridade.

Fernando Pessoa: "O Livro do Desassossego" reflete sobre a dualidade entre aparência e essência, semelhante à crítica contida na trova.

Robert Frost (EUA): "The Road Not Taken" explora a escolha e as aparências enganadoras da vida, ressoando com a mensagem de Gerson.

Trova 7. 
Temática: Despedida e Emoção
A dor da despedida é uma experiência universal que Gerson aborda com sensibilidade, explorando a fragilidade das relações e a inevitabilidade da perda, enfatizando que cada despedida traz consigo um leque de emoções que precisam ser reconhecidas e processadas.

Mário Quintana: "Despedida" fala sobre a tristeza da separação, ecoando a lágrima perdida de Gerson.

Pablo Neruda (Chile): em "Soneto XVII" a intensidade emocional diante da perda é um tema recorrente, refletindo a fragilidade da despedida.

John Keats (Inglaterra): "La Belle Dame sans Merci" retrata a dor da perda e a tristeza que acompanha uma despedida.

Trova 8. 
Temática: Sonhos e Destino
A súplica para que os sonhos não se percam reflete uma esperança profunda. O trovador nos lembra da fragilidade dos sonhos e da importância de lutar por eles, mesmo em face das dificuldades, sugerindo que o destino é algo que podemos moldar com nossas ações.

Manuel Bandeira: "Vou-me embora pra Pasárgada" fala sobre a busca de um lugar ideal, semelhante à esperança de Gerson pelos seus sonhos.

Alphonsus de Guimaraens: "A Fala do Sonho" fala da fragilidade dos sonhos e da necessidade de preservá-los.

Langston Hughes (EUA): "I Dream a World" expressa a esperança e o desejo por um futuro melhor, alinhando-se à súplica na trova.

Trova 9. 
Temática: Perdão e Relações
O perdão como um elemento de reparação destaca a complexidade das relações humanas. Sugere que o ato de perdoar é essencial para a cura e o entendimento mútuo, mostrando que a empatia e a compreensão são fundamentais na construção de vínculos saudáveis.

Guilherme de Almeida: "Perdão" aborda a importância do perdão nas relações humanas.

Khalil Gibran (Líbano): "O Profeta", fala sobre amor e perdão, ressoando com a ideia de Gerson sobre unir promessas quebradas.

Trova 10. 
Temática: Amizade e Esperança
A importância do amigo em momentos difíceis é uma celebração da solidariedade. Enfatiza que a amizade é um pilar de esperança, essencial para enfrentar os desafios da vida. Essa conexão entre indivíduos é vital para a resiliência emocional.

Chico Buarque em suas letras, a amizade é um tema recorrente, refletindo a solidariedade que o trovador valoriza.

Cecília Meireles: "Amizade", destaca a importância da amizade como um pilar de esperança e apoio.

Emily Dickinson (EUA): em seus poemas, frequentemente menciona a solidez da amizade como um alicerce em tempos de tristeza.

William Wordsworth (Inglaterra): "I Wandered Lonely as a Cloud" estabelece que uma conexão com a natureza e os amigos traz esperança, semelhante à troca de esperanças em Gerson.

Trova 11. 
Temática: Sabedoria e Experiência
A valorização da experiência dos mais velhos reflete um respeito pela história e pelas lições aprendidas. A trova sugere que a sabedoria é um legado que deve ser transmitido, enfatizando a importância da escuta e da reflexão sobre nossas vivências.

William Wordsworth (Inglaterra): "The Prelude" valoriza a sabedoria adquirida com a experiência e a reflexão sobre a vida.

Rainer Maria Rilke (Áustria): "Cartas a um Jovem Poeta", fala sobre a empatia e a sabedoria que podemos aprender com os mais velhos.

Trova 12. 
Temática: Fé e Empatia
A crítica à fé que não se traduz em ações concretas destaca a necessidade de ação em prol do próximo, e uma reflexão sobre a autenticidade da nossa fé e a importância de agir com empatia, sugerindo que a verdadeira espiritualidade se manifesta em atitudes.

Hilda Hilst: "A Obscena Senhora D" questiona a espiritualidade e a prática, ecoando a crítica do trovador.

Claudio Manuel da Costa: "Oração a Deus" aborda a relação entre fé e ação, enfatizando a importância da empatia.

Maya Angelou (EUA): "Still I Rise" mostra como a fé e a determinação se manifestam em ações de resistência e solidariedade.

Albert Camus (Argélia/França): no "O Mito de Sísifo" a busca por sentido e a crítica à fé abstrata são temas que estão alinhados com a mensagem de Gerson.

A SAUDADE E O TEMPO NAS TROVAS DE GERSON CÉSAR SOUZA

A saudade, em muitas das trovas de Gerson, é apresentada como um sentimento que está intrinsecamente ligado ao passado. Ela não é apenas uma lembrança nostálgica, mas uma vivência que distorce a percepção do tempo. O presente é muitas vezes ofuscado pela intensidade das memórias, criando um espaço onde o passado se torna mais presente do que o próprio agora.

Ele sugere que as memórias moldam a forma como vivemos o tempo. A saudade pode fazer com que momentos felizes do passado pareçam mais significativos, levando a uma idealização do que foi. Essa reinterpretação pode causar uma dor aguda, pois a comparação entre o que foi e o que é gera um sentimento de perda.

As trovas também abordam a saudade em relação aos ciclos da vida. À medida que as pessoas passam por diferentes fases, a saudade se torna uma constante. Eventos como despedidas e mudanças de vida intensificam esse sentimento, evidenciando como o tempo traz transformações que podem ser tanto dolorosas quanto enriquecedoras.

A melancolia é um tema forte na relação entre saudade e tempo. A saudade muitas vezes carrega um tom de tristeza, uma consciência da transitoriedade da vida. O tempo, ao avançar, leva consigo momentos que não podem ser recuperados, e isso gera um lamento por aquilo que já se foi.

A saudade também desempenha um papel na formação da identidade. As experiências passadas moldam quem somos, e a saudade é um lembrete constante de nossas vivências. O poeta sugere que, ao refletir sobre o tempo e a saudade, somos convidados a entender nossa trajetória e reconhecer como ela influencia nosso presente.

A relação entre saudade e tempo na obra de Gerson César Souza provoca uma reflexão profunda sobre como vivemos nossas experiências e como elas nos afetam emocionalmente. A saudade, ao se entrelaçar com o tempo, transforma-se em um elemento central na busca por significado e compreensão da própria existência.

CONCLUSÃO

As trovas de Gerson César Souza oferecem um rico panorama das emoções humanas, abordando temas universais como justiça, saudade, autenticidade, perdão e amizade. Cada uma dessas temáticas não apenas ressoa com a experiência individual, mas também estabelece diálogos profundos com a obra de poetas brasileiros e estrangeiros, ampliando a compreensão da condição humana.

A crítica à corrupção e à hipocrisia da justiça, por exemplo, reflete a insatisfação contemporânea com instituições falhas, um sentimento que ecoa nas obras de poetas como Bertolt Brecht e Pablo Neruda. Este contexto social é crucial, pois revela a necessidade de uma literatura engajada que questione e desafie as estruturas de poder, algo que continua a ser relevante em um mundo marcado por desigualdades.

A busca pela autenticidade e a resistência às normas sociais, presente nas trovas, dialoga com a obra de poetas como Walt Whitman e Cecília Meireles. Essa luta pela individualidade é vital em uma época em que as pressões sociais e culturais muitas vezes levam à conformidade. Essa busca por identidade e expressão pessoal se torna ainda mais importante para as futuras gerações, que habitam um mundo digital em constante transformação.

A relação entre saudade e tempo, um tema central nas trovas de Gerson, revela a complexidade das emoções humanas frente à transitoriedade da vida. Poetas como Vinicius de Moraes e T.S. Eliot também exploram essa melancolia, demonstrando que a reflexão sobre o passado é fundamental para a construção da identidade no presente. Compreender essa relação é essencial para lidar com as perdas e a nostalgia que permeiam a experiência humana.

