sábado, 4 de junho de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 10

 

Stanislaw Ponte Preta (O homem que não foi a São Paulo)

De repente deu-lhe aquela chateação de ter que ir para São Paulo. Olhou para a valise já prontinha, que a mulher preparara e que descansava sobre uma poltrona do escritório, e puxou um longo 'suspiro. Depois olhou para a passagem da Ponte Aérea que estava em cima da mesa e sentiu um leve, um quase imperceptível mal-estar. Afinal, tinha pouca coisa a fazer em São Paulo. Se tivesse sorte de conseguir uma linha, talvez resolvesse tudo com o chefe do escritório de lá e então ficaria com uma noite livre no Rio, iria para onde bem entendesse, dormiria num hotel qualquer e não teria de dar satisfações a Mercedes, que esta estaria crente que ele seguira mesmo para São Paulo.

Pegou o telefone e discou "Interurbano". A voz neutra e irritante da telefonista perguntou o que ele queria. Cruzou os dedos e pediu São Paulo, aliviado de não ouvir em seguida aquela frase cretina: "Os circuitos estão ocupados, queira chamar mais tarde". Quando acabou de dar as ordens ao chefe do escritório, sentia-se bem melhor. Ao pegar de novo o telefone, parecia muito bem disposto e teve de se conter para não demonstrar sua alegria:

– Mercedes? Sou eu ... Já vou sim. Não sei, meu bem. Sigo agorinha para o aeroporto e pego o primeiro que tiver lugar. Obrigado. Outro pra você.

Desligou e ficou imaginando que era o golpe. Ir para um bar e encher a caveira? Telefonar para uma daquelas desajustadas de sempre? Ia optar pela segunda hipótese, quando se lembrou que já era um pouco tarde e mulher avulsa que se preze não continua avulsa depois que a tarde cai. O jeito era sair por aí... Mas novamente o telefone entrou em cena. A campainha soou e ele ouviu a voz do Augusto:

– Seu passe está livre para um pagode?

Aquilo caía do céu: – Puxa, Augusto ... você encaixou na horinha. Imagine que eu ia para São Paulo e resolvi não ir... Mal telefonei para Mercedes ... acabei de ligar, dizendo que ia, mas disposto a ficar por aqui mesmo.

– Ótimo! – exclamou o Augusto. – Pois eu estou de cacho aí com uma pequena bem razoável. Ela me avisou que tem uma amiguinha sobrando, coisa fina, e pediu que eu levasse um amigo.

– Tô nessa boca! – berrou o que ia a São Paulo e não foi, achando que mais uma vez se confirmava a sua sorte com mulher. E apressou-se:

– Diga à sua amiguinha para levar a outra que eu terei o maior prazer em desencaminhá-la.

Augusto esclareceu que não precisava isso. Já estava tudo combinado: as duas estariam no bar assim-assim, às tantas horas, esperando. E, a uma pergunta aflita, tratou de tranquilizar o amigo: não conhecia a outra, mas devia ser boa sim, porque tivera o cuidado de se informar sobre este detalhe e sua pequena garantira que era papa-fina.

Saíram logo que Augusto chegou no escritório. Estava tão animado que já ia esquecendo a valise em cima da poltrona. Voltou, apanhou-a e antes de apagar a luz rasgou a passagem da Ponte Aérea e jogou na cesta.

"Mercedes pode ver esta porcaria no meu bolso e vai ser fogo" - pensou. E juntou ao pensamento um ditado de sua autoria que costumava usar sempre que se metia numa baderna: "Marido prevenido, casamento garantido".

Augusto manobrou o carro e entrou na vaga com facilidade. Antes de atravessarem a rua, apontou para o barzinho elegante da esquina, explicando que elas estavam esperando ali. Quando entraram na sala um tanto quanto penumbrosa, a penumbra não chegou para esconder a mulher que acenou em sua direção:

– Aquela é a minha, – foi dizendo o Augusto – e a outra é a sua.

Como se ele não soubesse que era a sua! Lá estava ela, toda fresca, no vestido vermelho que ele financiara na véspera. Aliás, foi o ar fresco que lhe deu mais raiva. Partiu por entre as mesas bufando e iniciou incontinenti o festival de bolachas.

– Mas o que é isto... mas o que é isto? – perguntava Augusto atônito.

Ninguém ali sabia direito por que é que ele estava batendo, mas Mercedes sabia perfeitamente por que é que estava apanhando.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Gol de padre. Atica, 1997.

Baú de Trovas XLIX


Irmanemos nossas vidas
em comunhão generosa,
tal como vivem unidas
as pétalas de uma rosa!
A. A. de Assis
Maringá – PR

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O namoro venturoso,
curtido na mocidade,
mudou de nome, o teimoso:
hoje se chama SAUDADE!
Adamo Pasquarelli
São José dos Campos – SP

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A natureza agredida
não se defende e nem xinga,
mas no decorrer da vida
cedo ou tarde, ela se vinga
Amilton Maciel Monteiro
São José dos Campos – SP

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Amor é brisa suave,
é aconchego, é carinho;
é vôo cadente da ave
indo em busca do seu ninho
Antônio Manoel Abreu Sardenberg
São Fidélis – RJ

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Superando os meus problemas,
descubro que os teus abraços
são elos com que me algemas
no presídio dos teus braços.
Antonio Colavite Filho
Santos – SP

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Se a vida é mera passagem
por este plano somente,
o preço desta viagem
é a própria vida da gente.
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora – MG

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Na bagagem que hoje trago
quase tudo joguei fora;
só guardei o bom afago
e as alegrias de agora.
Benedita de Azevedo
Magé – RJ

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Quando a penumbra descia,
a nossa emoção vibrava,
sonhando o que não dizia,
dizendo o que nem sonhava!…
Carolina Ramos
Santos – SP

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Eu vejo Deus na magia
dos versos simples que teço
Deus é rima, amor, poesia,
é fim, é meio, é começo!
Delcy Canalles
Porto Alegre – RS

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Talvez porque a noite esconda
sombras de amor… é que a Lua
põe mais luz em sua ronda,
quando ronda a minha rua!
Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo – RJ

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Na viagem da ilusão,
pela tarde azul e morna,
vivo a esperar na estação
um trem que nunca retorna!
Eduardo A. O. Toledo
Pouso Alegre – MG

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Nos vales ou nos outeiros,
levando a luz da instrução,
escolas são candeeiros
que aplacam a escuridão.
Eliana Jimenez
Balneário Camboriú – SC

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Nem mesmo a ilusão remenda,
com seus fios de saudade,
os velhos sonhos de renda
que eu teci na mocidade!
Elizabeth Souza Cruz
Nova Friburgo – RJ

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Na aliança nunca desfeita,
alma e corpo te entreguei:
juntei a ideia perfeita
ao passo maior que eu dei.
Josafá Sobreira da Silva
Rio de Janeiro – RJ

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O cego, com dedos certos,
tange a sanfona dorida,
e eu, com dois olhos abertos,
erro nas teclas da vida.
José Lucas de Barros
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

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Se a sorte não me convida,
teimoso, forças concentro
e entro na festa da vida
como “penetra”… mas entro!…
José Tavares de Lima
Juiz de Fora – MG

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Após busca pertinaz,
descobri, um dia, a esmo:
– Só hei de encontrar a paz
na renúncia de mim mesmo!
Luiz Antonio Cardoso
Taubaté – SP

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Falassem os arvoredos…
e o mundo iria corar
ante os milhões de segredos
que o vento deixa, ao passar!…
Maria Madalena Ferreira
Magé – RJ

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Nunca mostres apatia
diante da luta na vida,
mas brinda com simpatia
e a inércia será vencida!
Maria Luíza Walendowski
Brusque – SC

