sábado, 5 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 369

 


Francisca Júlia (Isabel)


Isabel era uma menina de dez anos mais ou menos.

Desde a mais tenra a infância já mostrava o seu caráter vaidoso, um desejo de aparecer, de realçar, sobressair entre as demais.

Nessa idade tinham-se aguçado tanto as suas más qualidades e se acentuado a sua tendência para o aparato, que toda a vez que lhe faltava um enfeite ao seu vestido ou uma fita ao seu chapéu, revoltava-se, batia o pé, e, apesar de bonita, graciosa mesmo, e de um aspecto agradável, nesses momentos de cólera parecia feia e só inspirava repulsão e antipatia.

Sua mãe, mulher de costumes simples e de boa alma, educada na escola do carinho e da religião, tinha um grande desgosto com isso, e muitas vezes surpreendiam-na com o rosto entre os joelhos, chorando, afogada em soluços.

Chamava a filha para junto de si, sentava-a no colo, anediava-lhe os cabelos, num gesto bom de maternal ternura; dava-lhe bons exemplos, ensinava-lhe o caminho do bem, com uma paciência e resignação x de que só são capazes as mães extremosas.

Certo dia, Isabel aproximou-se de sua mãe e disse-lhe:

— Mamãe, há já alguns dias que resolvi abandonar todas as minhas amigas atuais, porque elas me parecem tão insignificantes!

— Fazes mal, minha filha, falou a mãe com tristeza. Entre as tuas amigas e companheiras há algumas de bons costumes e dignas da tua amizade. Não as abandones.

— Vou deixá-las, sim. Conheço uma menina que é melhor que todas elas. Chama-se Marieta. É elegante como nenhuma, graciosa, espirituosa, veste-se à última moda, e é o alvo da inveja no círculo das minhas colegas. Quero andar em companhia dela, para que todo o seu encanto reflita sobre mim e eu seja invejada também.

À mãe umedeceram-se-lhe os olhos de lágrimas. Envolveu a filha com um olhar de censura e, antes que uma repreensão violenta lhe saísse da boca, chamou a menina para junto de si e falou-lhe com brandura:

— “Certa vez uma semente de arbusto, na aproximação da primavera, ainda estava solta sobre a terra, sem coragem de aí deitar suas raízes, receando crescer ao relento ou sob os ardores do sol. Então deixou-se rolar ao vento, e foi indo, foi indo, até chegar-se ao pé de uma pequena árvore, que ostentava sua galharia verde e exuberante à margem de uma cisterna. Debaixo de sua folhagem havia uma sombra fresca onde crescia um viçoso musgo que se espalhava em feitio de veludoso e macio tapete.

“Foi aí o lugar em que a semente resolveu plantar-se.

“Plantou-se, criou raízes e cresceu.

“Foi crescendo pouco a pouco. Dia a dia iam-lhe surgindo novas folhas, novos brotos, novos galhos, até que, quando a primavera veio, e invadiu a campina inteira, encontrou o arbusto numa florescência bonita, sorrindo numa radiação de mocidade.

“O arbusto, como era muito débil e não tinha forças para lutar contra a violência da ventania, foi estendendo os braços e agarrou-se ao tronco da arvorezinha, que lhe servia de arrimo.

“Aconteceu, porém, que numa noite de tempestade e de trovões, um raio maligno caiu com grande estrondo e cortou a árvore. O arbusto encolheu-se de medo, mas salvou-se.

“No outro dia rompeu o sol, e o seu calor era tão intenso que crestou as folhinhas da pobre planta, lhe queimou o tronco, lhe secou a seiva e a matou.”

— Aí está a minha história, minha filhinha; ela servirá de exemplo para te corrigires. Nunca procures ter o valor que te emprestam os grandes, porque se eles morrem ou decaem do poder e da grandeza, tu cairás também como o pequeno arbusto, humilhada pelo desprezo de todos. Será melhor, pois, que tenhas o valor que te dão as tuas próprias qualidades, tuas próprias virtudes, e faças por sobressair por teu próprio esforço.

Daí em diante Isabel corrigiu-se e hoje é uma excelente menina, querida e simpatizada por todos.

Fonte:
Francisca Júlia. Livro da Infância. Publicado em 1899.

Júlia da Costa (Poemas Escolhidos) II

 

ILUSÕES

Em vão te chamo nos murmúrios vagos
Da doce brisa que fugindo vai;
A voz se perde na procela horrível
Que sobre os mares à noitinha cai.

Em vão te chamo! só responde o eco...
Em vão almejo contemplar a ti;
Medonha nuvem de mistérios cheia
Te induz, ai! Sempre a te ausentar de mi’!

Aéreo sonho, mentirosa sombra
D’um sol no ocaso que a gemer tombou,
Em vão te busco nas mescladas nuvens
D’um céu querido que o luar banhou!

Nos rudes tempos d’ um passado estranho
À luz d’ um círio pela dor erguido,
Lampejam inda as ilusões ditosas
D’ um tempo estranho que lá vai sumido!

Assim, ó sombra, na minh’alma vives
Sem cor, nem luz, a divagar perdida...
Em vão te chamo! minha voz se perde
Por este espaço que chamamos vida!

Em vão te chamo! já me falta o alento!
Em vão procuro assemelhar teu canto!
És como a ave que a trinar na rama
Fugindo inspira ressentido pranto.

– És como a ave que na sombra solta
Os seus prelúdios de saudade infinda,
E que fugindo quando a luz se mostra
Os seus cantares sonorosos finda.
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MELANCOLIA

I

Nunca ouviste, alta noite, um som dorido
Como um eco infiel de teu pensar,
Ir saudoso chorar sobre teu seio,
E murmurar-te cantos de pesar?

Nunca ouviste, no albor, o doce arrulho
Da rolinha que chora amargurada,
Qual lira dedilhada
Em florido sertão? Ou harpa eólia
Pelo tufão tocada?

Nos arroubos celestes de tu’alma
Nunca ouviste um acorde esvaecido,
Pelas verdes palmeiras ciciando
Perpassar merencório entristecido?

Pois como o som dorido, e o vago arrulho
Da pombinha que chora o seu destino,
Desvairada, sem tino; –
É meu triste pensar sonhando o berço
Em que dormiu menino!

II

E o céu lindo! e a primavera vejo
Sorrir-me tão viçosa e amenizada!
Qual nuvem qu’é levada
No arrebol da manhã fulgente e belo,
De risos enfeitada!

E a natura trajando as brancas vestes
Do modesto noivado; – em mês d’ abril
Como a flor o sorrir-se entre perfumes: –
Os seus braços me estende, tão gentil!

E o mundo remanseia brandamente,
Qual ondinha ligeira vaporosa
Em seu berço de rosa!
Áureo, belo, gentil! seduz, fascina!
Imagem caprichosa!

Mas eu tristonha sou, bem como a estrela
Que sozinha cintila n’alvorada!
A saudade tornou minh’alma um lírio
Que descora de dor na madrugada!
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UMA FOLHA AO VENTO

A noite é negra – o areal é triste,
A praia imensa, taciturna e só!
Eu vou descalça caminhando à toa,
Me cega o vento, me sufoca o pó!

Queres seguir-me, caminheiro errante?
Eu vou em busca do meu pátrio lar!
Mas tenho medo deste mar de gelo,
Da voz do vento que me faz chorar.

Deixei meu ninho sobre a fralda escura
De uma montanha que se ergue ao sul!
E vou p’ra o norte procurar meu berço,
Ver as estrelas do meu céu azul.