Além disso, a ênfase no perdão e na amizade ressalta a importância das relações interpessoais, fundamentais para a saúde emocional e a construção de comunidades solidárias. A ideia de que o perdão é uma forma de reparação é um ensinamento crucial, especialmente em tempos de polarização e conflito. Em um mundo onde as divisões são cada vez mais evidentes, essa mensagem ressoa fortemente.

Por fim, a valorização da sabedoria e da experiência dos mais velhos, presente nas trovas, sugere uma continuidade entre gerações que é vital para a construção de sociedades mais justas e empáticas. A capacidade de aprender com o passado e respeitar aqueles que vieram antes de nós é um legado que deve ser cuidadosamente preservado e transmitido.

Em suma, as trovas de Gerson César Souza não apenas capturam a essência da experiência humana, mas também servem como um convite à reflexão crítica sobre a sociedade contemporânea e as relações que a definem. Ao dialogar com grandes poetas do passado e do presente, ele reafirma a relevância da poesia como um meio de explorar, entender e transformar a realidade. Para as futuras gerações, suas palavras oferecem um caminho de introspecção e esperança, ressaltando a importância de sonhar, amar e lutar por um mundo mais justo e verdadeiro.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. IA Open. vol.1. Maringá/PR: Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Arthur Thomaz (O Pó de Pirlimpimpim)

A malvada bruxa que roubou o pó e tentou voar, fracassou porque para isso é necessário ter pensamentos alegres. A fada Sininho, um dia cansada de ser artista secundária na história de Peter Pan, resolveu arriscar voo até uma cidade que ouviu ser chamada de maravilhosa.

Veio ao Rio de Janeiro. Sobrevoou a metrópole, cumprimentou o Cristo, lambeu o Pão de Açúcar (não achou nada doce), teve que tampar seu narizinho ao passar pela Lagoa Rodrigo de Freitas e pela Baía de Guanabara, pegou carona no bondinho, onde ficou parada no alto por falta de energia elétrica, e foi conhecer algumas praias famosas, nas quais não pôde descer por excesso de lixo e de fezes de animais que os donos insistem em levar para passear.

Escapou de vários tiros ao sobrevoar os morros, desferidos por traficantes que a confundiram com helicóptero da PM. Em São Conrado, misturou-se às dezenas de coloridas asas-deltas que flanavam pelo ar.

Pegou um táxi e veio até Ipanema, onde ficou em um lindo hotel com vista para o mar. Na manhã seguinte, após descansar da extenuante viagem, comprou um sumário biquíni na loja do hotel e foi até a praia. Observou maravilhada a imensa diversidade da fauna que se reunia em diferentes postos da orla.

Em uma delas, notou que após fumar uma estranha erva, o grupo parecia voar como se tivesse borrifado seu pó de pirlimpimpim. Curiosa, resolveu experimentar esse cigarrinho artesanal. Notou que apesar de ficar muito leve, não conseguia alçar voo, tossiu bastante e continuou pela areia. 

Encontrou uma tribo de alegres rapazes e moças que se beijavam sofregamente, independentemente de qualquer distinção sexual, e que pareciam levitar de tanta frescura. Beijou muitas e muitos dessa tribo, mas novamente não conseguiu voar.

No Arpoador, deparou-se com saudáveis corpos bronzeados que a convidaram para surfar em magníficas ondas, mas que também não a fizeram alçar voo.

Em outra região, encontrou um grupo que se dedicava inteiramente à cultura, lendo e declamando poemas maravilhosos, mas que também não a fizeram decolar.

Já quase desesperançada, ouviu de alguém que haveria uma roda de samba em um local na Lapa. Meio sem saber o que era samba, muito menos roda e Lapa, pediu a um taxista que a levasse até lá. Ao entrar no local indicado, deparou-se com pessoas requebrando os quadris em um ritmo frenético. 

