Que frio e que negrume!
E eu ia andando no meio da treva, corajosa e firme, em busca daquela que me deu a vida, que me criou nos seus seios, que me enchia as faces de beijos e me vestia a alma de alegrias.
Eu estava agora faminta, mal vestida, mal consolada, cheia de mágoas, saudosa do seu afago quente e doce, da sua palavra cheirosa como o mel da abelha em tronco de especiaria.
E fui andando na treva, seguindo uns passos que eu ouvia, não sei de quem, não sei para onde.
Nem uma estrelinha orientadora; tudo era mudez; só aqueles passos diante de mim: tan, tan, tan, tan, como marteladas através de uma parede grossa!
E fui, sem medo, até que os passos pararam e uma porta se abriu sem rumor, larga e macia. Veio uma rajada; encostei-me ao umbral e divisei então, a uma luz frouxíssima, uns vultos mal definidos, quase apagados.
Perto de mim um homem, embuçado como um esquimó, tirou da cabeça um fardo e pousou-o no chão; depois, voltando-se, disse-me com uma voz soluçada como o vento na ramaria de um salgueiro:
– Por que vieste atrás de mim? Esta é a casa dos mortos. Vai-te embora! A estrada negra é proibida aos vivos; és a primeira que a percorre toda sem ter morrido...
Sombras esparsas iam tomando formas humanas e vinham curiosas, lentas, resvalando, debruçarem-se sobre o meu corpo, em atitude de espanto. Eu resistia ao pavor e sôfrega perscrutava tudo, em busca daquela que me deu a vida, que me enchia as faces de beijos, que me embalava com as suas palavras mais cheirosas que o mel das abelhas em tronco de especiaria.
– Quem procuras? perguntou o mesmo homem, cujos traços eu não percebia sob a projeção do capuz.
– Minha mãe.
O som da minha voz fez fugir em revoada todas aquelas figuras de névoa, como a badalada de um sino em torre coberta de passarinhos. Eu mesma tremi, estranhando a vibração das minhas palavras, tal a clareza e a vida da minha voz ecoando entre os fracos murmúrios das outras, de um tênue sopro de brisa. Então lá do fundo, do meio de um amontoado de novelos alvadios que se dissipavam aqui para se ajuntarem acolá, a minha mãe veio até mim, sorrindo, com o seu vestido caseiro, a sua bela carne rosada, gorda e fresca como nos tempos em que eu repousava no seu largo seio a minha cabeça sonhadora e febril, e ela me alisava os cabelos com as suas mãos formosíssimas.
Radiante, atirei-me para beijá-la; ela, porém, sempre tão pronta em receber os meus carinhos, paralisou-me com um gesto:
– Não me toques! Não me beijes! Todo o meu corpo se desfaria ao mais leve contato... Terias horror da minha carne e desmaiarias se os meus lábios se unissem aos teus. Para que vieste procurar-me? Foge, meu amor, o teu lugar é lá, na vida, na febre, na luz, no sofrimento. Vai sofrer. Saudades? tinhas saudades? Pobrezinha! Esquece; não há nada que valha o esquecimento. Eu nunca te apareceria, se não viesses procurar-me. Fizeste mal ao meu repouso, porque, vendo-te, eu não te posso apertar ao meu seio! E as tuas irmãs! E Ele?!
Eu chorava; e não perdia um só dos seus gestos. Lembro-me de que ela quis dar-me uma fruta, e que sorriu depois com amargura, vendo desfazer-se entre os seus dedos lívidos a fruta que me estendia.
– Até os mortos têm ilusões... eu esquecia-me... disse ela com a sua voz tão outra, apenas audível, como um murmúrio de vento muito ao longe...
Então eu vi, eu vi que todas aquelas sombras flutuantes cercavam o fardo que o homem de capuz pousara no chão; eram dois caixões com defuntos; em um ia uma virgem, no outro um homem... Ela era branca e fina, com umas madeixas negras sobre a túnica pálida e uma haste de nardos nas mãos postas em cruz. Ele era igualmente pálido, e moço, e belo, com a sua linda cabeça loira pousada em violetas.
A Morte, em pé, muito alta e muito esguia, diante dos dois caixões, lançava-lhes uma bênção vagarosa, larga, com dizeres que eu não entendia.
Minha mãe explicou-me:
– Só o amor perdura além da morte. Aquilo é a celebração de um noivado. Os dois corpos ficaram lá embaixo, intactos, rígidos, mas aqui as duas almas estarão sempre unidas; e se voltarem à terra voltarão juntas e para o mesmo laço. Serão eternamente presas uma à outra; almas felizes, raras! Vês? Quem não amou na vida não tem nem a doçura da saudade para amenizar-lhe a tristeza deste exílio. Repara para as virgens sem noivos; que ar de lamento que elas têm! Essas nunca voltarão à terra, porque da vida não trouxeram lembrança. Só quem amou traz para o mistério da morte um aroma de sonho. Tudo mais é poeira que o vento leva, e espalha, e não se torna a encontrar... Vai-te embora!
Os olhos de minha mãe tinham um brilho de lágrimas, e eu estendi-lhe os braços ansiosos, e logo o seu corpo se tornou imaterial, diáfano, como se de névoa fosse. Então o homem do capuz, cujas feições não vi, pegou-me pela mão e trouxe-me para fora, para a estrada, onde eu caminhei entre duas longas filas de ciprestes negros e de anêmonas roxas. Caminhei, caminhei, sem sentir o solo sob os passos cansados; e quando abri os olhos deste estranho sonho tinha o rosto coberto de lágrimas e as mãos em cruz sobre o coração.
Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.
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