Queres seguir-me? luminosa aurora
Talvez ressurja nesta noite densa!
Talvez perpassem repentinas auras
Pelas areias desta praia imensa.

Talvez à sombra do arvoredo amigo
Por entre redes de cheiroso orvalho,
Possa minh’alma descansar na pátria
Como a avezinha em florido galho.

Deixei meu ninho sobre a fralda escura
De uma montanha que se ergue ao sul!
E vou p’ra o norte procurar meu berço,
Ver as estrelas do meu céu azul.

Avante! as águas remanseiam tristes,
Aragem mansa me bafeja a fronte...
Alva igrejinha entrevejo ao longe
Por entre flores de encantado monte!

E a brisa geme, – dizendo,
E os sonhos tristes remurmuram lá!
Nota dorida de uma lira amiga
A meus ouvidos silencia já!

A pátria! a pátria! Sonhadora errante
Já vejo luzes no horizonte azul!
Já na minh’ alma desabrocham flores...
Adeus meu ninho... virações do sul!

Foi tudo sonho! A chorar acordo,
Olho e só vejo pelo céu a lua!
Nem as praias brancas, nem aragens meigas,
Só triste a brisa pelo mar flutua!

Fonte:
Júlia Maria da Costa. Flores Dispersas. Santa Catarina, 1867, in Júlia da Costa. Poesia. (org. Zahide Lupinacci Muzart). Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2001.

Monteiro Lobato (Café! Café!)


E o velho major recaiu em cisma profunda. A colheita não prometia pouco: florada magnífica, tempo ajuizado, sem ventanias nem geadas. Mas os preços, os preços! Uma infâmia! Café a seis mil-réis, onde se viu isso? E ele que anos atrás vendera-o a trinta! E este Governo, santo Deus, que não protege a lavoura, que não cria bancos regionais, que não obriga o estrangeiro a pagar o precioso grão a peso de ouro!

E depois não queriam que ele fosse monarquista... Havia de ser, havia de detestar a República porque era ela a causa de tamanha calamidade, ela com seus Campos Sales de bobagem.

Que tempos! Pois até o Chiquinho Alves, um menino que ele vira em fraldas de camisa brincando na rua, não estava agora na chapa oficial para deputado? Que tempos!

E com as magras mãos de velho engorovinhado o major torcia com frenesi os bigodes amarelos de sarro. Todo ele recendia a passado e rotina. Na cabeça já branca habitavam ideias de pedra. Como essas famílias de caboclos que vegetam ao pé dos morros numa choça de palha, cercada de taquara, com um terreirinho, moenda e o chiqueiro e toda a imensidade azul e verde das serras e dos céus a insulá-las da civilização, assim a cabeça do major. As primeiras ideias que ali abicaram, e isso já de sessenta anos, nas remotas eras do bê-á-bá na escola do Ganimedes, meteram a foice na capoeira, fincaram os paus da cerca, aprumaram os esteios da morada, cobriram-na de sapé; e lentamente, à medida que vinham entrando, compelidas pela vara de marmelo e a rija palmatória do feroz pedagogo, foram erigindo a casa mental do nosso herói.

Depois, no começo da vida prática, como administrador da fazenda paterna, novas ideias e novos conhecimentos, filhos da experiência, tiveram guarida na choça daquele cérebro, acrescendo-o de mais uns puxados ou telheirinhos. Juízos sobre o Governo, apreciações sobre Suas Majestades, conceitos transmitidos por pais de família e coronéis da Guarda Nacional, ideias religiosas embutidas pelo roliço padre Pimenta, oráculo da família, receitas para quebrantos, a trenzama toda moral e intelectual da sua psíquica de matuto ricaço, por lá se arrumou com o tempo, apesar do acanhamento da choça e das dependências. Para o chiqueirinho foram as anedotas frescas e as chalaças pesadas aprendidas na botica do Zeca Pirula. E ficou nisso o meu major; se uma ideiazita nova voava para ele, batia de peito em seus ouvidos moucos, como rolinhas em paredes caiadas, caindo morta no chão; ou como borboleta em casa aberta, entrava por uma orelha e saía por outra.

Ficou naquilo o major Mimbuia, uma pedra, um verdadeiro monólito que só cuidava de colher café, de secar café, de beber café, de adorar o café. Se algum atrevido ousava insinuar-lhe a necessidadezinha de plantar outras coisinhas, um mantimentozinho humilde que fosse, Mimbuia fulminava-o com apóstrofes.

— O café dá para tudo. Isso de plantar mantimento é estupidez. Café. Só café.

— Mas, com seu perdão, major, se algum dia, que Deus nos livre, o café baixar e...

— O café não baixa e se baixar sobe de novo. Vocês não entendem dessa história — e depois, olhe, eu não admito ideias revolucionárias em minha casa, já ouviu?

E estava acabado, o pedreiro-livre murchava as orelhas e abalava de rabo encolhido.

Veio, porém, a baixa; as excessivas colheitas foram abarrotando os mercados, dia a dia os estoques do Havre e de Nova York aumentavam. Os preços baixavam sempre, cada vez mais; chegaram a dez mil-réis, a nove, a oito, a seis. O major ria-se e limpando as unhas profetizava:

— Em janeiro o café está a trinta e cinco mil-réis.

Chegou janeiro; o café desceu a cinco mil e quinhentos. “Em fevereiro eu aposto que vai a quarenta!” Foi a cinco.

O major emagrecia. “Em março eu juro pela alma de meu pai, que Deus haja, como o café há de subir a quarenta e cinco mil-réis!” O café em março desceu a quatro.

O major enlouquecia. Estava à míngua de recursos, endividado, a fazenda penhorada, os camaradas desandando, os credores batendo à porta. Já ia para três anos que o produto das safras não bastava para cobrir o custeio. Três déficits sucessivos devoraram-lhe as economias e estancaram as fontes. Mas o velho não desanimava. O cafezal estava um brinco, sem um pezinho de capim. As casas desmoronavam, o mato viçava nos terreiros, invadindo as tulhas, inundando tudo de clara verdura vitoriosa, o caruru já estava cansado de nascer nos lugares proibidos onde outrora, nem bem repontava medroso, já vinha um negro cambaio a arrancá-lo sem dó. O major passava a mandioca assada e canjica: nem pitava mais daqueles longos cigarros de palha, por economia. Todo dinheirinho que entrava das vendas do gado, de pedaços de terra, de empréstimos, de velhas dívidas pagas, tudo ia para o Moloch insaciável do cafezal.

Chegado o tempo da colheita, colhia muito, as safras eram ótimas, porém o produto das vendas nenhum alívio trazia à situação, antes agravava-a com um novo déficit. E como não, se o café estava beirando os três mil a arroba e lhe saía a seis a produção de cada uma?

Aconselharam-lhe o plantio de cereais; o feijão andava caro, o milho dava bom lucro. Nada! O homem encolerizava-se e rugia:

— Não! Só café! Só café! Há de subir, há de subir muito. Sempre foi assim. Só café. Só café!

E ninguém o tirava dali. A fazenda era uma desolação; a penúria, extrema; os agregados andavam esfomeados, as roupas em trapo, imundos, mas a trabalhar ainda, a limpar café, a colher café, a socar café. Os salários, caídos no mínimo, uma ninharia, o quanto bastasse para matar a fome. O velho roía as unhas rancorosamente, vomitando injúrias contra os tempos modernos, contra a estrangeirada, o Governo, os comissários, numa cólera perene, e trabalhava no eito com os camaradas a limpar café, a colher café.

— Sobe, há de subir, há de chegar a trinta mil-réis.

Para sustentar a luta vendeu uma nesga da fazenda — um pedaço da sua própria carne.

Depois vendeu outra, mais outra e outra. O Moloch insaciável, porém, engoliu tudo e pediu mais. Ele vendeu mais: vendeu os pastos, vendeu por fim a casa de morada com todas as benfeitorias e foi residir num ranchinho no cafezal.

A situação piorava, os preços continuavam a cair, o velho já estava sem unhas para roer e sem mandioca para se alimentar. Só possuía o cafezal, sempre limpo, sempre sem um matinho. Um dia desertou uma leva de camaradas: outros seguiram aqueles e em breve Mimbuia viu-se completamente só no seu ranchinho do cafezal. Levantava-se antes de clarear o dia e saía de enxada em punho, numa raiva surda, a capinar, a capinar o dia inteiro como um possesso.

Depois, como o cafezal fosse grande e ele um só, o mato brotou luxuriante, numa alegria verde-clara de vitória. O velho, possesso, dentes cerrados, surdo ao sol e à chuva, seminu, esfarrapado e macilento, baba a escorrer dos cantos da boca, torrado pela soalheira, sujo de terra, já não podendo vencer o mato exuberante, andava a arrancar as ervas mais atrevidas ou graúdas, catando uma aqui, outra ali.

A luta era gigantesca, de vida ou de morte. Pelo cafezal todo as ruas outrora vermelhas e varridas eram extensas faixas do verde vitorioso. A beldroega (1) alastrava-se, o caruru já florescia, o picão derrubava as sementes novas para nova seara mais farta e pujante. Pintassilgos inúmeros trilavam pelo chão banqueteando-se à farta nas sementes dos capins. As rolinhas rebolavam, arrulhando, roliças, de papinho duro. Os tico-ticos, como legiões de bárbaros, tagarelavam fabricando ninhos, pondo ovos, chocando-os, tirando ninhadas famintas. O sol rompia todas as madrugadas, fecundo, forte, vencedor, criando seiva intensa, acariciando as ervas transbordantes. Chuvas contínuas davam à terra magnífica um fofo de alfobre (2).

O velho Mimbuia estava um espectro, já nu de todo, os olhos esbugalhados a se revirarem nas órbitas com desvario. Um espectro sem carnes, só pele calcinada e ossos pontiagudos. Mas quando a boca se abria naquela barba hirsuta, o que vinha era uma coisa só:

— Há de subir, há de subir, há de chegar a sessenta mil-réis em julho. Café, café, só café!…
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Vocabulário:
(1) Beldroega – é um arbusto de folhas suculentas e flores coloridas. Na Índia é silvestre, e consumida há milhares de anos. É cultivada no Oriente Médio e em parte da França. Foi popular na Inglaterra na época de Elisabeth I. Tornou-se daninha em parte da América do Sul e do Norte. Desde a antiguidade tem sido usada na alimentação humana em saladas ou cozida. Toda a planta é comestível. No Egito e Sudão é cultivada comercialmente para o consumo. (wikipedia)

(2) Alfobre – Viveiro, normalmente de plantas. Era utilizado, e ainda é como local onde se colocam as sementes dos produtos que se pretendem cultivar, para, assim que ganham resistência, serem transplantados para um local definitivo de cultivo, de forma a se poder escolher a disposição na terra dos mesmos.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas. Publicado em 1919.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 368

 


Cláudio de Cápua (Quadrinhos) 3



quadrinho em "O Indianópolis"

Texto: Cláudio de Cápua
Desenho: Luis Antonio Adensohn

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

Fernando Sabino (Fumar sem ser Fumante)


O MÉDICO proibiu Mário de Andrade de fumar:

— Se você largar o cigarro, ainda poderá ter uns vinte anos de vida.

E Mário, desencantado:

— De que me adianta viver mais vinte anos sem fumar?

A partir de então, trancava-se no banheiro para acender um cigarrinho, escondendo-se de si mesmo.

E o conhecido médico que um dia fez a solene promessa ao filho:

— Meu filho: dou-lhe a minha palavra de honra que você nunca mais me verá com um cigarro na boca.

Homem de palavra: o filho nunca mais o viu fumando. Tempos depois, ao entrar no escritório do pai, dá com uma fumacinha no ar, e eis o velho atirando rápido alguma coisa pela janela, depois se voltando com ar sonso:

— Que foi, meu filho? Por que está me olhando?

O rapaz se pôs a rir:

— Mas que flagra, hein? Você não tinha dado a sua palavra de honra que nunca mais havia de fumar?

O velho pigarreou, compenetrando-se:

— Meu filho, eu vou lhe dizer uma coisa, saiba de uma vez por todas: cheguei à conclusão definitiva de que honra e cigarro são duas coisas absolutamente incompatíveis.

Deixar de fumar. Conheço um que deixou durante três anos. Um dia viu Charles Boyer segurar delicadamente um cigarro na ponta dos dedos, levá-lo à boca, tirar uma daquelas tragadas francesas de encher o peito, e depois dizer para Michele Morgan “je t’aime”, soltando fumaça. Saiu do cinema, comprou um maço de Hollywood e fumou-o inteiro, um cigarro atrás do outro.

Estou proibido de citar a velha frase atribuída a Mark Twain, a Bernard Shaw, a Churchill: nada mais fácil — já deixaram umas vinte vezes. Pois aqui está o homem que deixou o cigarro. Mais um dia sem fumar! — diz ele, satisfeito, se olhando ao espelho antes de ir dormir. Sabe a data precisa: desde o dia onze de outubro de mil novecentos e setenta e dois (às três e trinta e cinco da manhã). Com isso exatamente nove meses. Está para nascer, de um momento para outro. Está para nascer o homem novo, sem sarro nos dentes ou nos dedos, e sem úlcera de estômago, distúrbio das coronárias, enfisema pulmonar. Vai até a janela e respira fundo o ar puro da noite, batendo com as mãos espalmadas no peito. Vem-lhe a lembrança dos tempos em que a essa hora fumava ali na janela o último cigarrinho antes de se meter na cama — lembrança que ele afasta como fumaça, sacudindo a mão no ar. No fundo sabe que nunca mais será o mesmo, sente-se vagamente viúvo. Há nele qualquer coisa de ex-presidiário ou de défroqué (fora de moda): o cigarro o estigmatizou para sempre. “Mas pelo menos não morrerei de câncer” — conclui ele.

“Fumar é morrer um pouco” — diz um artigo que tenho diante dos olhos: “os fumantes têm uma probabilidade duas vezes maior de morrer na meia-idade do que os que não fumam”.

Sou um homem de meia-idade; e, como deixei de fumar há coisa de meia hora atrás, a minha probabilidade de morrer neste instante ficou reduzida à metade. Resta a outra metade, ou seja, a morte em decorrência de outras causas. Quanto a estas, não creio que haja nada a fazer. Não há outros vícios que eu posso abandonar, a não ser o de viver.

Viver faz tanto mal à saúde quanto fumar. Viver também é morrer um pouco. Faz cair os cabelos e os dentes. Provoca rugas na pele, flacidez nos músculos e artrite nos ossos. Enfraquece a cabeça, combale o organismo e ataca o coração. É o próprio suicídio preconizado pelos que não têm pressa.