Conheceu um rapaz magro e de cor morena, que imediatamente a convidou para dançar algo que ele chamou de Samba de Gafieira. Sininho foi às nuvens nos braços daquele homem. Mal sentia seus pés no chão, e após dançar três canções, percebeu que nem precisava mais do seu pozinho para levitar.

Hoje, Sininho é proprietária de uma casa de show na Lapa, com o sugestivo nome ”Dançando nas Alturas”, cujo barman é Peter Pan, especializado em drinques verdes, com uma pitadinha de certo pó, e que seu efeito principal é levar os dançarinos às nuvens.

Em frente a essa maravilhosa casa noturna está escrito em letras garrafais: “entre sempre aqui com pensamentos alegres”.

Felizes, jamais voltaram à Terra do Nunca.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu. Santos/SP: Bueno Editora, 2021. 
Enviado pelo autor 

Vereda da Poesia = 116 =


Trova de
CAMPOS SALES
Lucélia/SP, 1940 – 2017, São Paulo/SP

Nos telhados da cidade
a garoa não cai mais
somente a minha saudade
ainda escorre nos beirais!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Remédio ideal

Cada vazio
Existente
em minha alma
Cabe uma partícula
Que completa
Você
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

A sorte, esquiva e malvada,
não dá “chance”, só trabalho...
Eu a sigo pela estrada,
e ela foge pelo atalho!...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de
DOROTHY JANSSON MORETTI
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Dia Brusco

Plena manhã é um triste lusco-fusco
como se a tarde já tivesse entrado.
Que depressão me traz o dia brusco,
tudo cinza, sombrio, meio enlutado!

As casas vestem-se de um tom pardusco,
tudo parece velho e desbotado…
Inutilmente, em cada canto eu busco
o brilho e a cor de um dia ensolarado.

Adoro o sol. Adoro a chuva mansa
que alegre cantarola na enxurrada
e me recorda os tempos de criança.

Mas dia brusco, seco e carrancudo,
tange meus nervos e eu, mal-humorada,
só vejo sombras de velhice em tudo!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de
DÁGUIMA VERÔNICA DE OLIVEIRA
Santa Juliana/MG

Não se compra, tendo em vista
que não se vende alegria;
felicidade é conquista
que se faz no dia a dia.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
ANTONIO JURACI SIQUEIRA
Belém/PA

Que Pena...

Já não falo de mim. Não vale a pena
pois a pena que eu sentir do meu penar
é tão vã quanto as penas ressequidas
de um pássaro empalhado e tão inútil
quanto a pena da caneta que secou.

Apenas te direi que sinto pena
das penas que perdi durante o voo
no céu da solidão cumprindo a pena
imposta pela pena algoz do teu amor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Popular

Muito vence quem se vence
e muito diz quem diz tudo, 
porque ao discreto pertence
a tempo fazer-se mudo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Dobradinha poética (trova e soneto) de
LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DECARLI
Bandeirantes/PR

Doce Olhar

Teu olhar, pura magia,
transmite doçura tanta,
que em mim tira a nostalgia
e qualquer medo suplanta!

Transmite o teu olhar real doçura…
Pergunto-me se existem tais momentos
em que este olhar, despido de candura,
reflete o fel de alguns maus pensamentos.

Aqueles pensamentos de amargura,
que em todos nós evocam sofrimentos,
pois não existe, creio, uma criatura
livre no mundo, sem quaisquer tormentos…

Mas este olhar, que inspira em mim confiança,
fala de amor, de paz e de esperança,
logo afugenta o meu triste pensar.