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Separou-se… e com mais pique
justifica encabulada:
marido que dá chilique
não consegue dar mais nada…
Maria Nascimento
Rio de Janeiro – RJ

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Sobreviver é uma arte.
É driblar a natureza,
tendo a fé como estandarte
e Deus como fortaleza.
Myrthes Mazza Masiero
São José dos Campos – SP

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A paz, numa sociedade,
entre tantas coisas boas,
só depende, na verdade,
da consciência das pessoas.
Nei Garcez
Curitiba – PR

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Tenho orgulho do que faço;
se é feito com perfeição.
Mas aceito meu fracasso
se não tiver solução.
Neiva Fernandes
Campos dos Goytacazes – RJ

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No rodeio do existir,
peço a Deus, a todo instante,
que eu não caia e, se cair,
com mais força me levante.
Newton Vieira
Curvelo – MG

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Nada mais embriagador
no arrepio das ternuras
que escutar juras de amor
mesmo que sejam perjuras.
Nilton Manoel
Ribeirão Preto – SP

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Em meu leito de abandono,
eu, mulher, só penso em ti;
se sem ti eu perco o sono,
que será contigo aqui?
Olympio Coutinho
Belo Horizonte – MG

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Esses teus mágicos olhos,
quando me fitam assim,
são carícias ou escolhos
do naufrágio que houve em mim?
Renato Alves
Rio de Janeiro – RJ

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Nossas almas parecidas,
nossos sonhos se irmanando,
eu e tu, vidas vividas
tarde demais se encontrando!
Rita Mourão
Ribeirão Preto – SP

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O mais sublime recado,
veio de longe… do céu…
Sendo a Maria, levado,
pelo Arcanjo Gabriel.
Roberto Pinheiro Acruche
São Francisco de Itabapoana – RJ

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Passas por mim… nem me agradas…
e a saudade, sem tardança,
traz de volta as madrugadas
que hoje vivem na lembrança.
Therezinha Brisolla
São Paulo – SP

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Da vida o imenso valor
pode estar num… quase nada!
Como ver brotar a flor
entre as fendas da calçada.
Vanda Fagundes Queiroz
Curitiba – PR

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Meu jogo, audaz e exigente,
encara a carta que der,
mas com você, frente a frente…
jogo charme de mulher!
Vânia Ennes
Curitiba – PR

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O teu silêncio me afronta;
nem breve mensagem veio,
mas meu amor faz de conta
que a culpa é só do correio.
Wanda de Paula Mourthé
Belo Horizonte – MG

Machado de Assis (Suje-se Gordo!)

Uma noite, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de S. Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.

— Fui sempre contrário ao júri, — disse-me aquele amigo — não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho: “Não queirais julgar para que não sejais julgados”. Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição.

Tal era o meu escrúpulo que, salvo dois, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dois processos eram mal feitos. O primeiro réu que condenei era um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.

Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estreia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dois anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do Conselho, que era eu.

Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso. Cantarei depressa; o terceiro ato não tarda. Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinquente. O processo foi examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou coisa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votara pela negativa, — proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo, — chamava-se Lopes — replicou com aborrecimento:

— Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.

— Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.

— Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!

“Suje-se gordo!” Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário, nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.

Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entendê-la. “Suje-se gordo!” era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da Rua de S. Pedro; vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele; não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos.

Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.

Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus. Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.

— Como se chama? perguntou o presidente.

— Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.

Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências; não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas coisas me escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim. Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca. Seguiu-se a leitura do processo. Era uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me impressionou muito, o inquérito, os documentos, a tentativa de fuga do caixa e uma série de circunstâncias agravantes; por fim o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu.

Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros.

Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes, os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.

Enquanto os dois oradores falavam, vim pensando na fatalidade de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico: “Não queirais julgar, para que não sejais julgados”. Confesso-lhe que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a cometer algum desvio de dinheiro, mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava outrora, era agora julgado também.

Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo Lopes: “Suje-se gordo!” Não imagina o sacudimento que me deu esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: “Suje-se gordo!” Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. “Suje-se gordo!”

Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!

Ideias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer-lhe aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dois jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença da votação era tamanha que cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! Suje-se magro! Suje-se como lhe parecer! O mais seguro é não julgar ninguém... Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.

Fonte:
Machado de Assis. Relíquias de Casa Velha. Publicado em 1906.

sexta-feira, 3 de junho de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 6

 

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XLI

FLUI, INDECISO NA BRUMA

 
Flui, indeciso na bruma,
Mais do que a bruma indeciso,
Um ser que é coisa a achar
E a quem nada é preciso.

Quer somente consistir
No nada que o cerca ao ser,
Um começo de existir
Que acabou antes de o Ter.

É o sentido que existe
Na aragem que mal se sente
E cuja essência consiste
Em passar incertamente.
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GLOSA
 
Minha alma sabe-me a antiga
Mas sou de minha lembrança,
Como um eco, uma cantiga.

Bem sei que isto não é nada,
Mas quem dera a alma que seja
O que isto é, como uma estrada.

Talvez eu fosse feliz
Se houvesse em mim o perdão
Do que isto quase que diz.

Porque o esforço é vil e vão,
A verdade, quem a quis ?
Escuta só meu coração.
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GLOSAS
 
Toda a obra é vã, e vã a obra toda.
O vento vão, que as folhas vãs enroda,
Figura nosso esforço e nosso estado.
O dado e o feito, ambos os dá o Fado.

Sereno, acima de ti mesmo, fita
A possibilidade erma e infinita
De onde o real emerge inutilmente,
E cala, e só para pensares sente.

Nem o bem nem o mal define o mundo.
Alheio ao bem e ao mal, do céu profundo
Suposto, o Fado que chamamos Deus
Rege nem bem nem mal a terra e os céus.

Rimos, choramos através da vida.
Uma coisa é uma cara contraída
E a outra uma água com um leve sal,
E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.

Doze signos do céu o Sol percorre,
E, renovando o curso,  nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

Ficções da nossa mesma consciência,
Jazemos o instinto e a ciência.
E o sol parado nunca percorreu
Os doze signos que não há no céu
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GNOMOS DO LUAR QUE FAZ SELVAS
 
Gnomos no luar que faz selvas
As florestas sossegadas,
Que sois silêncios nas relvas,
E em aléias abandonadas
Fazeis sombras enganadas,

Que sempre se a gente olha
Acabastes de passar
E só um tremor de folha
Que o vento pode explicar
Fala de vós sem falar,

Levai-me no vosso rastro,
Que em minha alma quero ser
Como vosso corpo, um astro
Que só brilha quando houver
Quem o suponha sem ver.

Assim eu que canto ou choro
Quero velar-me a partir.
Lembrando o que não memoro,
Alguns me saibam sentir,
Mas ninguém me definir.
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GOSTARA, REALMENTE
 
Gostara, realmente,
De sentir com uma alma só,
Não ser eu só tanta gente
De muitos, meto-me dó.

Não Ter lar, vá. Não ter calma
'Stá bem, nem  ter pertencer
Mas eu, de ter tanta alma,
Nem minha alma chego a ter.
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GRANDE SOL A ENTRETER

Grande sol a entreter
Meu meditar sem ser
Neste quieto recinto...
Quanto não pude ter
Forma a alma com que sinto...

Se vivo é que perdi...
Se amo é que não amei...
E o grande bom sol ri...
E a sombra está aqui
Onde eu sempre estarei...

Júlia Lopes de Almeida (Pela Pátria)

Os tiros lá fora repetiam-se, tremendos e abaladores. D. Catarina, muito lívida, segurava com os dedos magros, de encontro ao peito fundo e côncavo, o seu triste xale de viúva, escutando sozinha a agonia do coração... Morava em Niterói, num bairro afastado, e na sua pequena sala térrea, de uma nudez de ascetério (convento), o seu corpo magro e esguio, todo coberto do preto, andava desnorteadamente, como um mastro sem velas batido na borrasca.

Corria assim de canto a canto, de parede a parede, de janela a janela, sem parar, sem perceber senão que os seus dois rapazes lá estavam na guerra, o mais velho no exército, o mais novo na esquadra...

A luz pálida do crepúsculo desfazia-se aos poucos. Coisas e seres retraíam-se num silêncio expectante.

O troar da artilharia calava todas as outras vozes; nos intervalos caía sobre a terra uma mudez pesada e absoluta; mas o estampido vinha depressa fazer vibrar a natureza inteira. E o ar ficava por momentos trêmulo, como que dolorido pela passagem daquele som formidável e assassino.

D. Catarina tinha esgotado todo o fervor religioso da sua alma. A prece já lhe saía dos lábios frios como um débil perfume de flor murcha. Perdera as forças na ansiedade e no pranto; o coração não lhe destilava a água purificada da lágrima, que escorrera toda, deixando só no fundo os resíduos de sangue negro e envenenado, geradores da raiva. D. Catarina odiava a terra em que nascera e que lhe roubava agora os filhos, e execrava ainda mais os homens e a lei e tudo! Era ignorante, embora inteligente e imaginosa; e na curta parábola em que o seu espírito se abalançava (arrojava), não podia atingir esses preceitos divinos, que se escrevem com sangue e que os homens leem corrente na sua alta sabedoria...

A honra? O brio da nação? Palavras! Ela não sabia senão que amava os filhos, que os tinha criado com terno apego e grande sacrifício, pedindo honestamente e humildemente ao Senhor Deus dos exércitos, que fizera as estrelas do céu, as águas dos rios, os cedros altivos e as areias do mar, que, na sua força prodigiosa, de tantas maravilhas lhe concedesse a simplíssima graça de a fazer morrer bem velhinha, deixando neste mundo os seus dois filhos... os seus dois únicos filhos!

Tinha caído a noite. D. Catarina procurou reagir. Acendeu a lâmpada, compôs na alcova próxima as roupas e as camas dos seus rapazes. Para quê? Eles não viriam... mas era um hábito, e ela obedecia com submissão a todos os seus velhos costumes.

Ergueu depois a vela à altura dos retratos deles, que se destacavam na parede caiada, em dois quadrinhos moldurados de veludo escuro.

O mais velho era um soldado garboso, claro e bonito como o pai, de olhos rasgados e peito franco e largo.O outro, ainda muito novo, puxara ao tipo da mãe: era magro, trigueiro, de rosto comprido e lábios simpáticos. D. Catarina beijou ambos com igual ternura, confundindo-os no mesmo enleio e no mesmo cuidado. Voltou depois para a saleta, abrindo os ouvidos aos rumores de fora...

Que estranho rumor seria agora aquele que percebia ao longe, no ar imóvel da noite? Fincou o olhar na treva. Ninguém! A estrada devia estar deserta. Tornou a entrar e foi sentar-se a um canto, com os cotovelos pontudos firmados nos joelhos e o rosto sumido entre as mãos. Caíra por fim numa atonia que lhe amolentava (enfraquecia) o espírito e petrificava o corpo; nem um leve estremecimento lhe agitava os músculos. Permaneceu por longas horas em igual postura, olhando para o mesmo ponto.

A pouco e pouco ideias desencontradas foram nascendo e fugindo simultaneamente no seu cérebro de devota extinta. Deus e o diabo surgiam juntos na mesma luz indecisa que se esbatia em sombras, que mudava e que desaparecia. Santa Catarina, sua patrona, a virgem douta, vinha também, na sua nudez pálida de martirizada, atravessar-lhe a mente num clarão frouxo e frio. E depois outros santos, e grandes heresias, procissões fantásticas, mal definidas, indeterminadas, arrastavam-se lentamente, mudando de feitio e mudando de cor, esfacelando-se, extinguindo-se...

D. Catarina permanecia surda a todas as bulhas exteriores, numa abstração de louca. O rumor recrudescera, recrudescera e avizinhava–-se. Os estalidos da fuzilaria crepitavam já perto. De vez em quando ribombava o canhão, atroador, medonho.

O solo e as casas tremiam então, abalados pelo estampido que o eco repetia em ondulações soluçadas. O clamor da guerra abafava tudo, terrivelmente, dolorosamente!

Entretanto, alguém vinha pela rua solitária, batendo a calçada com passos apressados. D. Catarina, prostradíssima, continuava em igual postura, olhando para o mesmo ponto... Bateram; ela então, acordando daquele marasmo de extenuada, ergueu-se de chofre e correu para a porta.

O coração saltava-lhe em ímpetos violentos, sufocadores.

– Meu filho!

Era o João, o mais velho, o soldado. A mãe estendeu-lhe os braços, sorrindo, enlevada, numa grande ventura. Ele não respondeu ao afago; e pálido, abstrato, sem ter nem mesmo levado a mão respeitosamente ao boné, foi direito à mesa e apoiou-se nela, deixando-se cair numa cadeira.

– Como você vem sujo de pólvora e como está cansado! Meu adorado filho, que medo que eu tinha! Agora fico pensando no outro... o meu Pedrinho... você sabe dele?

João voltou-se para a mãe com ar espantado.

– Diga, você viu seu irmão?

O soldado não respondeu; fixava a mãe com olhar parvo, muito aberto, como se não compreendesse o que ela lhe dizia. Vinha fugido, com a farda rasgada, aberta no peito, as mãos negras de pólvora, o rosto transtornado.

D. Catarina apavorou-se. Estaria doido, o João? Ameigando a voz ela pediu-lhe que repousasse e ofereceu-lhe de comer.

Que não; respondeu ele com um gesto.

– Então...

O espírito da mãe clareou-se de repente: o filho vinha só para dizer-lhe: vivo! E, já com medo de tornar a perdê-lo, instou para que fosse descansar.

– Não posso... venho fugido.

D. Catarina relanceou a vista por toda a sala, procurando esconder o filho, receosa de que o vissem de fora.

– Não quero esconder-me, tornou ele, percebendo-lhe a intenção; eu volto para lá... Eles conseguiram vir a terra... temos lutado muito!

– Os revoltosos desembarcaram?

– Sim.

– Então você viu Pedrinho?

João abaixou afirmativamente a cabeça.

– Nossa Senhora! Por que é que o não trouxe?

O soldado calou-se, suspirando baixo. A mãe repetia as perguntas, atropeladamente:

– Diga! diga! Ele falou com você? Está bom? Não o feriram? Meu filho! Que saudade! Ele é tão fraco... é preciso que ele venha; quero os dois aqui, vá buscá-lo... Não, não! Eu nem sei o que digo... Espere... vou eu!

De repente D. Catarina estacou diante do rosto mudo e pálido do filho. Parou-lhe o coração no peito.

– Por que é que você não diz nada?

O mesmo silêncio contrafeito.

– Responde, João! Pedrinho está vivo?!

A palavra custava a romper por entre os lábios do soldado, e foi ainda com um aceno de cabeça que ele disse que não.

D. Catarina caiu de joelhos com as mãos juntas.

– Misericórdia! Misericórdia! Mataram meu filho!

Depois, erguendo-se, exigiu do outro que lhe dissesse tudo, e instava:

– Quem foi que o matou? Você não viu? Por que não defendeu seu irmão? Diga, quem foi que o matou, diga, diga!

João olhou para a espada, que lhe pendia do lado batendo-lhe na perna.

