sábado, 6 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 285


Silmar Böhrer (Croniquinha) 3


Nas horas noitinhas serenas, vento batendo na soleira da porta, junto aos livros, vou a pensar nos periódicos rabiscos croniquinhas. E penso que não é preciso falar muito para dizer tudo.

Sinto-os plenos, completos, insuflando pensares, indagações, respostas.

Da mesma forma no cotidiano, tantas vezes nos excedemos em práticas, nos envolvendo em minúcias, apegados a burocracias que bem podem ser abolidas ou contornadas (os rios contornam as montanhas para seguir seu curso), e os efeitos serão os mesmos ou até melhores.

Surge à mente a frase do médico e músico chileno Cláudio Naranjo, quando indaga: "Quanta vida perdemos colocando na cabeça  coisas que não servem para nada"?

Ou que nada acrescentam, penso eu.

SEJAMOS RIOS.

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 2


desmontando o frevo

desmontando
o brinquedo
eu descobri
que o frevo
tem muito a ver
com certo
jeito mestiço de ser
um jeito misto
de querer
isto e aquilo
sem nunca estar tranquilo
com aquilo
nem com isto

de ser meio
e meio ser
sem deixar
de ser inteiro
e nem por isso
desistir
de ser completo
mistério

eu quero
ser o janeiro
a chegar
em fevereiro
fazendo o frevo
que eu quero
chegar na frente
em primeiro
****************************************

das coisas
que eu fiz a metro
todos saberão
quantos quilômetros
são
aquelas
em centímetros
sentimentos mínimos
ímpetos infinitos
não?
****************************************

Quem nasce com coração?
Coração tem que ser feito.
Já tenho uma porção
Me infernando o peito.

Com isso ninguém nasça.
Coração é coisa rara,
Coisa que a gente acha
E é melhor encher a cara.
****************************************

não sou o silêncio
que quer dizer palavras
ou bater palmas
pras performances do acaso

sou um rio de palavras
peço um minuto de silêncios
pausas valsas calmas penadas
e um pouco de esquecimento

apenas um e eu posso deixar o espaço
e estrelar este teatro
que se chama tempo
****************************************

nada tão comum
que não possa chamá-lo
meu

nada tão meu
que não possa dizê-lo
nosso

nada tão mole
que não possa dizê-lo
osso

nada tão duro
que não possa dizer
posso
****************************************

Bom dia, poetas velhos.
Me deixem na boca
o gosto de versos
mais fortes que não farei.

Dia vai vir que os saiba
tão bem que vos cite
como quem tê-los
um tanto feito também,
acredite.
****************************************

enxuga aí

vê se enxerga

essa lágrima
eu deixei cair

examina

examina bem

vê se não é
água da pedra
ouro da mina
essa gota dágua

minha
obra-prima
****************************************

dia
ao primo pássaro

 

foi você
que piou pintou
ontem
pouco antes
do sol nascer?

ou foi
talvez
um irmão tia irmã
uma voz

tão
longe
que hoje
até parece amanhã?
****************************************

a árvore é um poema
não está ali
para que valha a pena
está lá
ao vento porque trema
ao sol porque crema
à lua porque diadema
está apenas

Fonte:
Paulo Leminski. caprichos & relaxos (saques, piques, toques & baques)

Fernando Sabino (Albertina)


Chamava-se Albertina, mas era a  própria  Nega  Fulô:  pretinha, retorcida, encabulada. No primeiro dia me perguntou o que eu queria para o jantar:

- Qualquer coisa - respondi.

Lançou-me um olhar patético e desencorajado. Resolvi dar-lhe algumas instruções: mostrei-lhe as coisas na cozinha, dei-lhe dinheiro para as compras, pedi que tomasse nota de tudo que gastasse.

- Você sabe escrever?

- Sei, sim senhor. - balbuciou ela.

- Veja se tem um lápis aí na gaveta.

- Não tem não, senhor.

- Como não tem? Pus um lápis aí agora mesmo!

Ela abaixou a cabeça, levou um dedo à boca, ficou pensando.

- O que é lapisai?- perguntou finalmente.

Resolvi que já era tarde para esperar que ela fizesse o jantar. Comeria fora naquela noite.

- Amanhã você começa - concluí. - Hoje não precisa fazer nada.

Então ela se trancou no quarto e só apareceu no dia seguinte. No dia seguinte não havia água nem para lavar o rosto.

- O homem lá da porta veio aqui avisar que ia faltar - disse ela, olhando-me interrogativamente.

- Por que você não encheu a banheira, as panelas, tudo isso aí?

- Era para encher?

- Era.

- Uê.

Não houve café, nem almoço e nem jantar. Saí para comer qualquer coisa, depois de lavar-me com água mineral. Antes chamei Albertina, ela veio lá de sua toca espreguiçando:

- Eu tava dormindo...- e deu uma risadinha.

- Escute uma coisa, preste bem atenção - preveni: Eles abrem a água às sete da manhã, às  sete e meia tornam a fechar. Você fica atenta e aproveita para encher a banheira, enche tudo, para não acontecer o que aconteceu hoje.

Ela me olhou espantada:

- O que aconteceu hoje?

Era mesmo de encher. Quando cheguei já  passava  de  meia-noite, ouvi barulho na área.

- É você, Albertina?

- É sim senhor...

- Por que você não vai dormir?

- Vou encher a banheira...

- A esta hora?!

- Quantas horas?