E o pior é que os fumantes nem ao menos têm o consolo de saber que estão afugentando a morte quando abandonam o fumo, pois diz aqui o tal artigo: “somente ao fim de dez anos de abstinência tabágica as possibilidades de falecer em consequência do hábito são iguais às das pessoas que não fumam”.

Dez anos? Sei de um que não fuma há nove — portanto durante um ano estará sujeito a morrer por ter fumado. E até hoje ainda sonha que está fumando, acorda engasgado com a fumaça.

Na adolescência cheguei uma ou outra vez a dependurar um cigarro na boca, mas só para parecer que já era homem e não ser barrado no cabaré. Comecei a fumar de verdade aos 20 anos, corrompido por meu amigo Hélio Pellegrino (que hoje não fuma).

Desde então me entreguei alegremente ao vício abominável. Fazer boca para o cigarro era um eufemismo que transcendia o simples cafezinho, para estender-se à própria vida até seu último instante. Pouco importava que fosse reduzida à metade, e daí? Fumar até o momento final, como um condenado — dar a última tragada e enfrentar impávido o pelotão de fuzilamento.

Como um condenado, me vi um dia sem um só cigarro em casa — era de madrugada e chovia. Ainda assim saí à rua para comprar, não poderia dormir sem fumar. Andei como uma alma penada pelas ruas escuras e molhadas de meu bairro, nem um botequim aberto. Já me dispunha a tomar um táxi e mandar seguir para o quinto dos infernos, onde quer que houvesse cigarros à venda. De súbito percebi a escravidão que aquilo significava. Chovia cada vez mais, relâmpagos cortavam a noite.

Nunca mais hei de fumar! — bradei para as potestades dos céus. No dia seguinte me agarrei com ferocidade à surpreendente decisão, fumando a todo momento um cigarro imaginário. Ao segundo dia meu propósito se robusteceu — eu tinha vencido: em breve estaria respirando melhor, sem corizas e pigarros. E ao terceiro dia enlouqueci.

Não sei como não me internaram. Passei a ter ímpetos homicidas dentro de casa, crianças fugindo espavoridas como galinhas. Agarrava-me com todas as forças ao novo vício: o de não fumar. Só falava nisso, só vivia para isso. Depois do primeiro mês a coisa se tornou mais fácil, mas eu vivia triste como se tivesse perdido algum parente próximo e querido. As pessoas me olhavam como quem diz: esse homem esquisito que não sabe onde põe as mãos positivamente já não é o mesmo. E sentado num sofá, vendo os outros fumarem, eu me sentia sem braços como um cavalo.

Com o correr do tempo me acostumei. E para provar que eu deixara mesmo de ser fumante, aceitei com naturalidade o cigarro que me ofereciam, depois de um jantar. Foi então que descobri a verdadeira e única fórmula de vencer o vício do fumo: deixar de fumar sem abandonar o cigarro. Um cigarro como complemento das refeições não faz mal a ninguém. Ou depois de um bom cafezinho — sejam quantas forem as xícaras tomadas diariamente. Um cigarrinho aqui, outro ali — podem mesmo ser tantos quantos os de antigamente, mas com uma diferença: na boca de alguém que, por convicção, deixou de ser fumante. Tudo nesta vida é pura questão de convicção.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Cecília Meireles (Poesias para Crianças) 3


A BAILARINA

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé.

Não conhece nem mi nem fá
mas inclina o corpo para cá e para lá.

Não conhece nem lá nem si,
mas fecha os olhos e sorri.

Roda, roda, roda com os bracinhos no ar
e não fica tonta bem sai do lugar.

Põe no cabelo uma estrela e um véu
e diz que caiu do céu.

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Mas depois esquece todas as danças,
e também quer dormir como as outras crianças.
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O MENINO AZUL

O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.

O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
- de tudo o que aparecer.

O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.

E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.

(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)
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OS CARNEIRINHOS

Todos querem ser pastores,
quando encontram, de manhã,
os carneirinhos,
enroladinhos
como carretéis de lã.

Todos querem ser pastores
e ter coroas de flores
e um cajadinho na mão
e tocar uma flautinha
e soprar numa palhinha
qualquer canção.

Todos querem ser cantores
quando a Estrela da Manhã
brilha só, no céu sombrio,
e, pela margem do rio,
vão descendo os carneirinhos
como carretéis de lã…
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RIO NA SOMBRA

Som
frio.

Rio
sombrio.

O longo som
do rio
frio.

O frio
bom
do longo rio.
Tão longe,
tão bom,
tão frio
o claro som
do rio
sombrio!
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SONHOS DA MENINA

A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?

Sonho
risonho:

O vento sozinho
no seu carrinho.

De que tamanho
seria o rebanho?

A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha ...

Na lua há um ninho
de passarinho.

A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?

Fonte:
Cecília Meireles. Ou isto ou aquilo. Publicado em 1964.

Nelson Rodrigues (O Pastelzinho)


Uma noite, duas semanas antes do casamento, conversava com alguns amigos no café. Súbito, um deles baixa a voz e faz-lhe a pergunta:

— Sabe onde é que se decide um casamento?

— Não.

E o outro:

— Na primeira noite. A primeira noite é tudo e o resto não tem importância.

Sérgio ouviu, sem fazer comentário. O outro era casado, bem casado, e tinha a autoridade de quem conhecia o problema. Continuou e mudaram de assunto. Mas quando, uma hora depois, desfez-se o grupo, o amigo o levou até a esquina. E, lá, repete:

— Não te esqueças: — é preciso caprichar na primeira noite. Bye, bye.

O impressionado Sérgio balbuciou:

— Bye, bye.

EMOÇÃO

Morava na rua Adriano, no Méier. A caminho de casa, no lotação, ia pensando na advertência do amigo, que passava por ser uma enciclopédia amorosa. E Sérgio, que era por natureza um emotivo, sujeito a angústias inenarráveis, começou a entrever possibilidades nupciais as mais desagradáveis. Durante a noite sonhou repetidas vezes com o amigo, que lhe repetia sinistramente: — “Olha a primeira noite. Capricha, capricha!”. Acordou banhado em suor. Mais tarde, no trabalho, permanecia o mal-estar. E a situação parecia-lhe grotesca, hedionda: faltavam duas semanas para o casamento e já estava nervoso. Durante uma semana não pensou noutra coisa. Acabou indo a um médico. Chega lá e abre o coração:

— Doutor, o que há é o seguinte: — vou me casar daqui a uma semana. Tenho medo, justamente, do meu sistema nervoso, das minhas inibições.

O médico insinua:

— Quer um calmantezinho?

E ele, de olho aceso:

— Talvez fosse negócio, não, doutor?

Mas o outro volta atrás:

— Não precisa. Pra quê? A solução é ter confiança em si mesmo, procurar distrair as ideias.

Agoniado, quer saber: — “E não vou tomar nada?”. O médico, cheio de otimismo, deu-lhe o conselho:

— Faz o seguinte: — no dia do casamento, evita salgadinhos e doces. O ideal seria um bife, um bom bife. Carne assada, sangrenta. Nada de pastéis, de empadinhas, de coisas apimentadas.

Ao lado, o noivo escutava:

— Compreendo, compreendo.

Saiu crente do consultório que a chave da lua-de-mel era o aparelho digestivo. Ao descer do médico, dá de cara, por uma dessas fatalidades cômicas, com o tal amigo. Este diz-lhe, em tom cavo e voz profunda:

— A primeira noite é tudo!