A mãe não entendeu e repetiu:

– Meu adorado Pedrinho! Mas você não fala, João! Diga quem foi que o matou, diga tudo!

– Fui eu...

D. Catarina recuou espavorida; depois, avançando para o filho, bateu-lhe no peito, bem sobre o coração e bateu-lhe na cara, muitas vezes e com muita força. Toda ela vibrava na convulsão do desespero, e a voz, que a dor tinha desafinado e enrouquecido, uivava e rugia a um tempo, como um cão que se lamenta ou uma fera que ataca.

– Maldito! Matar seu irmão! Você, que mamou nos mesmos peitos, saiu do mesmo ventre, nasceu do mesmo amor! Amaldiçoado... Caim!

D. Catarina esmurrava o próprio corpo, à proporção que falava; e o filho ouvia-a calado, trêmulo. A mãe teimava por arrancar-lhe uma palavra ao menos e repetiu num desespero:

– Diga tudo, maldito. Por que foi que você o matou, por quê?

– Pela pátria!

– Pela pátria! repetiu ela, rindo, raivosamente. A pátria sou eu! Eu que sofri, e que só vivia do vosso amor! Isto não é guerra por amor da pátria: eu sei o que dizem por aí. Eu sei! Infame, maldito... some-te da minha vista, Caim! Caim!

D. Catarina caiu sem um soluço. João levantou-a, fê-la voltar a si e, de joelhos, chorosamente, contou-lhe tudo. Matara o irmão na treva, na desordem da luta, corpo a corpo. Por que viera o Pedro para ele com tanta fúria e arreganho? Matara quem o queria matar, defendera-se... porque, jurava, só conhecera a voz do irmão ao ouvir-lhe o ai derradeiro. Foi então que, procurando fixá-lo, viu-o deitado de costas, com os braços abertos e o peito estreito arquejando no desprender da vida.

D. Catarina repetiu:

– Amaldiçoado!

João concluiu: viera despedir-se da mãe, pedir-lhe que lhe perdoasse... Mais nada. Voltava para o combate.

A mãe não procurou retê-lo, e ele saiu chorando.

O soldado não voltou à casa materna...

D. Catarina começou a perdoar-lhe quando teve medo de perdê-lo.

Um dia, já muito sobressaltada, saiu para ir buscá-lo, num alvoroço, sem saber como perguntar por ele; mas logo no meio da estrada esbarrou com uns soldados que lhe disseram cruamente a verdade: o João tinha sido baleado e fora levado com outros, num montão de cadáveres.

O dia estava sombrio, uma manhã cinzenta e chuviscosa. Os soldados passaram. D. Catarina ficou imóvel, com os olhos na onda verde que vinha desfazer-se na escumilha fofa da espuma, à beira do caminho silencioso.

Ela tinha-o amaldiçoado... lembrava-se só daquilo. O João estava decidido a morrer... fora-lhe solicitar o perdão e só tinha ouvido em troca as palavras:

– Maldito! Caim!

O vento agitava-lhe o xale preto, que se abria em asas de corvo, e D. Catarina, alongando a vista, julgou ver ao longe os espectros dos filhos, com os braços hirtos, muito erguidos para o céu inclemente e as bocas articulando sem voz, num esforço medonho:

– Pela pátria! Pela pátria!

Batendo então com as mãos fechadas no peito fundo, D. Catarina, no seu egoísmo materno, respondeu-lhes, gritando em arrancos de louca:

– Calai-vos, ingratos! A pátria sou eu! Sou eu! Sou eu!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Estante de Livros (Essa Terra, de Antônio Torres)


Resumo


A história tem seu início com o relato da lembrança de Totonhim, o narrador da história, a cerca do retorno do irmão Nelo ao Junco, uma pequena cidade do interior da Bahia onde moravam. O irmão havia fugido para São Paulo em busca de melhores condições de vida.

A condição da família era de extrema pobreza, principalmente quando se mudaram para Feira de Santana em busca de estudo para os filhos. A princípio, Nelo mandava dinheiro para a mãe, mas, com o tempo, não mandou mais. Por morar em São Paulo, toda a família acreditava que Nelo estava rico. Mas ele retorna fracassado.

A família era composta pelos pais e doze filhos, mas apenas três permaneceram em Feira de Santana com a mãe, o pai não achava importante o estudo e ficou um bom tempo sozinho no Junco, os outros irmãos estavam espalhados. A mãe falava de Nelo de forma carinhosa, diferente dos outros irmãos. Totonhim havia saído de Santana e voltou para a roça para morar com o avô.

Um dia, Nelo se embebedou e enquanto o irmão o ajudava, contou-lhe a trágica história de como perdeu os filhos e a mulher para um primo e ainda foi espancado pela polícia. Dias depois, Totonhim foi chamar Nelo para ir tomar banho no rio e encontrou-o enforcado, pendurado numa corda no armador da rede.

O pai é quem constrói o caixão, pois era carpinteiro. Enquanto isso, ele recorda suas desgraças, lembra-se de como perdeu as terras para o irmão e ficou sem nada. Totonhim faz uma reflexão sobre quem ele é e também relembra suas desgraças. A mãe começa a dar sinais de loucura com a morte do filho no qual depositava todas as esperanças. O romance termina com a internação da mãe, o enterro de Nelo e a partida de Totonhim para São Paulo.

Sobre o autor

Antônio Torres é um jornalista e escritor brasileiro. Nascido no interior da Bahia, tem os temas rurais como os mais recorrentes em sua obra. Faz uma releitura do regionalismo, mostrando de forma irônica as paisagens e os estereótipos locais.

Importância do livro

O romance Essa Terra, lançado em 1976, tem um caráter autobiográfico por ter seu autor vivido a mesma trajetória do personagem principal: a migração do sertão para a capital. A obra traz à tona a dificuldade vivida por uma família no interior da Bahia e, com isso, retrata a diferença entre a capital e o interior. Tem uma temática regionalista, porém num teor crítico, já que os personagens vivem uma crise de identidade e não nutrem amor pela sua terra. O narrador-personagem conta a trajetória de seu irmão Nelo, o personagem principal que migra para São Paulo em busca de melhores condições.
Análise

Pode-se dizer que a obra se aproxima de uma autobiografia, já que o próprio autor viveu a experiência do personagem principal ao sair do interior da Bahia para buscar uma vida melhor nas metrópoles do sudeste. O romance aborda o drama da migração nordestina para São Paulo, relatando o impacto da "cidade grande" sobre o retirante e também as consequências sociais e psicológicas que envolvem a família que permanece.

O romance apresenta o panorama do país no século XX, ao tratar do contraste dos grandes centros desenvolvidos em comparação ao sertão esquecido. Contribui, assim, não só para uma reflexão sobre as diferenças sociais, mas também sobre a questão da identidade do ser humano.

O personagem Nelo, ao se afastar do sertão, acaba se esquecendo de sua identidade e de suas raízes, ao retornar sem cumprir as expectativas de enriquecimento de sua família, acaba pondo fim a sua vida. O suicídio sintetiza o impasse: com o desenraizamento, ao retornar derrotado, não lhe resta mais nada e a frustração põe fim ao personagem.

Apesar da caracterização sertaneja do Junco e a presença de uma temática regional, não se trata de uma obra propriamente regionalista, podemos afirmar que o regionalismo, neste caso, é problematizado. Ocorre uma desconstrução do espaço regional identitário a partir da falta de identidade regional. Não existe aqui uma nostalgia do sertão, como em outras obras regionalistas, mas sim um olhar crítico.