Volto a te olhar, atenta e embevecida…
Se em tuas mãos coloco a minha vida,
no teu olhar eu quero mergulhar!…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de
MARA MELINNI
Caicó/RN

Seca: quanta desventura
enche a terra de tristeza!
O homem sofre, mas a cura
vem da própria natureza.
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Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal


Na árvore sagrada
mágica mística
berço da Criação
lugar singular
o combatente abrigou a sua fé

Ali, em partidas e chegadas
milhares depositaram as suas preces
invocando o seu deus
orando pelos seus
e pelos irmãos da guerra
que regaram de sangue a vermelha terra

Quão grande 
pode ser a fé do Homem.
Crê-se que a árvore
é uma ponte para o céu.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

É mãe de um casal!... e é duro
olhar a cena espantosa:
a filha em pijama escuro!
- O filho... em baby-doll rosa!
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Soneto de 
ANTÔNIO OLIVEIRA PENA
Volta Redonda/RJ

Soneto de aproximação

A vida, ao teu redor, vê com alegria;
nos jardins, conta as flores que se abriram;
esquece as murchas, já sem poesia,
e aquelas cujas pétalas caíram.

Retém, do lábio teu, tudo o que é bom,
e as linhas do sorriso do teu rosto;
não te deixes levar pelo desgosto,
nem digas nada em pesaroso tom.

Que saibas rir, malgrado o sofrimento;
não te incomode nunca a noite escura,
tampouco, por teu corpo, as cicatrizes...

Guarda que as nuvens as dissipa o vento,
e que a árvore que mais alcança altura
tem mais fundas, no chão, suas raízes.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de
ELMO GOMES 
Rio de Janeiro/RJ (1929 – 2006)

Surda e muda a criatura,
brincando com seus irmãos, 
tece frases de ternura
que ela diz na voz das mãos.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
VANDA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR

Menino da feira

Menino da feira,
esperto e magrinho,
tão cedo na vida
perdeu seu lazer.

Carreto, moça?
Baratinho, dona!
Posso cuidar do carro, tia?

Menino insistente
pedindo com os olhos
que guardam no fundo
segredos do lar…
(Talvez o pai fugiu…
A mãe leva para fora…
Oito irmãozinhos com fome...)

Menino
sem direitos…
só deveres.
Seus pais, onde estarão?
Talvez você seja filho…
da minha própria omissão.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Funerária Cigana

A minha alma não morreu,
desfaleceu no transporte,
na ocasião do gemido
que meu irmão deu na morte.
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Soneto de 
GIOCONDA LABECCA
(Campanha/MG, 1931 – 2020, São Paulo/SP)

Aspiração

Se eu pudesse, morrer, morrer olhando,
daqui desta janela bem defronte,
o Céu, a Vargem, a Campina e o Monte,
e junto a mim a minha Mãe orando...

E a natureza toda me embalando
ao som de salmos, murmurando a fonte,
e o sol tépido e morno no horizonte
e sorrateiramente se escambando...

Ver meus irmãos em orações funéreas,
mandando aos Céus em espirais etéreas
a fumaça do incenso, espesso véu...

E eu, vendo a vida plena de esplendores,
dizer, sorrindo nos meus estertores:
— Que tarde azul para subir ao Céu!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Humorística de
JOAQUIM CARLOS 
Nova Friburgo/RJ

Safado como ninguém,
o guri reage assim:
quando o padre diz “Amém...”
ele completa: “doim!”
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Poema de 
RITA MARCIANO MOURÃO
Ribeirão Preto/SP

A poesia pede silêncio

Poetar é meu jeito de estar sozinha,
esquecer o mundo e suas ameaças.
A poesia pede silêncio, recolhimento.
O silêncio me leva a exorcizar os demônios
que insistem em amordaçar a minha liberdade
de ser e de amar.
A poesia me aproxima de Deus!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Ah, belos tempos dourados, 
que os sonhos não trazem mais... 
Bailavam, corpos colados, 
olho no olho, os casais! 
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de 
JOÃO RANGEL COELHO
Juiz de Fora/MG, 1897 – 1975, Rio de Janeiro/RJ

Mãos

As tuas longas mãos alvinitentes,
despetalando rosas ao luar,
são brancas, "como dois lírios doentes"
no lago emocional do meu olhar.

Meu triste amor!... Nas horas mais pungentes
da minha vida boêmia e singular,
as tuas mãos de seda, transparentes,
teceram meu destino, a acarinhar.