NÚPCIAS

Eis a verdade: — a conversa com o médico dera-lhe ânimo novo. Passou a pisar mais firme, a olhar os outros de cima para baixo e, no telefone, ao despedir-se da pequena, encostava a boca no fone:

— Um beijinho bem molhado nessa boquinha!

Entre parênteses, a garota, com dezoito anos, jeitosa de corpo e de rosto, era, como dizia o próprio Sérgio, um “doce-de-côco”, um “arroz doce”. Educadíssima ou, segundo se comentava, “muito espiritual”, era incapaz de usar expressões de gíria, de dar uma gargalhada ou, simplesmente, cruzar as pernas. Fisicamente era um tipo fino, de poucas cadeiras, uma linha muito aristocrática. Ele dizia: — “Nunca espirrou na minha frente. E outra coisa: — não transpira! Te juro que nunca vi a Dalva suada”.

De fato, nenhuma pele mais isenta de espinhas, de manchas, mais fresca, mais cheirosa e mais suave. Custava crer que essa imagem de graça intensa, essa flor de espiritualidade tivesse nascido e, pior do que isso: — ainda morasse na Saúde. Muito carioca, estabanado, Sérgio mudava diante da noiva assim doce e assim macia. Sem querer, ele a tratava com relativa e involuntária cerimônia. O chamado “beijo bem molhado” era a máxima liberdade verbal que se permitia. Mas, na véspera do casamento, ela o chamou de lado. No seu jeito manso, começou:

— Vou lhe pedir um favor, meu filho.

Abriu-se:

— Pois não!

E ela:

— Eu não queria que você falasse mais em “beijo molhado”. Acho tão sem poesia!

Pela primeira vez, Sérgio quis resistir:

— Mas, meu bem, escuta cá: — por quê?

Explicou:

— É o seguinte: — quando você fala assim eu penso logo em saliva.

O outro animou-se:

— Mas por isso mesmo! A graça do beijo está, justamente, na saliva, meu anjo. — E insistia, já inspirado: — Na mistura de saliva.

Dalva encerrou a discussão com a sua doçura irredutível:

— Eu não penso assim.

Sérgio transigiu, imediatamente:

— Está bem, coração. Todo o meu interesse é de te agradar.

A TRAGÉDIA

No dia, houve o casamento, no civil e no religioso. Na igreja, de joelhos diante do altar, ele julgava ouvir, alternadamente, a voz do amigo e a do médico. Uma dizendo: — “A primeira noite é tudo”. E a outra: — “Nada de salgadinhos! Nada de doces!”. De fato, desde as primeiras horas do dia que observava um extremo rigor de alimentação. Renunciara ao leite, que podia fazer mal ao fígado; alimentara-se, sobretudo, de frutas acima de qualquer suspeita: — bananas e mamão. Não almoçara, porque a hora do almoço coincidira com a do civil. Ao sair da igreja, sentia fome. Chegara de volta à casa dos sogros com fome. Viu os salgadinhos, os doces e, a despeito de uma tentação violenta, manteve-se irredutível. De vez em quando, pessoas da casa passavam com pratos de sanduíches, de pastéis, de doces. Perguntavam:

— Aceita um?

Respondia, heroico:

— Não, obrigado.

Ficou, assim, inexpugnável, até o fim. A noiva que, por natureza, tinha um apetite de passarinho, não tocou em nada. Minto: — aceitou um pastelzinho. Ele ainda teve vontade de sugerir-lhe: — “Não faça isso!”.

Calou-se, porém. Por fim saíram, de táxi alugado, para um hotel no centro, onde tinha alugado um apartamento no décimo segundo andar para a lua-de-mel. Ao entrar no carro, Dalva balbucia:

— “Não sei, mas não estou me sentindo bem”.

Sem dizer nada, guardou para si a intuição:

— “Foi o pastelzinho”.

No meio do caminho, novo lamento:

— “Estou me sentindo tão mal!”.

Falara de dentes trincados. Disse ainda:

— “Tomara que a gente chegue logo, tomara!”.

Sentindo a angústia do ser amado, comandou o chofer.

— “Quer andar mais depressa?”.

Ao lado, Dalva crispava-se toda, gelada de dor. Sérgio baixa a voz:

— Queres que eu compre elixir paregórico?

— Não diz isso: Não diz nada. Só quero é chegar, meu Deus!

Ia balbuciando: — “Não sei se aguento! Não sei se aguento!”.

Ele finalmente diz: — “Foi aquele pastelzinho, não foi?”.

Ela arquejava, chamando a atenção das pessoas. Sobe o elevador com o marido, que apanhara a chave. Lá em cima, exigiu: — “Não entra, fica no corredor!”.

Ele espera uns vinte minutos. Nada. Empurra e vem, então, lá de dentro, o berro: “Não!”. Da porta, pergunta: — “Queres elixir paregórico?”.

Outro “não” violento.

Mais meia hora e quer forçar a situação. Entra. Mas quando Dalva percebe que o marido está ali, alucina-se. Ele a viu correr em direção da janela, trepar no parapeito e atirar-se lá de cima, do décimo segundo andar, deixando no ar o seu grito em flor.

Meia hora depois, chegam parentes, amigos, simples conhecidos. Diante da morte de uma noiva, em sua primeira noite, insinuou-se, em todos os espíritos, a ideia de um tenebroso crime sexual. O sogro de Sérgio agarrou-o pela gola e o sacudiu, aos berros:

— Ela matou-se por que?

Respondeu, num soluço imenso:

— Uma cólica a matou! Foi o pastelzinho!

Fonte:
Nelson Rodrigues. A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é...; seleção de Ruy Castro. SP: Cia das Letras, 1993.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 367

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) A Mostra do More


Quem foi o diretor de “Casablanca”? Quem foi a protagonista de “E o vento levou”? Qual foi o primeiro filme de Orson Welles?... Hoje você vai ao Google e fica sabendo na hora. Mas até o final do século passado, pelo menos aqui em Maringá, se você quisesse saber algo sobre cinema, o modo mais fácil de obter respostas rápidas e precisas seria perguntar ao More.

Recentemente, mexendo numa velha pasta, encontrei o recorte de uma crônica que publiquei no “O Diário do Norte do Paraná” no dia 9 de junho de 1979. Falava dele: Morimassa Miyazato – o nosso pequeno grande More. Naquela data ele finalmente estava abrindo, no saguão da prefeitura, sua teimosamente sonhada “I Mostra de Cinema de Maringá”.

Mais de um ano antes ele começara a peleja, andando pra lá e pra cá, viajando de ônibus, de carona, visitando produtores, diretores e atores de cinema, pedindo a colaboração de jornalistas, cavando apoio do poder público, de empresas particulares e de amigos.

Botara na cabeça a ideia da Mostra e nada o faria desanimar. Bravo! Conseguiu.

Na abertura do evento reuniu uma pequena multidão, além de autoridades locais e celebridades do cinema que aqui vieram para ver de perto a Mostra do More. Palestras, debates, exibição de filmes. E uma bela exposição de fotografias, trilhas sonoras, folhetos, revistas, cartazes, autógrafos e antigos equipamentos cinematográficos.

Repito alguns trechos da crônica escrita há 41 anos:

“More realmente me faz acreditar que a esperança é a última que morre. Antes que morresse, aconteceu o sonho esperado. E só não morreu porque ele não deixou. O querido moço nissei venceu, e sua vitória é o item mais bonito dessa Mostra”.

”Nunca vi ninguém gostar tanto de uma coisa quanto o More gosta de cinema. Ele pesquisa, ele discute, ele coleciona, ele é um doutor nessa tal de sétima arte”.