- Uma da manhã.

- Só?- espantou-se ela.- Está custando a pas- ...... - O senhor quer que eu arrume seu quarto?

- Quero.

-Tá.

Quarto arrumado, Albertina se detém no meio da sala, vira o rosto para o outro lado, toda encabulada, quando fala comigo:

- Posso varrer a sala?

- Pode.

-Tá.

Antes que ela vá buscar a vassoura, chamo-a:

- Albertina!

Ela espera, assim de costas, o dedo correndo devagar no friso da porta.

- Não seria melhor você primeiro fazer café?

– Tá.

Depois era o telefone:

- Telefonou um moço aí dizendo que é para o senhor ir num lugar aí buscar não sei o quê.

- Como é o nome?

- Um nome esquisito...

- Quando telefonarem você pede o nome.

– Tá.

- Albertina!

- Senhor?

- Hoje vai haver almoço?

- O senhor quer?

- Se for possível.

– Tá.

Fazia o almoço. No primeiro dia lhe sugeri que fizesse pastéis, só para experimentar. Durante três dias só comi pasteis.

- Se o senhor quiser que eu pare eu paro.

- Faz outra coisa.

-Tá.

Fez empadas. Depois fez um bolo. Depois fez um pudim. Depois fez um despacho na cozinha.

- Que bobagem é essa aí, Albertina?

- Não é nada não senhor - disse ela.

- Tá - disse eu.

E ela levou para seu quarto umas coisas, papel queimado, uma vela, sei lá o quê. O telefone tocava.

- Atende aí, Albertina.

- É para o senhor.

- Pergunte o nome.

– O.

- O quê?

- Disse que chama O.

Era o Otto. Aproveitei-me e lhe perguntei se não queria me convidar para jantar em sua casa.

Finalmente o dia da bebedeira. Me apareceu bêbada  feito  um gambá; agarrando-me pelo braço:

- Doutor, doutor... A moça aí da vizinha disse que eu tou beba, mas é mentira, eu não bebi nada... O senhor não acredita nela não, tá com ciúme de nóis!

Olhei para ela, estupefato. Mal se sustinha sobre as pernas e começou a chorar.

-  Vá para o seu quarto - ordenei, esticando o braço dramaticamente. - Amanhã nós conversamos.

Ela nem fez caso. Senti-me ridículo como um general  de  pijama, com aquela pretinha dependurada no meu braço, a chorar.

- Me larga! - gritei, empurrando-a. Tive logo em seguida de ampará-la para que não caísse: - Amanhã você arruma suas coisas e vai embora.

- Deixa eu ficar... Não bebi nada, juro!

Na cozinha havia duas garrafas de cachaça vazias, três de cerveja. Eu lhe havia ordenado que nunca deixasse faltar três garrafas de cerveja na geladeira. Ela me obedecia à risca:  bebia as três, comprava outras três.

Tranquei a porta da cozinha, deixando-a nos seus domínios. Mais tarde soube que invadira os apartamentos vizinhos fazendo cenas. No dia seguinte ajustamos as contas. Ela, já sóbria, mal ousava me olhar.

- Deixa eu ficar - pediu ainda, num sussurro. -  Juro que não faço mais.

Tive pena:

- Não é por nada não, é que não vou precisar mais de empregada, vou viajar, passar muito tempo fora.

Ela ergueu os olhos:

- Nenhuma empregada?

- Nenhuma.

- Então tá.

Agarrou sua trouxa, despediu-se e foi-se embora.

Fonte:
Fernando Sabino. O Homem Nu. RJ: Editora Record,1976.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 284


Figueiredo Pimentel (O Violino Mágico)


Dário era um bom mocinho, alegre e esperto, estimado por todos que o conheciam. Um dia despedindo-se de sua família e de seus amigos, saiu de casa, para ganhar honradamente a vida. Ele era o mais velho dos cinco filhos que tinha o tio Pedro; e como a miséria lhes batia à porta, forçoso foi que o moço saísse, para não sobrecarregar o pai, em prejuízo dos irmãos menores, e também para ver se melhorava de sorte. Ao despedir-se, o pai lhe dera por toda fortuna uma moeda de prata; e ele julgou-se rico, porque não conhecia o valor do dinheiro.

Caminhava alegremente pela estrada que conduzia à cidade, quando encontrou um velhinho, abrigado à sombra de uma árvore, gemendo e chorando.

Dotado de excelente coração, Dário tratou desveladamente do enfermo, e deu-lhe a sua única moeda de prata.

O velhinho, agradecido, disse:

– Já que foste tão caridoso, vou fazer-te um presente. Aqui tens este violino. Todas as vezes que o tocares, quem o ouvir não poderá resistir ao desejo de dançar.

Dário saiu satisfeito com o presente, e pouco adiante, encontrou-se com um judeu, homem avarento, que espoliava todo o mundo, emprestando dinheiro a altos juros, em troca de bons e valiosos penhores de prata, ouro e pedras preciosas, que nunca mais entregava aos respectivos donos.

Naquele mesmo instante o judeu acabava de perder um vintém, e procurava-o aflitamente, como se tratasse de imensa fortuna.

O moço ofereceu-se para ajudá-lo, e, como tinha boa vista, enxergou a moeda de cobre caída no meio dos espinhos. Ia apanhá-la, mas o avarento não o consentiu, pensando que Dário fosse capaz de roubá-la.

– Ah!, disse Dário consigo mesmo: desconfias de mim! Deixa estar que me pagarás...

Esperou sentado; e, assim que viu o miserável dentro dos espinhos, começou a tocar o violino.

O judeu, escutando aqueles harmoniosos sons, começou a dançar; e quanto mais Dário tocava, tanto mais ele saltava, quase sem fôlego, rasgando a roupa, ferindo-se nos espinhos.

– Para!... Para!... cessa esse violino do diabo! Para, que já não posso mais! berrava o judeu, desesperado, sempre a dançar.

O rapaz, porém, continuava sempre a vibrá-lo.

– Pelo amor de Deus, para com essa música, que te darei uma bolsa de ouro!... disse, enfim, o avarento.

– Ah! isso é outro modo de falar! respondeu o mocinho, emudecendo o violino mágico, depois que o judeu atirou a bolsa.

No dia seguinte, chegando à cidade, Dário foi preso. O judeu tinha ido queixar-se que havia sido roubado por ele.

O moço foi condenado à morte.

No momento em que subia para a forca, pediu que lhe permitissem tocar pela última vez o violino.

O avarento, que estava ao pé do cadafalso, gritou logo:

– Não o deixem tocar mais!... Não o deixem tocar!...

O juiz, porém, que não via razões para recusar, acedeu.

Dário começou a vibrar o violino, e imediatamente todos – juiz, carrasco, soldados, homens, mulheres, velhos e crianças – todos começaram a dançar.

– Basta! gritava o juiz.

– Basta! gritava o povo.

Dário cessou a música. O juiz convenceu-se que o rapaz não era criminoso, perdoou-o, e mandou enforcar o judeu.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. 1896.

Helena Kolody (Poemas Avulsos) 1


A LÁGRIMA

Oh! lágrima cristalina
Tão salgada e pequenina
Quanta dor tu redimes
Mesmo feita de amarguras
És tão sublime tão pura
Que só virtudes exprimes.
****************************************

LIÇÃO

A luz da lamparina dançava
frente ao ícone da Santíssima Trindade.
Paciente, a avó ensinava
a prostrar-se em reverência,
persignar-se com três dedos
e rezar em língua eslava.
De mãos postas, a menina
fielmente repetia
palavras que ela ignorava,
mas Deus entendia.
****************************************

SONHAR


Sonhar é transportar-se em asas de ouro e aço
Aos páramos azuis da luz e da harmonia;
É ambicionar o céu; é dominar o espaço
Num voo poderoso e audaz da fantasia.
Fugir ao mundo vil, tão vil que, sem cansaço,
Engana, e menospreza, e zomba, e calunia;
Encastelar-se, enfim, no deslumbrante Paço
De um sonho puro e bom, de paz e de alegria.
É ver no lago um mar, nas nuvens um castelo,
Na luz de um pirilampo um sol pequeno e belo;
É alçar constantemente o olhar ao céu profundo.
Sonhar é ter um grande ideal na inglória lida:
Tão grande que não cabe inteiro nesta vida,
Tão puro que não vive em plagas deste mundo.
****************************************

MÚSICA SUBMERSA



Não quero ser o grande rio caudaloso
Que figura nos mapas.
Quero ser o cristalino fio d’água
Que canta e murmura
Na mata silenciosa.
****************************************
 

NAVEGANTE
 

Navegou
no veleiro dos livros.

Desembarcou
e conferiu.

E o mundo que viu
não era o que imaginou.
****************************************

INFÂNCIA


Aquelas tardes de Três Barras,
Plenas de sol e de cigarras!

Quando eu ficava horas perdidas
Olhando a faina das formigas
Que iam e vinham pelos carreiros,
No áspero tronco dos pessegueiros.

A chuva-de-ouro
Era um tesouro,
Quando floria.
De áureas abelhas
Toda zumbia.
Alfombra flava
O chão cobria...

O cão travesso, de nome eslavo,
Era um amigo, quase um escravo.

Merenda agreste:
Leite crioulo,
Pão feito em casa,
Com mel dourado,
Cheirando a favo.

Ao lusco-fusco, quanta alegria!
A meninada toda acorria
Para cantar, no imenso terreiro:
“Mais bom dia, Vossa Senhoria”...
“Bom barqueiro! Bom barqueiro...”
Soava a canção pelo povoado inteiro
E a própria lua cirandava e ria.

Se a tarde de domingo era tranquila,
Saía-se a flanar, em pleno sol,
No campo, recendente a camomila.
Alegria de correr até cair,
Rolar na relva como potro novo
E quase sufocar, de tanto rir!

No riacho claro, às segundas-feiras,
Batiam roupas as lavadeiras.
Também a gente lavava trapos
Nas pedras lisas, nas corredeiras;
Catava limo, topava sapos
(Ai, ai, que susto! Virgem Maria!)

Do tempo, só se sabia
Que no ano sempre existia
O bom tempo das laranjas
E o doce tempo dos figos...

Longínqua infância... Três Barras
Plena de sol e cigarras!
****************************************

PELOS BAIRROS ESQUECIDOS


Pelos bairros esquecidos,
tantos passos,
tantos risos,
tantos sonhos perdidos!
****************************************
 

DOM

Deus dá a todos uma estrela.
Uns fazem da estrela um sol.
Outros nem conseguem vê-la.

Fontes:
Helena Kolody. A Sombra no Rio; Ontem Agora; Poesia Mínima; Poesias Escolhidas; Sempre Palavra; Viagem no Espelho.

Monteiro Lobato (Pedro Pichorra)


(conto publicado em 1910)

Quem dobra o Morro da Samambaia, com a vista saturada pela verdura monótona, espairece na Grota Funda ao dar de chapa com uma sitioca pitoresca. E passa levando nos olhos a impressão daquela sépia afogada em campo verde: casebre de palha, terreirinho de chão limpo, mastro de santo Antônio com os desenhos já escorridos pela chuva e a bandeira rota trapejante ao vento. Dois mamoeiros no quintal apinhados de frutos; canteiros de esporinhas com periquito em redor e manjericões entreverados. Um pé de girassol, magro e desenxabido, a sopesar no alto a rodela cor de canário; laranjeiras semimortas sob o toucado da erva-de-passarinho.

Nos fundos da casa vê-se o lavadouro, descoivarado apenas, num poço onde o corgo rebrilha três palmos d’água. Sobre um tabuão emborcado a meio, lá está batendo roupa a Marianinha Pichorra, mulher do Pedro Pichorra, mãe de nove Pichorrinhas. É ali o sítio dos Pichorras e até a Grota Funda já é conhecida por Fundão da Pichorrada.

Por que os antigos Pereiras de Sousa, do Barro Branco, vieram a chamar-se Pichorras? É toda uma história.

Pedrinho ia nos onze anos. Já se destabocara e já preferia, em matéria de fumo, o forte, bem melado. Na véspera realizara o sonho de toda criança da roça — a faca de ponta. Dera-lha o pai como um diploma de virilidade.

— Menino, de ora em diante você é homem. Agredido, não gritará por gente grande; é mão na faca, pé atrás e corisco nos olhos.

Não lhe falou assim o pai, mas leu Pedrinho essa fala na lâmina rebrilhante. Por isso irradiava de orgulho, imaginando pegas, aloites, tempos-quentes e tocaias onde a “sardinha” alumiasse.

O pai, naquele momento de pé na soleira da porta, assuntava o céu. Viu que chover não chovia — e:

— Pedrinho! — gritou para os fundos.

— Pai?

— Vá pegar a égua.

O menino passou mão do cabresto e mergulhou no pasto. Minutos depois repontava trotando em pelo a Serena, égua velha, de muita barriga mas aguentadeira.

— Dê milho, do mole, e arreie.

O pequeno debulhou duas espigas no embornal e, enquanto a égua mascava o lambisco, alisou-a, ajeitou-lhe no lombo pisado um saco velho, depois a carona, o lombilho, o pelego.

— Não coche demais a barrigueira. Tem potrinho.

O menino folgou dois dedos o arrocho e esperou um bocado, enrolando o cigarro, até que a Serena parasse de mastigar. Por fim, arrumou o freio e montou.

— Agora você vai no sítio do Nheco e diz praquele tranca que dou o capadete pelos vinte e cinco mil-réis.

Pedrinho abriu cara de quem estranhava a ordem.

— Sozinho?

— Ué! E a faca, então? Não é “companheiro”?

O argumento valeu. Pedrinho, sem mais palavra, deu rédea e, lept! lept!, arrancou estrada afora.

O pai, alisando maquinalmente um palhão de milho, acompanhou-o com os olhos até perdê-lo de vista na primeira curva. Depois monologou:

— “Sozinho”? Ué! Até quando? Precisa acostumar. Onze anos. É homem. Eu com dez varava sertão.

Pedrinho trotava pela fita vermelha da estrada, sobe e desce morro, quebra à direita, à esquerda, pac, pac, pac... Ia pensando na volta. Teria tempo de transpor a figueira antes de escurecer? A figueira... Passavam-se ali coisas de arrepiar o cabelo. Pela meia-noite — diziam — o capeta juntava debaixo dela sua corte inteira para pinoteamento de um samba infernal. Os sacis marinhavam galhos acima em cata de figuinhos, que disputavam aos morcegos. E os lobisomens, então? Vinham aos centos focinhar o esterco das corujas. Almas penadas, isso nem era bom falar! Quando o Quincas da Estiva contava casos da figueira, não havia chapéu que parasse na cabeça. Mas de dia, nada; passarinhada miúda só, a debicar frutinhas. Foi o que o menino viu naquela tarde ao cruzar com a árvore. Mesmo assim passou rápido e encolhidinho — por via das dúvidas.

Chegou ao Nheco ainda com sol e deu o recado.

Nheco, marotíssimo, coçou o cabelo de milho da barbicha e embromou:

— Pois não. Mas... “não vê” que o toicinho baixou. De Minas tem descido um “poder” de capadaria que mete medo. De sorte que você diga pro pai que nestes “causos” eu não sustento o trato. Se ele quiser vinte e três mil-réis... Diga assim, ouviu? Vinte e três, ouviu?

Pedrinho desandou para trás, pensando consigo: “Safado!”. E veio todo o caminho absorvido em xingar mentalmente o aproveitador. Ao defrontar com a figueira o medo agarrou-o. Escurecia. A luz do céu estava morrendo, pálida no alto, laranja esmaiada no poente. Por felicidade cruzaria a figueira antes da noite. Fechou os olhos, conjurou o encardido santo Antônio da família e transpôs dum galão o passo perigoso.

— Arre!... — exclamou com desabafo, olhando para trás e vendo a árvore maldita diminuir de porte. E pac, pac, pac, estrada afora, rumo ao sítio paterno. Mas escureceu e, já perto de casa, vai senão quando a égua empina a orelha e passarinha.

— Égua velha passarinhou é saci! — sugeriu dentro dele o medo. E o menino retransido viu de repente no barranco um saci de braços espichados, barrigudo, “com um olho de fogo que passeava pelo corpo”.

— Nossa Senhora da Conceição, valei-me!

Assustado por aquele berro, o “olho do saci voou pelo ar, piscando”... Pedrinho bateu em casa de cabelos em pé, olhos saltados. Agarrou-se com o pai, trêmulo, sem fala. A custo desfez o nó da língua.

— O saci, pai!...

— ?

— ... pra cá da figueira... na curva... Barrigudinho... preto...

O pai deu-lhe água na cuia.

— Sossegue um pouco, menino.

E depois duma pausa:

— Você está bobeando, Pedrinho. Não há saci destas bandas.

— Juro, pai! Por Deus do Céu que vi.

E contou a viagem por miúdo, até a aparição.

— Altinho? Pretinho? — indagou o pai.

— Pretinho era, mas chatola, barrigudo, assim que nem pichorra grande.

— Então não é saci — concluiu o velho, entendidíssimo em demonologia rural. E depois:

— Fedeu enxofre?

— Não.

— ‘ssobiou?

— Não.

— Mexeu do lugar?

— Não. Só o olho. O olho andava e voava.

O caboclo refletiu um bocado, até que por fim uma ideia lhe iluminou a cara.

— Onde foi isso — pra cá do corguinho?

— É...

— No barranco?

— É...

— O olho andou e depois voou, piscando?

— Tal e qual...

— E o corpo ficou parado?

— Isso mesmo...

O velho clareou a cara e, desmanchando as rugas da testa, disse rindo:

— O que mais não se aprende neste mundo!... Sabe o que você viu, menino? Você viu o saci pichorra...

E mudando de tom, depois de refletir durante um par de minutos:

— “Quedele” a faca?

— Pra quê? — perguntou o menino, desconfiado.

— Deixe ver, dê cá a faca.

Pegou dela e pô-la à cinta. E, ríspido:

— Vá dormir.

Pedrinho, compreendendo a degradação, ergueu-se com lágrima nos olhos.

— E a faca?

— Fica comigo. Pra você, porqueirinha, é canivete marca anzol ainda.

E com infinita ironia:

— Vá dormir, Pedro Pichorra!...

O menino recolheu-se, sacudido de soluços. O velho pegou do borralho um tição para acender na brasa viva o cigarro. Baforou uma fumaça com o pensamento no falecido sogro Chico Vira, o caboclo mais medroso da Estiva.

— Por quem havia de puxar o Pedrinho, pelo Chico Vira...

E assim o rebento masculino dos Pereiras do Barro Branco virou, por troça do próprio pai, o tronco duma nova família, essa Pichorrada que hoje põe a nota sépia da sitioca na verdura da Samambaia. Tudo porque a velha Miquelina havia deixado naquele dia a pichorra d’água a refrescar ao relento à beira do barranco, e um vaga-lume-guaçu pousara nela por acaso, justamente quando o menino ia passando...

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

Agatha Christie (Resenha de Livros) 11


PASSAGEIRO PARA FRANKFURT
Passenger to Frankfurt


Aquele parecia ser apenas mais um dia na rotina do voos internacionais. Mas um encontro inesperado no aeroporto de Frankfurt traz à tona uma trama diabólica que aponta para a possível existência de uma poderosíssima organização internacional, dedicada a semear o caos e criar uma nova ordem maligna sob o comando do “Jovem Siegfried”, anunciado como o filho de ninguém menos que… Hitler. Crimes, extorsões, contrabando de armas e tráfico de drogas são alguns dos ingredientes deste romance em que Agatha Christie faz a imaginação do leitor voar livremente.
****************************************

NÊMESIS
Nemesis


“Nosso código, minha senhora, é a palavra Nêmesis”. Miss Jane Marple repetia em voz baixa a estranha frase, que a fazia lembrar de uma outra época: palmeiras tropicais, o mar azul do Caribe e ela correndo, pela noite quente e perfumada da ilha de St. Honoré, em busca de socorro para tentar salvar uma vida. Agora, colocando sua própria vida em risco, Miss Marple está de volta ao Caribe, na trilha de um perigoso assassino que já matou duas mulheres e está prestes a cometer um novo crime.
****************************************

OS ELEFANTES NÃO ESQUECEM
Elephants can Remember


Nesta divertida e bem escrita novela, Poirot conta com a valiosa ajuda de Ariadne Oliver, autora de novelas policiais, e Agatha Christie, ironicamente, representa a si mesma, ainda que os papéis estejam invertidos: Agatha, como escritora, faz o papel da mítica Ariadne, que conduz Poirot pelo labirinto da intriga por ela inventada; e Ariadne Oliver, como personagem da ficção entra no labirinto de onde retira Poirot. A senhora Oliver propõe a Poirot investigar a verdadeira causa da morte de um casal, que segundo a polícia, teria se suicidado anos antes. Para isso, a senhora Oliver se dedica a procurar “elefantes” - ou seja, as pessoas que lembram os trágicos eventos do passado - que fornecem ao grande detetive os dados para ele processar na famosa massa cinzenta do seu cérebro. Quando por fim Poirot desenterra a terrível verdade, Agatha Christie diz, valendo-se dos lábios de Ariadne: “…graças a Deus, aos seres humanos foi concedida a faculdade de esquecer”.