Quando partiste, as tuas mãos esguias,
num derradeiro gesto de agonias,
tremularam de manso aos olhos meus

e, com saudade imensa e dolorida,
deixaram para sempre a minha vida
na balada tristíssima do adeus.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de
LISETE JOHNSON
Butiá/RS, 1950 – 2020, Porto Alegre/RS

Quando criança, eu ficava
olhando o céu, a cismar:
- quem, tão alto, a luz ligava
para acender o luar!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Hino da 
LAPA / PR

I
Junto a Dulcídio e Carneiro
No cerco da Lapa, um dia,
Mostramos ao mundo inteiro
Que a nossa gente sabia,

Pela justiça e o direito
Lá nos campos de batalha
Pelejar peito a peito
Ao rouco som da metralha

Estribilho:
Que campos verdes, que alegre terra,
Terra mais bela que esta não há:
Quantas riquezas no seio encerra
A linda terra do Paraná!

II
Como é feliz quem caminha,
Assim denodadamente,
Pronto, sempre, em linha,
Gesto firme, olhar em frente.

Bendita seja esta imagem
Da Pátria sonora e bela...
Que orgulho de ter coragem
Para poder defendê-la

Estribilho:
Que campos verdes, que alegre terra,
Terra mais bela que esta não há:
Quantas riquezas no seio encerra
A linda terra do Paraná!

III
Cair no combate e sangue
Dar pela Pátria querida,
Em ondas, o nosso sangue,
Em ondas, a nossa vida,

É uma esplêndida vitória
Que arrebata e que consola:
Dai-nos senhor, essa glória
Dai-nos senhor, essa esmola!

Estribilho:
Que campos verdes, que alegre terra,
Terra mais bela que esta não há:
Quantas riquezas no seio encerra
A linda terra do Paraná!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Humorística de 
SELMA PATTI SPINELLI
São Paulo/SP

Que me perdoa, se eu peco,
pois sou um homem de fé:
Mas já vi padre em boteco
rezando pra "Santo mé"!!!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de 
LILINHA FERNANDES
Rio de Janeiro/RJ, 1891 – 1981

A casa onde nasci

Era minha esta casa. Eu a conheço...
Janelas amplas... larga porta... a escada
por onde agora em pensamento desço
para ver como nasce uma alvorada.

O laranjal cheiroso, o mato espesso...
O poço onde era a roupa bem lavada.
No pátio, bem no centro, eu não me esqueço,
a amendoeira por meu pai plantada.

Dava guarda ao portão um jasmineiro
que de flor se vestia o ano inteiro
e hoje está triste e velho como eu.

Casa velha! deixaste de ser minha...
Assim, tudo que amei, tudo que eu tinha,
deixou, há muito tempo, de ser meu!
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Trova de 
ARLINDO TADEU HAGEN
Juiz de Fora/MG

Eu te imploro, por favor
não insistas nesse adeus,
se não for por meu amor,
fica pelo amor de Deus!
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Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O leão e o rato

Saiu da toca aturdido
Daninho pequeno rato,
E foi cair insensato
Entre as garras dum leão.
Eis o monarca das feras
Lhe concedeu liberdade,
Ou por ter dele piedade,
Ou por não ter fome então.

Mas essa beneficência
Foi bem paga, e quem diria
Que o rei das feras teria
Dum vil rato precisão!
Pois que uma vez indo entrando
Por uma selva frondosa,
Caiu em rede enganosa
Sem conhecer a traição.

Rugidos, esforços, tudo
Balda sem poder fugir-lhe;
Mas vem o rato acudir-lhe
E entra a roer-lhe a prisão.
Rompe com seus finos dentes
Primeira e segunda malha;
E tanto depois trabalha,
Que as mais também rotas são.

O seu benfeitor liberta,
Uma dívida pagando,
E assim à gente ensinando
De ser grato a obrigação.
Também mostra aos insofridos
Que o trabalho com paciência
Faz mais que a força, a imprudência
Dos que em fúria sempre estão.