A crítica é construída através do narrador-personagem Totonhim, a partir da sua visão é possível observar o Junco como figura de crise, instabilidade e de pobreza. Tal crise é estendida também à família, pois ambos sofrem pela seca, em ambos a migração se faz presente. Desta forma não tem como separar bem o sofrimento da terra do sofrimento das pessoas. Totonhim é o narrador-personagem que evidencia uma distância crítica em relação aos problemas do Junco e se posiciona de modo reflexivo em relação à terra (o Nordeste) e aos outros.

Personagens

- Totonhim: narrador-personagem. Através de sua visão percebemos a realidade da cidade de Junco e a falta de esperança em relação a sua terra.

- Nelo: personagem principal que sai do Junco para São Paulo em busca de melhores condições, mas retorna fracassado e acaba cometendo suicídio.

- A mãe: vive brigando com o marido e se queixando dos filhos, menos de Nelo, a quem trata diferente, tendo esperanças que ele a tirasse do sertão. Com a morte do filho, enlouquece.

- O pai: perde as terras para o irmão e acaba ficando sozinho no Junco quando a família se muda para Feira de Santana por causa do estudo dos filhos. Acaba sozinho com Totonhim partindo para São Paulo.

- Zé da Botica: farmacêutico do lugar, ajuda Totonhim no enterro de Nelo.

- Pedro Infante: amigo de infância de Nelo, arrepende-se de não ter feito as pazes com o amigo ainda vivo. Não se falavam por conta de uma surra que Nelo levou sozinho por uma travessura que ambos fizeram juntos por ideia de Pedro.

- Zé do Pistom: baiano, primo de Nelo que rouba sua mulher em São Paulo.

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Adega de Versos 82: Damião Metamorfose

 

Aparecido Raimundo de Souza (Demônios eternos)

Nota do blog: Devido a falha técnica, quando da publicação deste texto no dia 30 de maio, faltou o parágrafo inicial. Por esta razão, está sendo publicado novamente na íntegra.
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QUANDO EU ERA PEQUENO, TINHA UM MEDO terrível, que me pelava todo, da Cuca, que vovô João, dizia, a toda hora, viria me pegar, se eu fizesse alguma coisa errada, e me levaria dentro de um saco preto para um lugar distante. E eu fazia muita coisa errada, porque era criança e criança não tem o discernimento das pessoas adultas, de saber distinguir o que é certo e o que é errado, de diferenciar entre o feio e o ridículo, ou de separar o bem e o mal, como o joio do trigo. E fazendo coisas erradas, entrava na “bainha do facão”, uma espécie de protetor de couro duro onde vovô João guardava um facão enorme, usado para cortar cana na vendinha, onde comercializava pastéis, quibes, coxinhas e caldo de cana. Essa bainha de facão odiosa entrava em cena quando eu o tirava do sério. Se transformava, de repente, numa espécie de cinto que comia, sem dó nem piedade, por cima do lombo.

Lembro que vovó Marta acordava muito cedo para fritar uma porção de salgados (já preparados na véspera) para, às sete horas em ponto, a pequena portinha de ferro estar escancarada ao público e vovô João aumentar o volume dos seus trocados nos bolsos.

Morávamos em frente a um grupo escolar, onde, aliás, eu também estudava, na parte da tarde. Na hora do recreio, o velho Airão abria a porta de madeira. Um bando de meninos e meninas, entre afoitos e alegres, corria a atravessar a rua movimentada para pegar um lugarzinho melhor na vendinha de meus avós. A maioria da garotada ficava do lado de fora comendo, sentada na calçada, porque não cabia todo mundo lá dentro. À noite, na hora que fechavam, os dois velhinhos faziam a festa, e antes de ser servido o jantar, ficavam num canto do quarto contando um amontoado de moedinhas. Depois, separavam cada uma pelo seu valor correspondente e depositavam em pequenas latas de leite em pó. Só, então, depois de cumprido esse ritual, os dois se separavam.

Vovô ia esconder o dinheiro atrás de uma velha estante que havia no quarto do casal, e vovó Marta seguia para a cozinha para preparar o jantar. Geralmente, a última refeição se constituía numa suculenta panela de sopa com os mais variados tipos de legumes. Mas a tal da Cuca, meu Deus, essa praga povoava meus dias de manhã à noite. Seguia meu rastro pelos corredores, se fazia presente na sala de aula, me vigiava pelas esquinas e estava sempre por perto, prestes a dar o bote e me matar. O Orlando, um amiguinho meu, que estudava na sala ao lado, era paralítico, se movimentava com a ajuda de dois paus de arrimo e, praticamente, todos os dias, quando tocava a campainha para o intervalo, costumávamos trocar o lanche das nossas lancheiras. Ele falava, com o rosto tomado pelo pavor, que na sua casa havia um bicho “danado de medonho”, que seus pais diziam que se não estudasse direito e repetisse o ano, ele seria entregue tão logo soubessem da notícia pelo boletim. Era o Saci Pererê, um menino mal encarado, filho do demônio, que andava pulando numa perna só e fumava um cachimbo comprido cheirando a enxofre. Com a Aninha, uma outra coleguinha de classe (que sentava ao meu lado direito) não acontecia diferente. Aninha morava com uma tia feia e chata, de cabelos avermelhados, duas casas abaixo da minha. Não tinha mãe, nem pai. Eles morreram quando atravessavam o leito da via férrea, num acidente horrível, envolvendo o carro de passeio, em que viajavam e o Litorânea, um trem expresso, de passageiros, que cruzava a cidade, tarde da noite, vindo da capital, com destino ao interior. O bicho da Aninha era o Boi da Cara Preta. A simples menção desse troço a deixava em pânico, aos prantos e em estado de choque.

Porém, o tempo passou. A infância cedeu lugar ao mundo adulto. Cresci, virei gente grande. Casei. Arranjei um monte de filhos. Hoje, olhando para eles, percebo que a mesma história dos tempos dos meus avós, das tias e dos pais dos meus amiguinhos de infância continuam se repetindo, indefinidamente. E com certeza, serão eternos, movidos pelo medo e pelo ressentimento que cada um carrega dentro de si. Serão imortais esses mal nascidos, alimentados pelas línguas dos nossos entes queridos e amados, que ainda conseguem ressuscitar e fazer desses demônios, bichos de aparências indescritíveis, com sete cabeças e mil braços, invencíveis e indestrutíveis como os fantasmas iracundos que estão dentro de nossos corações.

A Cuca não pega, o Boi da Cara Preta não assusta, nem leva ninguém para lugar algum. Tampouco o Saci Pererê, e tantos mais…

Nada disso existe. Esses seres inexpressivos são figuras mitológicas, sem alma, frutos de mentes doentias que lhes davam vida e forma, movidos por uma imaginação tacanha. O nosso medo bobo, por eles todos, está bem aqui dentro do peito, escondido, inoculado, como uma vacina de horrores, pronto para entrar em cena a qualquer momento. Eu sou a Cuca, o Orlando o Boi da Cara Preta, a Aninha o Saci, ou vice-versa. Nós próprios criamos um receio que não existe e vivemos com ele, como se fosse uma doença incurável, para o resto de nossas vidas. A Cuca, definitivamente não estará, jamais, espreitando quem quer que seja, no final do corredor, nem o Saci Pererê entrará por uma janela que ficou aberta, como igualmente o Boi da Cara Preta não correrá, desembestado, em volta da casa, intencionado em levar, com ele, preso aos chifres, uma menininha linda que não quis dormir de luz apagada. A escuridão sombria é o pavor medonho do nosso quarto.

