quinta-feira, 5 de maio de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Pelo interfone)

O homem chega na portaria do prédio com uma porção de sacolas e embrulhos nas mãos. A poder de muito sacrifício consegue dar um jeitinho de alcançar o interfone. Toca. Uma voz feminina atende instantaneamente:

— Oi, quem é?

— Sou eu Rúbia, o Troncoso.

— Oi, cunhado, vou abrir.

Uma combinação de sons se ouve:

— Abriu?

— Não.

O pi, pi, pi, pi se repete:

— Abriu?

— Não.

Uma... Duas...

— Abriu?

— Não.

...Três... Quatro...

— Abriu?

— Não.

...Cinco... Seis...

— Abriu?

— Não.

— Escuta Rúbia. Vai ver você está acionando a tecla errada.

— Claro que não.

— Cadê o Popó?

— Saiu.

— Você não avisou a ele que eu viria?

— Por certo. Mas você conhece seu irmão. Disse pra mim que ia ao supermercado comprar cerveja...

— Tudo bem, cunhada. Aperta essa encrenca mais uma vez.

— Vamos lá. Abriu?

— Não.

— E agora, abriu?

— Não.

Rúbia se enfurece.

— Que droga! Abriu?

— Não.

— Troncoso, faz o seguinte. Chama novamente.

— OK.

O aparelho é imediatamente desligado. Troncoso repete a operação teclando o número do apartamento desejado. Desta vez um homem atende em meio a uma chiadeira medonha:

— Fala meu.

— Sou eu, mano. A Rúbia acabou de me dizer que você não estava em casa.

— O que? Quem?

— Rúbia...

— Tava no banheiro. Sobe ai.

Um apito estridente se ouve seguido do mecanismo liberando a porta.

— Abriu?

— Não.

— Abriu?

— Não.

— Acho que esta droga emperrou. Abriu?

— Não.

— Abriu?

— Não. Popó, Popó, me escuta...

O dialogo de repente se transforma numa balbúrdia. Ambos desligam ao mesmo tempo. Troncoso espera alguns minutos. Consegue comunicação depois da quinta tentativa. É a cunhada, de novo:

— Oi, Rúbia, até que enfim.

— Quem é?

— Quem mais poderia ser? Sou eu, o Troncoso.

Abre logo essa droga de porta.

— Ta legal, Não precisa se irritar. Como você desligou, pensei que o portão estivesse aberto e você a caminho do elevador.

— Como vê, ainda aqui tentando entrar no prédio.

— Abriu?

— Não.

— Abriu?

— Não. Rúbia, não é melhor você descer?

— Cunhado, tô praticamente pelada.

— Imagino. Por isso mentiu ao falar que Popó tinha ido ao supermercado.

— Mas ele saiu, de verdade. Juro. Estou sozinha.

— Rubinha, pelo amor de Deus, agora não. Eu vim trazer as compras pro churrasco de vocês numa boa. Manda o Popó descer ou faz isso você mesma... Tenho um amontoado de encrencas me esperando lá em casa.

— Troncoso, eu já te falei. Popó não está aqui.

— Tudo bem. O que é que eu faço com as sacolas?

— Por tudo quanto é sagrado, Troncoso. Suba.

— Então abre.

O barulhinho da geringonça quebra o marasmo da conversação: — Abriu?

— Não.

—Abriu?

— Não.

Rúbia desliga. Troncoso insiste. Um sujeito atende.

— Fala.

— Popó abre logo essa porcaria.

Estranhamente o som desagradável de antes volta a se manifestar entre os dois interlocutores:

— Meu amigo, aqui não tem nenhum Popó.

— Ta. Então me passa a Rúbia.

— Que Rúbia, meu chapa, que Rúbia? Pra qual apartamento discou?

— Cara, a hora que eu te pegar na minha frente você vai se arrepender de ter nascido. Abre essa droga.

Embora a desordem persista, os dois homens continuam a dialogar. Se é que se poderia chamar o papo dos dois de diálogo:

— Escuta aqui, palhaço. Vou descer e quebrar a tua cara.

— Eu é que vou subir e rebentar com a sua. Depois que tiver terminado, nem mamãe vai lhe reconhecer. E quer saber, Popó: Volta lá pra sua cama e continua com a farra.

— Que cama, que farra, seu filho de uma vagabunda?

O interfone é desligado abruptamente. Troncoso, pê da vida, resolve levar a sacanagem adiante. Se os dois queriam brincar e se divertir às suas custas, tudo bem. Entraria no clima, e, depois, no final, mandaria os dois para os quintos do inferno. Tocou, decidido:

— Oi, Troncoso?

— Não, é o chapeuzinho vermelho!

— Cara, você ainda está ai?

— Rúbia, me faz um favor?

— Claro. O que você quer?

— Vá pro inferno, sua vagabunda.

Rúbia, perplexa: — Troncoso, o que deu em você. Que bicho te mordeu?

— Antes que me esqueça. Sabe o que vou fazer com as compras de vocês? Jogarei no lixo aqui ao lado.

Um sujeito alto e magro, sem camisa, só de bermuda, tatuado dos pés a cabeça, pinta no hall de entrada.

Nas mãos do cidadão um revólver pronto para entrar em ação reluz sinistramente.

— Seu filho da mãe, você deve ser o tal do Troncoso que resolveu se dependurar no interfone do meu apartamento. Vou te mostrar quem vai sair lascado.

Troncoso não espera o rapaz acabar de descer o restante das escadas. Larga as sacolas ali mesmo na calçada, tropeça num cachorro, quase é atropelado por um carro que aparece do nada. Sem olhar para trás, bate em retirada a mil por hora.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Refúgio para cornos avariados. São Paulo, SP: Editora Sucesso, 2010.
Ebook enviado pelo autor.

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