segunda-feira, 30 de maio de 2022

Nilto Maciel (A Grande Ave de Rapina)

Quase morri de espanto e medo, quando vi pela primeira vez a grande ave. Instintivamente deitei-me. Talvez por isso ela não deva ter visto a minha pessoa. Pousou lentamente, recolhendo as asas. Vagou a vista pela plantação e, a passos largos, dirigiu-se ao espantalho. Horrorizei-me: com duas bicadas violentas estraçalhou o boneco.

Parece um gavião, não fosse este tão pequeno. As pernas são de dois metros a mais. O bico figura tesoura de cortar galhos. Quando estende as asas lembra um avião.

Quase todo dia vejo o pássaro gigante. Surge de inopino (de repente), em voo rasante, comete uma rapina e foge. Às vezes pousa no lombo de uma vaca. Espeta as garras na barriga da presa e levanta vôo. No céu aquele gavião imenso e uma rês em gemidos de morte. Os animais menores ele os devora no próprio local da captura. Pousa, dá uma bicada na cabeça da vítima, e, em pouco tempo, não resta mais nada a mastigar.

Impotente, fui à cidade em busca de socorro. Alguns riram de mim. Aguentei calado as zombarias. Afinal, eles são autoridade. São aves de rapina, eu sou bichinho do mato. Disseram não existir ave maior no mundo que a águia. E em nossos ares não voam tais predadores. Sou um mentiroso. Nunca me haviam chamado assim. E, se eu não parasse de aterrorizar o povo com notícias falsas, um calabouço me esperava. Outros vieram em meu socorro: eu certamente me fizera louco. Nada de interrogatório e tortura. Bastava me internarem num manicômio. Com camisa-de-força, choque elétrico e outros tratamentos eu logo esqueceria as aves de rapina. Um senhor muito risonho sugeriu amarrarem-me pés e mãos e conduzirem-me ao campo onde tem aparecido o pássaro. Outro senhor me prometeu uns chifres. Assim eu semelharia um boi. Falaram ainda em espantalho. E gargalhavam: “com duas bicadas o gavião acaba esse espantalho”.

Depois da viagem nunca mais falei da grande ave de rapina. Se encontro um vaqueiro, fujo com medo de conversa. Vaca sumida, vaca comida.

E fico aqui sozinho, dia após dia, tremido de medo, miudinho, olho no gavião, que volta e meia retorna, espeta aqui e bica ali, devorador e insaciável.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

Nenhum comentário: