segunda-feira, 16 de maio de 2022

Estante de Livros (Os Trabalhos de Persiles e Sigismunda, de Miguel de Cervantes)


 Os trabalhos de Persiles e Sigismunda é a última obra de Miguel de Cervantes, famoso autor de Dom Quixote. Publicada em 1617, um ano após a morte do autor, pertence ao subgênero do romance bizantino. Foi para Cervantes sua melhor obra, apesar de a crítica aceitar unicamente o Dom Quixote como sua obra magna.

Nela escreveu sua dedicatória ao Conde de Lemos em 19 de abril de 1616, quatro dias antes de falecer, onde se despede da vida citando esses versos: Puesto ya el pie en el estribo con ansias de la muerte, gran señor, esta te escribo.

Antecendentes

Cervantes pretendeu com este relato construir uma obra narrativa cujo gênero estivesse resguardado pela prática da literatura clássica, diferente de Dom Quixote, que era apenas uma paródia de um gênero medieval. Deste modo, partia de um modelo narrativo a que recorriam as preceptivas literárias neoaristotélicas renascentistas.

Queria com ele criar para a narrativa espanhola um modelo do romance grego de aventuras adaptado a um visão do mundo católica, que seguisse o exemplo da História de Leucipe e Crilofonte, de Aquiles Tácio ou Teágenes e Caricleia, de Heliodoro. Essa última se havia descoberto no Renascimento, publicado em 1534 e traduzido em seguida às línguas mais importantes da época (para o espanhol em 1554), constituindo-se imediatamente em um referente clássico do romance a ser imitado.

Sinopse

Narra-se um conjunto heterogêneo de peripécias que, como era habitual no chamado "romance bizantino" ou "helenístico", inclui aventuras e uma separação de jovens que se enamoram e acabam se encontrando numa anagnórise* ao final da obra. Nele, Periandro e Auristela (que só após o desenlace em matrimônio cristão do romance adotarão os nomes de Persiles e Sigismunda), dois príncipes nórdicos enamorados que se fazem passar por irmãos. Cruzando mares povoados de ilhas, do Norte da Europa até Lisboa, aventuram-se em peregrinação a Roma, seguindo por terra os caminhos do Sul. Dos trabalhos passados dão conta as muitas personagens principais e secundárias que os acompanham na sorte adversa e na fortuna.

A obra Filosofia antiga poética, tratado de preceitos literários de Alonso López (Madrid, 1596) que provavelmente influenciou a teoria cervantina do romance, considerou As Etiópicas (outro nome com que foi conhecida a história de Teágenes e Caricleia) como uma obra pertencente à épica antiga, que podia ser assimilada a outros autores de narrativas heroicas, como Homero e Virgílio, com a diferença de sua escritura em prosa. É a esse tipo de gênero literário que Cervantes empreendeu em Persiles como culminação à sua obra narrativa, pois se ajustava aos modelos teóricos de prestígio. Em teoria, o Quixote pertencia ao gênero baixo da literatura por seu caráter cômico, risível e paródico; o Persiles se ajustaria ao registro sublime dos preceitos neoaristotélicos, mas com um adendo, a respeito da literatura gentil ou pagã, sua assunção a uma espiritualidade cristã. Se o Quixote se concebe como um exemplo ex contrariis, o Persiles constituiria o exemplo a seguir, tentando superar os outro romances bizantinos espanhóis como o Clareo e Florisea (1552) de Alonso Núñez de Reinoso ou O peregrino em sua pátria (1604) de Lope de Vega. Cervantes, em prólogo a suas Novelas exemplares, já havia apontado que estava escrevendo o Persiles, livro que "se atreve a competir com Heliodoro". A última narração de Cervantes pretendia ser "a grande epopeia cristã em prosa, propósito que tem desorientado muitos leitores e provocada não menos desacertos críticos".

Edward C. Riley (1990) explica que as ideias sobre o livro de cavalarias ideal que o cônego de Toledo expõe no capítulo XLVII da primeira parte do Quixote podem cabalmente definir o caráter do Persiles. Cervantes estava persuadido de que sua última obra reabilitaria seu prestígio como narrador, perdido entre certos setores da crítica literária pelas insuficiências que mostrava o Quixote do ponto de vista da perspectiva erudita.
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*A anagnórise é um recurso narrativo que consiste no descobrimento por parte de uma personagem de dados essenciais de sua identidade, de entes queridos ou do entorno, ocultos para ele até então. A revelação altera a conduta da personagem e obriga-a a formar uma ideia mais exata de si mesma e do que a rodeia.
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Cervantes
O mais célebre dos escritores espanhóis, autor do imortal D. Quixote de la Mancha, Miguel de Cervantes nasceu em Alcalá de Henares (perto de Madrid) no dia 29 de setembro de 1547 e foi soldado antes de se tornar escritor. Tendo tomado parte na batalha de Lepanto (1571), onde perdeu o uso da mão esquerda, caiu, quando regressava à Espanha, em poder de piratas, que o retiveram por cinco anos. Alguns anos após ter retornado ao seu país, Cervantes passou a dedicar-se exclusivamente à literatura. Em 1584, escreveu a pastoral em verso Galatéia. Depois, conseguiu manter em cena cerca de vinte peças teatrais, entre elas A vida em Argel e Numancia. Em 1605, publicou a primeira parte de D. Quixote, do qual em pouco tempo foram vendidos trinta mil exemplares. Contudo, o autor só viria a concluir esta obra dez anos mais tarde. Cervantes deixou ainda, entre outros trabalhos, as Novelas exemplares (1612), uma coleção de contos que por si só já lhe daria direito a ocupar lugar de destaque nas letras; Viagem ao Parnaso (1614), revista dos poetas do tempo; Persiles e Sigismunda (1617), romance cheio de excentricidades, e diversas comédias, entre as quais se destacam O labirinto de amor, O valente espanhol e O juiz dos divórcios.

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