Somos nós mesmos, idiotas petrificados, refletidos no espelho do nosso terror. Como a luz benigna que se acende, também vem de dentro de nós e se espalha como o sol bonito lá fora, por todo o infinito que o Criador nos deu de presente. Esses demônios têm a vida que lhes damos e respiram o ar que colocamos em suas narinas. Como fazia vovô João. Por isso, essas criaturas se movimentam, segundo nossas vontades. Esses bichos-papões que andam, à solta, pelos becos e guetos de nosso dia a dia, a amedrontar, hoje, nossos filhos, e amanhã, e certamente depois, tirarão o sossego e o fôlego de nossos netos e bisnetos, estão e estarão vivos dentro de cada um que os queira alimentar. Estão e estarão presentes em nosso caminho, como aquela gigantesca árvore do mal, fazendo uma sombra escura cair, pesada, por sobre nosso futuro. Precisamos, pois, cortá-la, para que não tenha mais vida plena. Arrancar, de uma vez, a raiz maligna que nasce do centro da nossa alma e brota, como se tivesse mil tendões. Precisamos exorcizar esses demônios, banalizar a barbárie, de maneira que só restem deles, uma lembrança longínqua, esquecida, apagada, atenuada para sempre, num canto ermo da nossa memória.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. A outra perna do saci. SP: Ed. Sucesso, 2009. E-book.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) – 24


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SIMPLICIDADE
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A cidadania poderia ser melhor alcançada com a simplicidade. Ao se contentar com o essencial, não estaríamos sujeitos à ambição e à busca alucinada por bens materiais e, portanto, a riqueza poderia ser melhor distribuída.

Quem neste mundo se empenha
em buscar serenidade,
toda a vaidade desdenha
e abraça a simplicidade.
Oscar Baptista Guerra
São João Nepomuceno, 1873 – 1951, Cambuci/RJ

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Numa existência vazia,
quanta gente convencida
despreza a sabedoria
das coisas simples da vida!
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG

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Por nada tenho ambição,
com riqueza não me iludo;
pela só contemplação
eu tenho a posse de tudo.
Bento Rabelo
Natal/RN, 1915 – 1995

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Nunca desejei riqueza,
nem poderio e nem glória,
pois prefiro a singeleza
desta vida transitória.
Adolfo Figueiredo
RN

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Não sigas o mundo louco,
ouve o bom senso que diz:
– Quem se contenta com pouco
nunca se sente infeliz!
Ivo dos Santos Castro
Alberto Torres/RJ, 1917 – ???, Rio de Janeiro/RJ

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Minha camisa velhinha,
lavada à flor de melão,
tira-me o peso da vida,
faz-me leve o coração.
Adelmar Tavares
Recife/PE, 1888 – 1963, Rio de Janeiro/RJ

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Pela ambição desmedida
fiz da vida uma procela,
até descobrir que a vida,
quanto mais simples, mais bela!
Maria Madalena Ferreira
Magé/RJ

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Nem sempre muita riqueza
a felicidade traz,
pois é feliz, com certeza,
quem vive um mundo de paz.
Murilo Bartolomeu
PE

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TERCEIRA IDADE
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Os velhos morrem porque já não são amados [Montherlant).

Uma das formas de se apreender se um povo exercita de fato a cidadania, é verificando como este povo trata o velho, que se convencionou chamar de terceira idade. Pensamos que este tema ainda é tratado com ambiguidade. Por um lado, há os que não têm o menor respeito pelo idoso, por outro, há os que exageram, tratando os velhos de uma maneira piegas.

Nosso amor pela pessoa velha não deve ser uma opressão, uma tirania a inventar cuidados chocantes, temores que machucam... Libertemos os velhos de nossa fatigante bondade (Paulo Mendes Campos].


Trate o velho com respeito;
dê-lhe o amor que possa dar.
Mas não lhe roube o direito
de a si mesmo governar!
A. A. de Assis
Maringá/PR

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Para o trovador, a velhice é constantemente associada à saudade:

Sempre que a praça atravesso
curvada ao peso da idade,
por onde passo eu tropeço
num canteiro de saudade...
Ercy Maria Marques
Bauru/SP

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Curvada ao peso da idade,
a vovó, serena e bela,
distrai o tempo e a saudade
entre o novelo e a novela.
A. A. de Assis
Maringá/PR

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Os anos trazem cansaços,
nossa vida é sempre assim,
e a saudade segue os passos
da velhice até o fim.
José Lucas de Barros
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

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Outras vezes, a velhice é também associada à tristeza e morte dos sonhos:

Vai findando a mocidade
e, nos meus dias tristonhos,
em surdina, uma saudade
chora a morte dos meus sonhos...
Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

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Depois de muitas andanças,
cansado de tanta lida,
hoje vivo de lembranças,
juntando os cacos da vida...
Raimundo Andrade de Paiva
Sobral/CE

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Mas os sonhos não envelhecem, ou não deveriam envelhecer. Por mais que se tornem difíceis de serem realizados, não devemos abandoná-los.

Um sonho de juventude
não morre nunca, eu suspeito,
pois me assusta a inquietude
que ainda carrego ao peito.
Gonzaga da Silva
Natal/RN

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Beirando a terceira idade
me aproximando do fim...
Vejo em grande atividade
a criança que há em mim.
Francisco Macedo
Natal/RN, 1948 – 2012

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Não importa a face externa
do corpo que envelheceu:
juventude é sempre eterna
no sonho que não morreu.
Antônio Bispo dos Santos
Niterói/RJ

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Se a mocidade se afasta,
não julgue a vida tristonha.
– A ação do tempo não gasta
o coração de quem ama!
Aparício Fernandes
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

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Em outros momentos, a velhice é vista com mais naturalidade e até com certo entusiasmo:

Minhas netas, sempre rindo,
são meu alegre evangelho:
- musgo verde revestindo,
de esperança, um muro velho!
Lilinha Fernandes
Rio de Janeiro/RJ, 1891 – 1981

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Nas sociedades em que a preocupação com a produção de bens materiais não é um fim em si mesmo, o velho é visto como um ser que acumulou experiência e sabedoria e, portanto, tratado com mais respeito e dignidade. É o que está expresso nestas sábias trovas:

Quanto mais a idade aumenta
e a ilusão se distancia,
a gente mais se alimenta
do pão da sabedoria.
Ercy Maria Marques
Bauru/SP

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O tempo tira a beleza,
rouba da gente a vaidade,
o tempo dá-nos firmeza,
sabedoria e bondade.
Nair Starling
Santa Luzia/MG, 1909 – 2004


Velhice não é demência
nem é vã filosofia;
é fonte de experiência
que nos traz sabedoria.
Hélio Pedro Souza
Natal/RN


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.

Contos e Lendas do Mundo (Inglaterra: O gaiteiro de Franchville)

Franchville é uma pequena cidade estacionada no tempo, como todos devem saber, na costa de Solent. Apesar de ela ser tranquila atualmente, já foi muito barulhenta, e quem fazia barulho eram os ratos. O lugar estava infestado de ratos que não valia a pena morar ali. Não existia celeiro, milho empilhado, armazém ou armário de cozinha onde eles não conseguissem entrar. Faziam furos nos queijos e esvaziavam barris de açúcar. Nem hidromel, nem cerveja nos tonéis escapavam da fome deles. Faziam buraco no alto do tonel, um rato enfiava o rabo comprido, e quando tirava o rabo dali ia passando para os amigos e primos, cada um chupando seu gole.

Tudo estaria bem se só estivessem procurando por comida, mas eles guinchavam, chiavam e corriam tanto que as pessoas não conseguiam ouvir o som da própria voz ou dormir à noite, sem falar que as mães precisavam ficar alertas e vigiar os berços dos bebês ou arriscar ver uma ratazana horrorosa correndo sobre o rosto do pobrezinho e fazendo sabe-se lá que maldades.