“Você pode fazer perguntas sobre qualquer filme, antigo ou novo, nacional ou estrangeiro, ele sabe tudo. Diz e prova. Seus arquivos lhe dão segurança para falar do assunto sem risco de erro. Se eu fosse um desses homens grandes do cinema brasileiro que estão hoje em Maringá, levaria o More para o Rio ou São Paulo e aproveitaria ao máximo o seu gênio”.

“Gênio é justamente aquela pessoa que gosta malucamente de uma coisa e estuda essa coisa até a raiz. More é assim com o cinema. Sem recursos, enfrentando mil quebra-molas em seu caminho, ele decidiu que Maringá haveria de ter sua “I Mostra de Cinema”. A cidade acabou gostando da ideia e ajudou. Ajuda modesta, porém deu para transformar o sonho em realidade. Aliás, a Mostra nem precisaria ter sido um sucesso tão notável. Bastaria a gente saber que foi fruto do trabalho e do idealismo de um jovem maringaense fora de série”.

More continua em Maringá. Discreto como sempre, mas ainda intrinsecamente apaixonado por cinema.

Daqui lhe mando um abraço. Lá de dentrinho do coração .
****************************************
(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 13-8-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Carime Pires Mansur (Poemas Escolhidos)


CREPÚSCULO DO MEU BRASIL

Contemplando a beleza infinita do céu
e sentindo a atração sedutora do mar,
nesse enlevo e carinho com que estende em véu
de espumas, pela praia, a rolar... a rolar...

Vendo o sol descambar, soberbo, no horizonte,
num fundo misto de ouro, púrpura e de anil,
a encher de luz as terras, as planícies, o monte,
cada vez eu me orgulho mais do meu Brasil!

E o vento — alma, talvez, de um Gênio, a soluçar
beija e embala, do mar, as ondas, docemente!
E, revoltado, agora, agitando-se, o mar,
bebe o sangue do sol, vermelho, vivo, quente!

Sucedendo ao esplendor do Rei, surge a Rainha
da Noite, a Lua, numa bacanal de luz!
Feliz, eu me ajoelho e rezo aos pés da minha
Catedral, meu Brasil! TERRA DE SANTA CRUZ!
****************************************

CRISÁLIDA

No lirismo da noite suave e calma —
um sol de prata a explodir em luz! —
a brisa ao perpassar, canta à minha alma,
em murmúrios, o amor que me seduz!

O meu corpo se esvai, como fumaça,
volatiliza-se, em flutuações...
A minha aura cintila, na argamassa
da matéria, que vibra, em pulsações!

E nesta integração com a natureza,
sou fragmento do azul, sou luz, leveza,
sob a orquestra silvestre, a bailar, nua!

Sou — em véus diáfanos e brilhantes,
enluarada, em cores cambiantes —
crisálida... a espocar... à luz da lua!
****************************************

EGO

Eu, caprichosa como a natureza,
calma e sutil, ardente e impetuosa,
adoro a poesia, amo a beleza,
sou dedicada, meiga e carinhosa.

Às vezes, brisa leve e inesquecível
que acaricia a face, docemente!
Outras, tufão, que no furor terrível
tudo destrói, alucinadamente!

Triste, qual rola, que dolentemente
geme e soluça, aconchegada ao ninho,
vibro na dor e na alegria, ardente!

Um enigma vivo, mas que quer?
Tudo que sou, amor, ódio, carinho,
define-se na frase: Sou MULHER!
****************************************

INCÓGNITA

No mundo limitado que hoje vivo,
do homem hodierno e primitivo,
me debato em dor, conflito e medos,
a me esconder, em rápidos degredos!

E neste mundo, em que me sinto estranha,
aturdida e envolvida na artimanha
das trocas... Conformismo social!
Falo outra língua (pouca gente entende!)
Vivo outra vida, interiorizada.
Cultuo um ideal, que não se vende.
Vou mourejando a cruz pela escalada!

E entre erros e acertos, tropeçando,
sigo, a pagar pecados de outras vidas,
como água de cascata, depurando!
E então fico a indagar, com transcendência,
do ignoto passado e estranhas lidas,
que me trouxeram ao imo esta essência!

— Ó Deus meu, de que páramos eu vim,
de que caos, de que esfera?!... Que existência
anterior me fez tão cega assim?!
****************************************

MINHA CASA

Naquela rua — onde feliz, um dia,
me sentia rainha ao me apossar
do meu castelo de sonho e fantasia:
a casa que acabava de comprar! —

Entre fruteiras copadas e roseiras,
lá estava o antigo casarão.
E no imenso quintal, entre as mangueiras,
uma piscina ao sol, todo verão!

Hoje, porém, ao passar pela rua,
vejo a casa sombria, abandonada,
em ruínas, sem flores, frutos... Nua!

Fico tão triste ao ver a sua sina!
Pois eu que a amo... estou dela afastada!
Quem a possui... a maltrata e chacina!
****************************************

UMA ROSA SÓ

Em meio às flores
surgiste-lhe um dia
ofertando-lhe rosas
num sorriso gentil.
Entre mil amores
ela talvez seria
uma conquista a mais...
Mas no encontro de olhos,
encontraram-se almas!
E a verdade surgiu!
A verdade da vida.
A carne que atrai…
A mente que foge...
Volúpia... desejo...
ardor da paixão
que se acende num beijo!
A rosa na mão. ..
Cuidado com os dedos!
Segura, porém, com muita cautela,
que as pétalas no chão
não vão perfumar.
Precisa carinho...
amor... e ternura...
que a rosa que é pura
em troca terá
muito e muito pra dar.

Põe-na junto ao peito
e o teu coração
batendo... batendo...
a irá embalar!

E a rosa tão branca
de auréola dourada
de emocionada
vai se matizar.

E surgirá então,
por entre seus dedos,
um milagre de amor!
E uma rosa só
se transformará
de branca à rosa,
de vermelho à grená.
E, de uma apenas,
poderás, se quiser,
encontrar mil mulheres
numa única mulher!

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 366

 


Ronnaldo de Andrade (Antologia Poética Spina) 1


À PROCURA DE VOCÊ

Estrela cadente alumia
minhas noites escuras,
meus vastos caminhos.

Traga-me sorte, guie-me os passos
em direção à nova existencialidade,
onde irei encontrar menos espinhos.
Desenhe nesse céu grandioso, claro,
aquela que receberá meus carinhos!
****************************************

CARREGO UMA GRANDE DOR
ENCRAVADA EM MEU ÂMAGO

Divido minha cama
com uma angústia
que alguém deixou

oponente à vontade. Amigo inseparável,
meu coração perdeu força, deprimiu-se;
sentimental como sempre, quase parou.
Passaram-se décadas após tal episódio,
infelizmente, minha tristeza não passou!
****************************************

ENQUANTO PROCRASTINAVA
UM ADEUS SE FEZ PRESENTE

Rascunho de versos
escritos com paixão
carrego na memória.

Versos que nunca foram entregues;
– não houve tempo suficiente para
lhe entregar! Partiu... – Sou escória,
indivíduo que procrastina a própria
felicidade, frauda toda sua história!
****************************************

NA ABSÊNCIA DO SEU CORPO
ENTREGO-ME ÀS FANTASIAS

Pensando em você
sigo na madrugada
a numerar estrelas.

Ausculto cânticos alegres de corujas,
o vento pronunciando-me seu nome
causar sensações... Não sei dizê-las!
Reputo as pardas paisagens noturnas
sem eu nem sequer compreendê-las!
****************************************

NAS ASAS DO DESEJO ARDENTE,
VEJO-NOS CAÇADORES X CAÇAS

Decante um vinho,
se possível merlot,
pegue duas taças.

Preparo nosso jantar; o ambiente
deixo perfeito. Sente-se, eu puxo
a cadeira; servir-lhe-ei as massas.
O seu batom estimula-me, inebria;
hoje nós somos caçadores, caças!
****************************************

NOS ESCOMBROS DO MEU PEITO
O AMOR PERMANECE INTACTO

Tatuei sua imagem,
seu jeito encantador,
em minha memória.

Carrego no alforge da saudade
doces recordações de nós dois;
boas partes da nossa trajetória,
bilhetes que o tempo descoloriu
sem apagar essa nossa história!
****************************************

O NOSSO AMOR NUNCA PARTIU
MESMO SE ENCONTRANDO LIVRE

"Lágrimas de saudade"
invadem a fisionomia,
inundam meu coração.

Nesse casulo nosso amor parou,
depois se tornou uma borboleta
que, "mesmo podendo voar", não
hesitou em permanecer no lugar
contemplando a sua real situação.
****************************************

SINGELA HOMENAGEM AOS MEUS AMIGOS

Estendo os braços
com muita ternura;
ofereço meu peito,

de modo verdadeiro, aos amigos.
Entusiasmado, eu acolho a todos,
fico-me à disposição. Os respeito,
amo-os como são, sem modéstia,
porque também não sou perfeito!

Fonte:
Facebook do poeta.

Arthur de Azevedo (Questão de Honra)


Eram sete horas da manhã. Braga Lopes, sentado numa deliciosa chaise longue, brunia as unhas e contemplava, pela janela do gabinete, o Pão de Açúcar, que por um belo efeito de luz parecia de madrepérola. Angélica entrou no gabinete, e bateu de leve no ombro do marido.

— Preciso de quinhentos mil réis.

— Já?

— Já.

Por única resposta, Braga Lopes apontou para uma carta aberta sobre a secretária de pau-rosa. Angélica leu: o senhorio reclamava em termos violentos, não sei quantos meses atrasados do aluguel do prédio nobre. A moça encolheu os ombros, saiu arrebatadamente e mandou atrelar. Fez ligeira, mas elegante toilette de passeio, e, calçando as luvas de pele da Suécia, recomendou ao engravatado copeiro que não a esperasse para almoçar.

O marido ouviu rodar o coupé e chegou à janela. Acompanhou com a vista o trajeto do carro em quase toda a curva da praia de Botafogo, até que o viu desaparecer na rua Marques de Abrantes.

— Aonde irá ela arranjar quinhentos mil réis a esta hora? pensou, e, sentando-se e novo, recomeçou a sua ocupação predileta - brunir as unhas.

Ao entrar no coupé, Angélica dissera ao boleeiro: — Vamos à baronesa.

A baronesa ainda estava no leito. Angélica foi introduzida no dormitório.

— Preciso e quinhentos mil réis.

— Já?

— Já.

— Impossível, minha amiga; o barão está em Petrópolis.

— Petrópolis em junho!

— Foi a negócio e não a passeio. O dinheiro está com ele, bem sabes. Sinto não te poder servir nesse momento, como noutras ocasiões o tenho feito. Não é a primeira vez que tu…

— Bem... desculpe... adeus, baronesa.

Angélica a sair e o barão a entrar.

— Oh! madame Braga Lopes! a que feliz acaso devemos tão matinal visita?

— Não tinha ido para Petrópolis, barão?

— Petrópolis em junho! Jamais de la vie! Seria ridículo! Saí muito cedo por necessidade e só contava estar de volta ao meio dia. Esteve com a baronesa?

— Sim, senhor barão; passe bem.

E Angélica, mordendo os beiços de raiva, entrou rapidamente no coupé, cuja portinhola o barão abriu pressuroso com a mão esquerda, enquanto a direita fazia o chapéu descrever uma pequena reta, muito graciosa, à inglesa. O boleeiro voltou-se para receber as ordens da patroa.

— Vamos às Guedes.

O barão fechou a portinhola, e o carro pôs-se em movimento. As Guedes eram três irmãs solteironas. Moravam na rua do Conde, perto do Catumbi. Angélica esperou por elas durante quarenta minutos. Empregou todo esse tempo a passear de um lado para o outro, muito contrariada por se ver ali, numa rua tão burguesa, naquela velha sala sem tapeçarias, nem reposteiros, nem bibelôs, fastidiosa com sua esmagadora mobília de jacarandá e os seus venerandos castiçais de prata, resguardados em monstruosas mangas de vidro. Numa velhíssima tela, o pai das Guedes, pintado a óleo, muito sério, inteiramente barbeado, de óculos, o pescoço escondido numa abundante gravata de cinco voltar, as mangas da casaca muito apertadas, as mãos a emergirem das rendas dos manguitos, olhava fixamente para Angélica, e parecia dizer-lhe:

— Que vens aqui fazer? Não arranjas nada!

Afinal apareceram as Guedes. Entraram as três ao mesmo tempo, com pequeninos gritos de surpresa alegre, fazendo um gasto enorme de beijos, abraços, pancadinhas de amor e frases candongueiras: Mas que milagre é este? Por isso é que o dia está tão bonito! Vou mandar repicar os sinos!

— Sente-se, dona Angélica.

— Não; a demora é pequena. Vinha pedir-lhe um grande obséquio. Preciso de quinhentos mil réis.

As Guedes entreolharam-se estupefatas. A recusa foi categórica e formal. Não podiam naquela ocasião dispor nem de quinhentos réis, quanto mais de quinhentos mil réis. A “pouca vergonha” de 13 de Maio deixara-as quase na miséria. Se não possuíssem aquela “humilde choupana” e mais dois sobrados na rua dos Pescadores, estariam reduzidas à miséria. Angélica saiu despeitadíssima; entretanto, não desanimou. O passivo e solícito cocheiro levou-a ainda à presença de seis amigas ricas, e todas lhe disseram não!

Em toda parte a mísera encontrava esse monossílabo terrível! Ao meio-dia, humilhada, indisposta, em jejum, com os nervos excitados por aquela violenta caçada, por aquele perseguir uma quantia miserável, que lhe fugia das mãos obstinadamente, a pobre Angélica teve um gesto expressivo e supremo de resolução e coragem. Alguns minutos depois, o coupé deixava-a no largo de S. Francisco. Ela tomou a pé a rua do Rosário, atravessou a da Quitanda, dobrou a da Alfândega, e, sobressaltada, palpitante, com muito medo de que a vissem, entrou precipitadamente num casarão de dois andares. No corredor hesitou alguns segundos antes de subir; mas enchendo-se de ânimo, galgou ligeiramente as escadas até o segundo andar. Abriram-lhe logo a porta, e ela, trêmula, ofegante, com as mãos muito frias, sem poder proferir uma palavra, caiu nos braços de um homem, que a recebeu com um beijo, e lhe disse:

— Estava escrito que mais dia menos dia a senhora se compadeceria dos meus tormentos…

— O que me traz à sua casa é um questão de honra; conto com sua discrição e seu cavalheirismo. Preciso de…

Angélica envergonhou-se de se vender por tão pouco, e quadruplicou a quantia:

— Preciso de dois contos de réis.

— Já?

— Já.

O relógio da Candelária batia duas horas quando madame Braga Lopes, perfeitamente almoçada, desceu as escadas da casa da rua da Alfândega. Pode ser que o arrependimento aparecesse mais tarde; naquele momento ela era toda satisfação e triunfo. A gentil pecadora entrou radiante na rua do Ouvidor, e foi ter ao Palais-Royal.

— Ainda aí está? perguntou a um dos caixeiros da loja com receio de que mais uma vez lhe dissessem não.

— Ainda, e às suas ordens.

— Bom, acrescentou ela, depois de um prolongado suspiro; aqui estão os quinhentos mil réis. Mande-lo à casa.

— Com efeito! exclamou Braga Lopes quando Angélica lhe apareceu às três horas. Com efeito! passaste o dia inteiro na rua!…

— Sim, vê lá se achas que uma mulher, que só tem brilhantes falsos e joias de pechisbeque, possa facilmente arranjar quinhentos mil réis…

— Mas para que precisavas tu desse dinheiro? perguntou indiferentemente o extraordinário marido.

— Uma questão de honra, meu amigo. Imagina que me apaixonei por um vestido que vi ontem na vitrine do Palais-Royal; imagina que a Laurita Lobo queria por força ficar com ele; imagina que o dono da loja declarou que o entregaria à primeira das duas que lhe levasse quinhentos mil réis!…

— Ah! bom! assim, sim, obtemperou Braga Lopes, que recomeçou fleumaticamente a sua ocupação predileta — brunir unhas.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos fora da moda. Belém/PA: Unama.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 365

 


Dorothy Jansson Moretti (Natal do Meu Tempo)


Quando eu tinha seis anos, o Natal era realmente o maior acontecimento.

Duas semanas antes, em casa era uma reviravolta. Fazia-se uma faxina especial, em que além da limpeza ordinária, engomavam-se toalhinhas e cortinas, poliam-se objetos de enfeite, e estendia-se na mesa uma bonita toalha bordada com motivos de Natal.

Nosso jardim era grande e fornecia as flores para embelezar nossa casa e até as de alguns vizinhos.

Na cozinha preparavam-se os doces. Lembro-me da grande tábua de estender massas e de minha irmã Sílvia cortando nela gostosas bolachinhas de formatos variados: bichinhos, estrelinhas, cometas, Papai Noel...

Mamãe, com um lenço amarrado nos cabelos, temperava as massas dos cuques e bolos de chocolate e nozes. Fazia também docinhos de leite cortados em losangos, e deliciosas balas de leite e mel que eu e meus irmãos Gustavo e Linéa, ajudávamos a embrulhar.

Tudo pronto, guardava-se em grandes latas quadradas com tampo de dobradiças (Biscoitos Aymoré).

Chegava o grande dia. Ganhávamos vestidinhos novos e brinquedos. Que festa! Lavávamos o gato para ele também ficar limpo e bonito para o Natal.

Durante o dia todo, que movimento! Todo mundo queria aproveitar a roupa nova para tirar fotografia. Vendiam-se filmes o dia inteiro.

À tarde vinham visitas e as gulodices eram oferecidas acompanhadas de um licorzinho ou café.

À noite havia festa na Igreja Presbiteriana. Dona Dirce e Domitila nos ensaiavam durante um mês para as apresentações. Cantávamos "Deitado em mangedoura", "Nasce Jesus", "Meu presente de Natal", "Na gruta da Belém"...

Havia também muitas declamações, e ao final distribuíam-se às crianças docinhos acondicionados em vistosos saquinhos coloridos de papel-crepom.

Não havia televisão...

E no meu tempo de mocinha, também não havia televisão. A festa era a mesma, com poucas alterações. O vestido novo, a casa enfeitada e os doces continuavam mantendo as posições, mas à noite, além da Igreja, a gente ia também ao jardim e à Rua Quinze, encontrar as amigas e os amigos para fazer o footing tradicional,

Tra-di-ci-o-nal... Que palavra remota! Algum dicionário ainda a define? Ou os modismos do tempo a absorveram, como absorveram o meu Natal de antigamente, tão doce, tão ingênuo, mas tão... tão... tão Natal!...
- - - - - -

(Tribuna de Itararé 24/12/1992)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

Edy Soares (Cristais Poéticos) III


ABENÇOAI AS MARIAS

Abençoai, Deus, todas as Marias!
Que seus filhos concebem
E logo percebem
Que o mundo os condena.

A brigar pelo pão,
Por pedaço de chão,
Pois a chance é pequena.

Abençoai todas as Marias
Que veem seus filhos perdidos,
Às vezes, vendidos
Por menos de trinta moedas.

Com cruzes pesadas,
Com mãos calejadas,
E as cicatrizes das quedas.

Abençoai todas as Marias
Que veem seus filhos condenados,
Muitas vezes trocados
Pelos "barrabazes" da vida.

Se entregando ao sacrifício,
Ao carrasco e ao suplício,
Por não terem saída.

Abençoai as Marias,
Marias que imploram,
Marias que choram
Pelos filhos das favelas.

Tenha pena dessas Marias
Não pense, nem por um dia,
Que seus filhos são sempre
Melhores que os delas.
****************************************

ALÉM DA ÚLTIMA ESTAÇÃO

Acho que lá vem
O último trem
Rompendo o silêncio,
Iluminando os trilhos,
Apitando de estação em estação.

Acho que essa é
A última estação
E esse,
Ah... esse é o último trem.

E lá vou eu,
O último passageiro
Da última estação,
No último trem.

Pra onde vou, não sei!
Mas ficou pra trás
A estação vazia e fria
Que me viu tantos dias
Esperando o trem passar,

E nunca diria que eu, um dia,
Sem querer seria,
Desse vagão derradeiro,
O último passageiro…
****************************************

EDIÇÃO

Se é falso o que é falado,
Se o que ouço e vejo é editado,
Tiram-me direito de autenticidade,
Ocultam-me o que é a verdade.

Se manipulam o que me é mostrado,
Se censuram o que me é contado,
Falseiam a realidade
E destroem a moralidade.

O improviso nunca é o feio;
É o novo sem ter rodeios;
É falar sem o texto montado;
É a fala de quem tem coragem;
É a verdade sem camuflagens;
É o brado de quem não aceita calado.
****************************************

MULAMBA

O olhar sorridente, criança,
Na dança de carros no farol,
Sem temer a resposta se lança
Por um trocado, em busca do pão.

Pedinte, sem sorte, mulamba,
E samba ao olhar de quem passa,
Quem nega, o faz por desculpa
De que doar incentiva a desgraça,

Filhos da pátria que esbanja,
Se arranja com o pouco que sobra,
Ninguém quer saber onde dorme,
Tampouco importa se acorda.

Salve! Salve! Pequenas crianças,
Esperança do futuro do mundo,
Sobra ouro nos cofres do rei,
Mas pra vocês, falta amor falta tudo.
****************************************

TREM SEM RUMO

Desgovernado nas mãos
De um maquinista louco,
Em disparada,
Rasgando trilhos,
Rompendo dormentes,
Atropelando impiedosamente
O que houver pela frente.
Trem desgovernado
Sem rumo certo,
Sem saber ao certo
Onde se vai dar,
Nem como parar.
Máquina mortífera!
Tal qual máquina forte;
Não tem um norte
E nem direção.
Segue em disparada
E a próxima parada
Pode ser em qualquer estação.

Fonte:
Edy Soares. Flores no deserto. Vila Velha/ES: Ed. do Autor, 2015.
Livro enviado pelo poeta.