terça-feira, 10 de maio de 2022

Paulo Mendes Campos (A cesta)

Quando a cesta chegou, o dono não estava. Embevecida,  a  mulher recebeu o presente. Procurou logo o cartão, leu a dedicatória  destinada ao marido, uma frase ao mesmo tempo amável e respeitosa.

Quem seria? Que amigo seria aquele que estimava tanto  o  marido dela? Aquela cesta, sem dúvida nenhuma, mesmo a "uma olhada  de relance", custava um dinheirão. Como é que ela nunca tivera notícia daquele  nome?

Ricos presentes só as  pessoas  ricas  recebem.  Eles  eram  remediados, viviam de salários, sempre  inferiores  ao  custo  das  coisas.  Sim,  o marido, com o protesto dela, gostava de bons vinhos e boa mesa, mas isso com o sacrifício das verbas reservadas a outras utilidades.

De qualquer forma, aquela cesta monumental chegava  em  cima  da hora. E se fosse um engano? Não, felizmente o  nome  e  o  sobrenome  do marido estavam escritos com toda a clareza e o endereço estava certo.

Alvoroçada, examinou uma a uma as peças  envoltas  em  flores  e serpentinas de papel colorido. Garrafas  de  uísque  escocês,  champanha francês, conhaque,  vinhos  europeus,  patê,  licores,  caviar,  salmão, champignon, uma lata de caranguejos japoneses... Tudo do melhor. Mulher prudente, surrupiou umas garrafas e escondeu-as nas gavetas femininas do armário. Conhecia de sobra a generosidade do  marido:  à  vista  daquela cesta farta, iria convidar todo o mundo  para  um  devastador  banquete. Isto não tinha nem conversa, era  tão  certo  quanto  dois  e  dois  são quatro. Mas quem seria o amigo? Esperou o regresso do  marido,  morrendo de curiosidade.

E ei-lo que chega, ao cair da noite,  cansado,  sobraçando  duas garrafas de vinho espanhol, uma garrafa de uísque engarrafado no Brasil, um modesto  embrulho  de  salgadinhos.  Caiu  das nuvens ao deparar com a gigantesca cesta. Pálido de espanto,  não  tanto pelo valor material do presente (era um  sentimental),  mas  pelo  valor afetivo que o mesmo significava, começou a ler o cartão que a mulher lhe estendia. Houve um longo  minuto  de  densa  expectativa,  quando, terminada a leitura, ele enrugou a testa e  se  concentrou  no  esforço  de recordar. A mulher perguntava aflita:

- Quem é?

Mais  da  metade  da  esperança  dela  desabou  com  a  desolada resposta:

- Esta cesta não é para mim.

- Como assim? Você anda ultimamente precisando de fósforo.

- Não é minha.

- Mas olhe o endereço: é o nosso! O nome é o seu.

- O meu nome não é só meu.  Há  um  banqueiro  que  tem  o  nome igualzinho. Está na cara que isto é cesta pra banqueiro.

- Mas, o endereço?

- Deve ter sido procurado na lista telefônica.

Ela  não  queria,  nem  podia,  acreditar  na  possibilidade  do equívoco.

- Mas faça um esforço.

- Não conheço quem mandou a cesta.

- Talvez um amigo que você não vê há muito tempo.

- Não adianta.

- Você não teve um colega que era muito rico?

- O nome dele é completamente diferente. E ficou pobre!

- Pense um pouco mais, meu bem.

Novo esforço foi feito, mas a recordação não  veio.  Ela  apelou para a hipótese de um admirador. Afinal, ele  era  um  grande  escritor, autor de um romance que fizera sucesso e de um livro para crianças, que comovera leitores grandes e pequenos.

- Um fã, quem sabe é um fã?

- Mulher, deixa de bobagens... Que fã coisa nenhuma!

- Pode  ser sim! Você é muito querido pelos leitores.

A ideia o afagou. Bem, era possível. Mas, em  hipótese  nenhuma, ficaria com aquela cesta, caso não estivesse absolutamente certo de  que o presente lhe pertencia.

- Sou um homem de bem!

Era um homem de bem. Pegou o catálogo, procurou  o  telefone  do homônimo banqueiro, falou diretamente com ele depois de  alguma  demora: não é muito fácil um desconhecido falar a um banqueiro.

Aí, a mulher ouviu com os olhos arregalados e marejados:

- Pode mandar buscar a  cesta  imediatamente.  O  senhor  queira desculpar se minha mulher desarrumou um pouco a decoração. Mas não falta nada.

A mulher foi lá  dentro,  quase  chorando,  e  voltou  com  umas garrafas nas mãos.

- Eu já tinha escondido estas.

- Você é de morte. Coloque as garrafas na cesta.

Vinte minutos depois, um carro enorme parava à porta, subindo um motorista de uniforme. A cesta engalanada cruzou a rua e sumiu dentro do automóvel. Ele sorria, filosoficamente. Dos olhos  da  mulher  já  agora corriam lágrimas francas. Quando o carro  desapareceu  na  esquina,  ele passou o braço em torno do pescoço da mulher:

- Que papelão, meu bem! Você ficou  olhando  para  aquela  cesta como se estivesse assistindo à saída de meu enterro.

E ela, passando um lenço nos olhos:

- Às vezes é duro ser casada com um homem de bem.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. Supermercado. RJ: Tecnoprint, 1976.

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