Mas será que a boa gente da cidade não tinha gatos? Sim, tinham, e a luta era grande, mas no final como os ratos eram em maior número, os bichanos sempre perdiam a briga.

Veneno? Claro que envenenaram muitos ratos, mas a praga continuou.

Exterminadores de ratos?! Não havia nenhum de John O´Groats a Land´s End que não tivesse tentado a sorte. Mas fosse lá o que fizessem, gatos, veneno, cães ou ratoeiras, cada vez parecia haver mais ratos, e a cada dia um novo rato movia o rabo e erguia os bigodes.

O prefeito e o conselho da cidade já não aguentavam mais. Certo dia, quando estavam todos sentados na prefeitura tentando pensar sobre o problema e maldizendo sua sorte, quem entrou ali foi o delegado.

– Por favor, honrados senhores, – disse ele – chegou à cidade um sujeito muito esquisito. Não sei bem o que fazer com ele.

– Mande-o entrar! – ordenou o prefeito, e assim foi feito.

Era mesmo um sujeito esquisito. Não havia cor do arco-íris que faltasse nas suas roupas, era
alto e magro com olhar penetrante.

– Sou um bom gaiteiro. – começou a dizer. – Digam-me, quanto estão dispostos a me pagar para que eu os livre dos ratos em Franchville?

Eles tinham muito medo dos ratos, mas não queriam gastar seu dinheiro e tentaram pechinchar. Mas o gaiteiro não era de ouvir bobagens, e no final prometeram pagar-lhe cinquenta libras (que era muito dinheiro naquela época) assim que não houvesse mais nenhum rato guinchando ou correndo por Franchville.

O gaiteiro saiu da prefeitura e levou a gaita aos lábios, soltando um som agudo que ecoou nas ruas e casas. E a cada nota que saía da gaita, a visão era estranha, porque de cada buraco iam saindo os ratos aos tropeções. Não havia rato velho ou jovem demais, muito alto ou muito baixo que não se aglomerasse junto ao gaiteiro, erguendo os pés e o nariz, e o seguisse pelas ruas.

O gaiteiro se preocupava com os ratinhos que mal sabiam andar, por isso parava de vez em quando e fazia mais um floreio na gaita só para lhes dar tempo de acompanhar os mais velhos e mais fortes na multidão.

Subiu a Rua de Prata e desceu a Rua de Ouro, e ao final dessa rua havia o porto, com a grande costa de Solent adiante. E, enquanto ele caminhava devagar e com seriedade, as pessoas da cidade chegavam às portas e janelas, mandando bênçãos.

Muitos ratos se aproximavam dele. Ao chegar às margens da água, o gaiteiro entrou em um barco e, enquanto avançava nas águas profundas sem parar de tocar a gaita, todos os ratos o
seguiram, salpicando água a torto e a direito, movendo os rabos com satisfação. O gaiteiro continuava a tocar sua gaita sem parar até que a maré desceu, e cada um dos ratos foi se afundando mais e mais no lodo pegajoso do porto e por fim todos morreram.

A maré voltou a subir, o gaiteiro foi para terra firme, e nenhum rato o seguiu. A essa altura os moradores da cidade deveriam estar atirando seus chapéus para o alto, gritando urras, parando para olhar os buracos vazios dos ratos e fazendo os sinos da igreja repicar, mas quando o gaiteiro pisou em terra firme e já não se ouvia nenhum guincho, o prefeito, o conselho e quase todos os moradores da cidade começaram a resmungar e balançar a cabeça.

Isso porque o baú com o dinheiro da cidade infelizmente estava vazio, e de onde tirariam as cinquenta libras prometidas? Além do mais, fora um trabalho bem simples! O gaiteiro só precisara entrar em um barco e tocar sua gaita! Se alguém tivesse pensado nisso, o próprio prefeito poderia ter feito o serviço.

Então ele continuou a resmungar e por fim disse:

– Venha, meu bom homem. Percebe como somos pobres. Não podemos pagar-lhe cinquenta libras. Você pode aceitar apenas vinte? No final das contas será um bom pagamento pelo pouco trabalho que teve.

– Negociei meu trabalho por cinquenta libras, – disse o gaiteiro secamente – e se fosse você pagaria logo. Sabe que posso tocar muitos tons diferentes na gaita como muita gente descobriu a duras penas.

– Está nos ameaçando, seu vagabundo? – gritou o prefeito ao mesmo tempo em que piscava um olho para o conselho.

– Os ratos morreram todos afogados. – continuou em voz mais baixa.

– Pode nos ameaçar quanto quiser, meu bom homem.

E assim dizendo, deu-lhe as costas.

– Muito bem! – disse o gaiteiro, sorrindo tranquilamente. E colocou os lábios na gaita de novo, mas dessa vez não saíram dela sons agudos como se fossem guinchos, arranhões e dentes roendo; dessa vez eram sons alegres e harmoniosos, como risadas felizes em meio a brincadeiras, e enquanto ele caminhava pelas ruas, os mais velhos debochavam, mas todas as crianças foram saindo das salas de aula, dos quartos de brinquedo, dos berçários e locais de trabalho com enorme alegria e entusiasmo, gritando e seguindo o chamado do gaiteiro.

Dançando, rindo de mãos dadas e com pés que tropeçavam, a alegre multidão subiu a Rua de Ouro e desceu a Rua de Prata, e além ficava a floresta verdejante e fresca cheia de antigos carvalhos e faias por todos os lados. Por entre os carvalhos era possível ver de relance o  casaco multicolorido do gaiteiro e ouvir as risadas das crianças que iam desaparecendo aos poucos enquanto adentravam na mata onde o homem estranho caminhava, e elas o seguiam.

O tempo todo os mais velhos observavam e esperavam. Agora já não zombavam. E, por mais que observassem e esperassem, nunca mais puseram os olhos no gaiteiro com seu paletó multicolorido, o coração deles não se alegrara com a canção e a dança das crianças que iam desaparecendo em meio aos velhos carvalhos da floresta para nunca mais voltar.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Isabel Furini (27) A Rosa e o Vaga-Lume

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 62, 63 e 64


A BAILARINA

A profissão de bufarinheiro está regulamentada; contudo, ninguém mais a exerce, por falta de bufarinhas. Passaram a vender sorvetes e sucos de fruta, e são conhecidos como ambulantes.

Conheci o último bufarinheiro de verdade, e comprei dele um espelhinho que tinha no lado oposto uma bailarina nua. Que mulher! Sorria para mim como prometendo coisas, mas eu era pequeno, e não sabia que coisas fossem. Perturbava-me.

Um dia quebrei o espelho, mas a bailarina ficou intacta. Só que não sorria mais para mim. Era um cromo como outro qualquer. Procurei o bufarinheiro, que não estava mais na cidade, e provavelmente teria mudado de profissão. Até hoje não sei qual era o mágico: se o bufarinheiro, se o espelho.
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A BELEZA TOTAL

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços.

A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa.

O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito.

Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um dia cerrou os olhos para sempre. Sua beleza saiu do corpo e ficou pairando, imortal. O corpo já então enfezado de Gertrudes foi recolhido ao jazigo, e a beleza de Gertrudes continuou cintilando no salão fechado a sete chaves.
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ABOTOADURAS

O maior fabricante de abotoaduras de punho fechou a indústria depois de convencer-se de que é infinitamente reduzido o número de camisas de manga comprida, à disposição da humanidade. E, mais, que os exemplares deste gênero, ainda existentes, são providos de botões, dispensando abotoaduras.

— Trabalhei a vida inteira no setor — lastimava-se — e almejava legar a meus filhos a tradição das abotoaduras de punho, como requinte terminal de uma camisa digna desse nome. Os fatos ergueram-se contra mim. Não posso mais produzir abotoaduras de punho para camisas sem punho ou de punho abastardado por míseros botões de plástico.

Concluiu que é o fim da civilização, e ia enforcar-se numa camisa esporte, estampada, quando esta, movida por vento súbito, saiu pelos ares, qual bandeira solta. E era tão bonito o esvoaçar do pano bigarreado, tão graciosas as evoluções, que o homem resolveu desistir da morte e aplicar sua fortuna em uma indústria colossal de camisas de manga curta.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 17

nomes a menos


Nome mais nome igual a nome,
uns nomes menos, uns nomes mais.
Menos é mais ou menos,
nem todos os nomes são iguais.

Uma coisa é a coisa, par ou ímpar,
outra coisa é o nome, par e par,
retrato da coisa quando límpida,
coisa que as coisas deixam ao passar.

Nome de bicho, nome de mês, nome de estrela,
nome dos meus amores, nomes animais,
a soma de todos os nomes,
nunca vai dar uma coisa, nunca mais.

Cidades passam. Só os nomes vão ficar.
Que coisa dói dentro do nome
que não tem nome que conte
nem coisa pra se contar?
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proema

Não há verso,
tudo é prosa,
passos de luz
num espelho,
verso, ilusão
de ótica,
verde,
o sinal vermelho.

Coisa
feita de brisa,
de mágoa
e de calmaria,
dentro
de um tal poema,
qual poesia
pousaria?
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Eu, hoje, acordei mais cedo
e, azul, tive uma ideia clara.
Só existe um segredo.
Tudo está na cara.
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o que quer dizer

para Haroldo de Campos,
translator maximus


O que quer dizer, diz.
Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.
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um metro de grito
(máquinas líquidas)


Leiam-se índices,
mil olhos de lince,
entre meus filmes,
leonardos da vinci.
Abri-vos, arcas, arquivos,
súmulas de equívocos,
fechados,
para que servem os livros?

Livros de vidro,
discos, issos, aquilos,
coisas que eu vendo a metro,
eles me compram aos quilos.
Líquidas lâminas,
linhas paralelas,
quanto me dão
por minhas ideias?
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sorte no jogo
azar no amor
de que me serve
sorte no amor
se o amor é um jogo
e o jogo não é meu forte,
meu amor?
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Carrego o peso da lua,
Três paixões mal curadas,
Um saara de páginas,
Essa infinita madrugada.

Viver de noite
Me fez senhor do fogo.
A vocês, eu deixo o sono.
O sonho, não.
Esse, eu mesmo carrego.
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volta em aberto

Ambígua volta
em torno da ambígua ida,
quantas ambiguidades
se pode cometer na vida?
Quem parte leva um jeito
de quem traz a alma torta.
Quem bate mais na porta?
Quem parte ou quem torna?
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o hóspede despercebido

Deixei alguém nesta sala
que muito se distinguia
&de alguém que ninguém se chamava,
quando eu desaparecia.
Comigo se assemelhava,
mas só na superfície.
Bem lá no fundo, eu, palavra,
não passava de um pastiche.
Uns restos, uns traços, um dia,
meus tios, minhas mães e meus pais
me chamarem de volta pra dentro,
eu ainda não volte jamais.
Mas ali, logo ali, nesse espaço,
lá se vai, exemplo de mim,
algo, alguém, mil pedaços,
meio início, meio a meio, sem fim.

Fonte:
Paulo Leminiski. Distraídos venceremos.  Publicado em 1987.

terça-feira, 31 de maio de 2022

Versejando 113

 

Milton S. Souza (A menina da praia)

Ela nasceu em Tramandaí e passou a infância na beira da praia, ajudando o pai nas pescarias, no inverno, e trabalhando com a mãe no quiosque de venda de lanches, quando a praia ficava lotada no verão. Gostava de estudar e carregava dentro do seu coração o sonho de ser médica. Também adorava dançar. E foi exatamente nos bailes caseiros que ela começou a notar que os coleguinhas preferiam as outras meninas. Ela sempre ficava “esquentando o banco” por um bom tempo. O apelido de “gordinha” serviu para deixar a garota irritada. Mas serviu também para uma decisão: precisava emagrecer de qualquer maneira, pois, aos 13 anos de idade, até parecia uma daquelas baleias que apareciam no meio do mar. Precisava mudar.

Uma coleguinha receitou um “chá milagroso”, mistura de diversas ervas conhecidas com uma outra erva, mais forte, chamada cofrei. Ficou por quase um ano tomando aquele chá (escondido dos pais, é claro). E começou mesmo a emagrecer rapidamente. Mas junto com a magreza surgiu uma fraqueza nas pernas. Em pouco tempo já nem conseguia caminhar. Apavorados, sem dinheiro e sem cobertura de um plano de saúde, os pais procuraram socorro em Porto Alegre. Após perambularem por vários hospitais, serem atendidos por diversos médicos, os dois escutaram o diagnóstico terrível: a filha estava com câncer na espinha. Não voltaria a caminhar e teria pouco tempo de vida...

O casal sentiu o chão se abrir. Ainda ficaram por vários dias em Porto Alegre, chegando a dormir em bancos de praça por causa da falta de dinheiro. Quando os guardas deixavam, dormiam no saguão do hospital. Passavam fome e frio. Mas estavam pertinho da menina, que continuava emagrecendo. Na primeira melhora, com alta hospitalar, levaram a filha de volta para Tramandaí. Se não existia possibilidade de cura, ficariam mais perto dos vizinhos e dos amigos. Na praia a vida era mais calma e os “pilas” não sumiam tão rapidamente do bolso. E a garota começou a se adaptar, numa cadeira de rodas, iniciando uma nova vida. Seus olhos castanhos brilhavam quando falava em melhorar, voltar a estudar e cursar Medicina. Sonhava também participar dos bailes na vizinhança. Mas as suas pernas não queriam mais dançar...

Por cerca de um ano, enfrentou aquela agonia. Era muito teimosa: não gostava de ficar parada em casa. Muitas vezes, quando a mãe retornava do trabalho, ela estava lavando a casa ou arrumando a cozinha, se arrastando pelo chão. Fazia de tudo para não se entregar para a doença (não sabia que estava condenada). E até começou a planejar a sua festa de 15 anos. Queria um vestido branco, bem comprido, que tapasse a cadeira de rodas. Queria que o pai entrasse com ela no salão, mesmo sabendo que não poderia dançar a valsa. Queria todos os seus amigos em volta, para cantar com eles, como fazia nas festinhas da escola...

Poucos dias antes do seu aniversário, foi ficando cada vez mais fraca. Quase nem saia da cama. Pouco conversava. Num sábado de sol, porém, acordou disposta e pediu para dar uma volta na beira da praia. Com a cadeira de rodas empurrada pela mãe, deixou o verde do mar invadir os seus olhos castanhos. Ficou por longo tempo olhando os navios atracados na plataforma da Petrobras. Espantou as gaivotas, atirando punhados de areia. Antes de voltar, deixou as ondas beijarem os seus pés, fazendo  as rodas da cadeira atolar na areia. Voltou para casa muito cansada, mas com um sorriso nos lábios. Foi a sua despedida do mundo que tanto adorava. Na hora de dormir, pediu para a colocarem o vestido branco (comprado para os 15 anos) em cima da cama. Depois de dar um “boa noite” para toda a família, descansou. Sua vida terminou antes do sol nascer novamente. Morreu dormindo, sem um gemido, sem uma queixa. Partiu para o infinito poucos dias antes da sua festa. Seus pais entenderam aquela partida: certamente ela resolvera realizar no céu o seu baile de debutante…