O genial Hercule Poirot e a simpática Ariadne Oliver tentam desvendar um crime qua aconteceu há muito tempo, o assassinato do casal Ravenscroft, pai da afilhada de mrs. Oliver, Célia. Consultando elefantes (pessoas que segundo a lenda não esquecem) eles chegam a mais um triunfante e inesperado final.
****************************************

PORTAL DO DESTINO
Postern of Fate

Tommy e Tuppence estão aposentados e decidem gozar a velhice em uma mansão na tranquila cidade de Devonshire. Um dia, arrumando o sótão, descobrem num velho livro infantil o relato de um misterioso assassinato ocorrido na cidade durante a guerra. A vítima estaria envolvida em um escândalo de espionagem e teria passado segredos sobre a Marinha inglesa. Eles começam a investigar e descobrem que havia alguém interessado em que o caso não fosse reaberto. Agora, estão com a vida por um fio.
****************************************

OS PRIMEIROS CASOS DE POIROT
Poirot’s Early Cases


“Nunca se deve desprezar o trivial”, costuma afirmar o imbatível detetive Hercule Poirot. Inspirado por este conselho do amigo, o capitão Hastings se anima a contar, em breves relatos, as primeiras aventuras de Poirot, dos tempos em que sua reputação ainda começava a se firmar por toda a Inglaterra. São dezoito histórias estupendas, que trazem a marca inconfundível da “velha dama” do crime, Agatha Christie, presente aqui em alguns de seus melhores momentos.

O Caso do Baile da Vitória
Durante um baile a fantasia, Lorde Cronshaw discute com sua companheira Miss Coco Cortenay na frente de seus amigos. Ela volta para casa e ele continua na festa. Depois, os dois são encontrados assassinados. O Inspetor Japp pede que Poirot desvende o caso.

A Aventura da Cozinheira de Clapham
A cozinheira da Mrs Todd desaparece misteriosamente e ela pede a Hercule Poirot que a encontre. O caso parece irrelevante mas o detetive descobre uma trama por trás do desaparecimento que vai muito além de um simples caso.

O Mistério da Cornualha
Mrs Pengelley procura Poirot pois suspeita que está sendo envenenada pelo seu marido, que está tendo um caso com sua assistente. Hercule Poirot vai à cidadezinha onde Mrs Pengelley vive para tentar desvendar o caso.

A Aventura de Johnnie Waverly
A família Waverly recebe cartas dizendo que se um valor não for pago, seu filho será sequestrado em um determinado dia. Eles chamam a polícia e mesmo assim o rapto é realizado. Dessa forma, vão ao encontro de Poirot e pedem a ele que descubra o paradeiro do menino desaparecido.

O Duplo Indício
Ao final de uma reunião informal em sua casa, Mr Marcus Hardman percebe que as joias que estavam dentro de seu cofre foram roubadas. Como ele desconfia de um de seus amigos, vai ao encontro de Hercule Poirot e entrega o caso em suas mãos.

O Rei de Paus
Durante uma partida de bridge em que uma família se divertia, uma moça entra na sala de estar por uma porta envidraçada e fala: “assassinado” caindo em seguida. Um príncipe que deseja se casar com esta moça pede que Poirot descubra o que aconteceu.

A Maldição dos Lemesurier
Uma maldição se abate sobre a família Lemesurier. Nenhum primogênito jamais herdará as propriedades que lhe seriam de direito. E assim acontece; sempre ocorrem mortes matando os primogênitos. Mrs Lemesurier procura Poirot pois não quer que o mesmo aconteça com seu filho.

A Mina Perdida
Chinês é encontrado morto e os papéis sobre as condições de uma mina que está a muito tempo abandonada desapareceram. Poirot é chamado e, como sempre, descobre os papéis e desvenda a identidade do assassino.

O Expresso de Plymouth
Durante uma viagem de trem, a filha de Mr Ebenezer Halliday é encontrada morta em sua cabine pelo Tenente Alec Simpson e suas joias roubadas. Mr Halliday pede a Poirot que descubra quem a matou e onde estão as joias roubadas.

A Caixa de Chocolates
Poirot conta a Hastings um caso em que chegou a uma conclusão errada ao final das investigações. Depois da morte de um famoso deputado, Poirot é chamado para descobrir a verdadeira causa de seu falecimento. Ao esquecer de levar em conta um pequeno detalhe, Poirot falha. Apenas com a confissão do assassino é que ele descobre os erros que cometeu.

Os Planos do Submarino
O Ministro da Defesa pede a Poirot que descubra o paradeiro dos planos do novo submarino que a Inglaterra está para construir. O roubo se deu na casa do próprio Ministro num momento rápido de descuido.

O Apartamento do Terceiro Andar
Com problemas para entrar em seu apartamento, dois jovens acabam entrando sem querer no apartamento errado e descobrem o corpo de uma mulher assassinada. Poirot, que se encontrava por acaso no mesmo prédio, se propõe a ajudá-los a encontrar o assassino da mulher.

O Duplo Delito
Durante uma viagem que Poirot e Hastings fazem juntos, eles conhecem uma jovem chamada Mary Durrant que iria vender miniaturas valiosas. No meio da viagem as miniaturas são roubadas e Poirot tenta descobrir quem as roubou e como foram furtadas.

O Mistério de Market Basing
Durante um aparente período de descanso no campo, Poirot, Hastings e Japp terão de desvendar um suicídio em que a vítima não podia ter se matado. Utilizando suas “pequenas células cinzentas”, o crime é desvendado magistralmente.

A Casa de Maribondos
Neste caso, Hercule Poirot vai a casa de John Harrison para tentar evitar um assassinato em que a própria vítima não sabe que está correndo perigo. Atuando de forma discreta, Poirot consegue evitar que uma tragédia aconteça.

A Dama em Apuros
Lady Millicent vai a Poirot para que ele consiga reaver uma carta escrita por ela há muito tempo, que está em poder de um chantageador que pode acabar com seu noivado. Na carta existem declarações comprometedoras.

Problema a Bordo
Durante uma viagem de barco ao Egito, Mrs Clapperton é encontrada morta dentro de sua cabine. O problema é que a cabine estava fechada por dentro e somente uma pessoa que ela conhecia poderia tê-la matado.

Que Bonito é o seu Jardim
Amelia Barrowby envia uma carta a Poirot perguntando se ele poderia ajudá-la a resolver um problema, mas não especifica qual. Logo depois, ela morre subitamente. Desconfiado, Poirot vai até sua casa para tentar descobrir o que de fato aconteceu.

Fonte:
http://users.hotlink.com.br/pmgi/agatha/index.html

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 283


Isabel Furini (Alma e Borboleta)

Isabel é de Curitiba/PR
Fonte:
Facebook

Laé de Souza (De Mal com a Vida)


Reclamam do meu jeito e da minha cara carrancuda. E dá para ser diferente? De manhã acordo com algazarra e gritos de garotos que correm atrás de uma bola e sobre patins. Num mesmo ritual de anos, vou até a janela e vejo aquele doido, só pode ser, que todos os dias, metido num calção listado, circula o parque correndo sempre a consultar um cronômetro que carrega no pulso. Uma folheada nos jornais me aumenta o mau humor. Só notícias ruins. Na televisão e no rádio, prolifera o pornô. Não bastasse o rock. Cuja culpa por eu ter começado a odiar é do desajustado do meu filho, sempre com o som ligado nas alturas, estourando meus tímpanos. Criei tanta ojeriza, que hoje a simples visão de uma guitarra me perturba a ponto de, se não me segurarem, quebrá-la na cabeça do roqueiro.

Agora, são mocinhas de pernas de fora e letras pornográficas fazendo sucesso. Não suporto mais o Tchan, dança do Bumbum, da Garrafa, do Maxixe, do Pirulito, Tanajura e outras mais, que certamente virão. Não que eu seja contra mulheres sensuais, mas estes batuqueiros já estão abusando e isso ninguém pode negar. Se não derem um breque, a coisa vai degringolar.

Até a minha música preferida, Índia, já não posso mais ouvir sem que me venha na mente a figura desdentada do Tiririca. Minha vontade é arrancar-lhe o restante dos dentes com um soco e, copiando Mike Tyson, morder-lhe as orelhas. Depois deste moço, nunca mais Índia será  a mesma.

Me tiraram o cigarro sob argumentos de melhorar minha saúde, já não posso sentir o gosto da fumaça e o cheiro do tabaco queimando. Sinceramente, só balela, pois continua a rouquidão e a tosse que me acompanham há anos. O cansaço, a falta de ar depois de qualquer esforço ainda são os mesmos. O nervosismo que sempre me acompanhou, segundo diz o pessoal que me cerca, está cada dia pior. Cá para mim, por dois motivos: a falta do cigarro e o conluio dessa gente que insiste em me atazanar. Quando vejo figuras de montanhas, cascatas e cavalos, fico em delírio, sonhando com um Malboro entre os dedos e grandes baforadas. Quando caio em mim, vejo que é tudo ilusão. Reconheço que implico com coisas mínimas e infernizo a vida de quem está perto. Mas também, como todo ex-fumante, condeno os que fumam e reclamo quando vem uma fumacinha, embora intimamente goste de sentir o cheiro. Aponto placas e exijo o cumprimento dos meus direitos de não-fumante.

Me proibiram a bebida, sob argumentação médica de que minha saúde exigia que deixasse de tocar em qualquer espécie alcoólica. Tenho certeza de que foi boicote, motivado pelo fato de que sob efeito do álcool eu dizia certas verdades que essa gente não gosta de ouvir. E ainda mais, sempre tinha um ou outro que ousava contestar e por várias vezes parti pra cima a fim de resolver no tapa. Até na entrada do ano, enquanto brindam com champanhe e se enchem de beber, me dão um suco e não descuidam. Como sinto inveja quando vejo um fulano cambaleando , em ziguezague jogar-se numa calçada e ali ficar sem dar a mínima para a vida.

Ah! essa turma que fica pegando no meu pé não perde por esperar. Qualquer dia, eu ainda apronto uma com eles. E vai ser antes dessa morte que só para me atormentar demora em chegar.

Fonte:
Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000.

Rita Mourão (Poemas Escolhidos) 2


COLO DE MÃE

Mudei de cadeira, mudei de xícara,
joguei  fora o adoçante
e recriei meu café da manhã.
De nada adiantaram as mudanças,
tudo  tem outro gosto, tudo é fastio,
tudo  é uma esquisitice  aguda.
Estou macambúzia, gripada, mas nada dói em meu corpo.
Minha gripe é na alma, congestionada de saudade.
Ah, meu Deus! Dá-me a canequinha de lata,
o tamborete antigo e o colo de mãe
que  foram deixados  numa cozinha farta de aconchego.
Dá-me o fogão à lenha, o café de um coador de  pano
e os meus despreocupados anos de infância .
Hoje eu quero um remédio que me cure
dessa  dor inquietante de não  ser mais criança.
****************************************

DEPOIS DO VOO

Soletro-me.
Descubro-me cheia de hiatos e vocativos.
Já não sou o mesmo texto,
atravessaram-me  as  reticências
e a nudez de cada espaço, rege o compasso
das incertezas.
Descubro-me sobre barrancas ressequidas
e mergulho no rio que me atravessa.
Não satisfaço a minha secura,
minha  sede tem forma e nome.
Faço uma nova leitura, viagem que não cessa.
Nas entrelinhas o voo, o silêncio.
Meus sentimentos pedem renascimento,
mas  estou estagnada, sem coragem de me recriar.
Até  o verbo amar já não me é mais cortês.
Apenas me restaram  as  metáforas.
Depois do voo.
****************************************

DESEJO

Sou feita de atos e pensamentos
corpo e alma das letras em ação.
Mas o que mais me identifica e desenha meu perfil
são  as  palavras.
Eu sou o que escrevo, sou a palavra que me  revela
nas  entrelinhas dos meus poemas.
Queria tocar os corações das pedras,
queria que as pedras me lessem!
****************************************

ESPERA

É na tua ausência que desfolho tristezas
e  acaricio lembranças.
É nas horas de solidão
que  ganho asas, te bebo e te navego.
Nos meus sonhos te encontro rarefeito,
envolto  na volátil  presença da noite que te engole.
O sonho passa, mas meu corpo refeito
é  um profundo oceano à espera das tuas redes.
****************************************

EU E O TEMPO

Nos meus poemas faço uma profunda reflexão
sobre  o  sentido da vida.
Vivi, vivo, sofro e faço versos.
Mas a vida engole com sofreguidão as minhas rimas,
as  minhas  metáforas,  meus  tempos  verbais,
que  tanto  sustentaram  meus quereres.
 E meus poemas já pedem escoras.
****************************************

RAÍZES

Sou parte do Grande Sertão de Guimarães Rosa.
A terra me medra,
as árvores me enraízam, os pássaros me gorjeiam.
Caminho pisando folhas que me desfolham.
Sou exercida por savanas e meu cheiro é agreste.
Por isso minha alma canta,
contaminada pela Natureza que me define.
****************************************

SILÊNCIO

Existem  dias que  prefiro o silêncio,
um silêncio brando, suave, que me transporta
ao profundo útero da alma.
Feto sem luz, ali me recolho à espera de renascimento.
Choro um choro sufocado, que o silêncio silencia.
A  gestação  prossegue recriando minha alma
e  reencontro a vida que  a mim proponho.
 É no fundo do silêncio que me reconstruo
e  me apodero de novos sonhos.

Fonte:
Versos (Di) Versos. Disponível no site de Rita Mourão.
https://versosderita.weebly.com/versos-diversos.html

Aparecido Raimundo de Souza (As Mentiras que as Mulheres Gostam de Ouvir)


– SANTINHA, MEU BEM, EU TE AMO. NÃO POSSO viver sem ti, sem teu amor ao meu lado. Creia, no que agora direi: nunca te trai. Nunca! Se o fizesse, estaria enganando, não a mim, mas a Deus.

– Me ama tanto assim?

– Amo!

– Muito?

– Demais. Tu és o amor da minha vida.

– Jura?

– Por tudo quanto é mais sagrado. Decididamente não posso viver sem ti.

– E se eu morresse?

– Com certeza eu sucumbiria de profundo desgosto. Dois caixões seriam enterrados num mesmo dia e hora.

– Você não sente uma quedinha por aquele seu antigo caso?

– Santinha, entenda. Só tenho olhos para ti. Tenho ciúmes até das roupas que usas. Quer saber de um detalhe? Quando te vejo conversando com outros caras, principalmente os mais jovens que eu, penso comigo: “será que ela está querendo me trocar?”. Decididamente serás a última.

– E você o meu derradeiro. A propósito: teria coragem de me bater?

– Nem com uma flor.

– Já beijou outra mulher, ou melhor, outra boca, depois que está comigo?

– Só minha mãe e minhas irmãs. E, mesmo assim, no rosto.

– Nenhum selinho com uma amiguinha mais safadinha?

– Tu és e serás eternamente a minha eterna safadinha. Lembra sempre disso.

– E se uma vagabunda lhe desse bola, no meio da rua, o que faria?

– Chutava...

–... Pra gol?

– Claro que não, Santinha. Tu és, repito, a minha princesa. Com certeza, chutaria, mas para escanteio. O dia que tu faltares, juro, morrerei de tédio. De solidão. De tristeza. Deixarei de comer, de beber... Serei capaz de chegar aos extremos: por fim à vida. Meu amor, por ti, é eterno. Quando estou contigo, a meu lado, “estou nos braços da paz”. Lembra desses versos? É de uma música interpretada pela Maria Bethânia.

– E quando brigamos?

– Mais me apaixono por ti...

–... Me acha chata?

– Chata é a mulher do vizinho.

– Eu engordei além da conta?

– Qual o quê! Mesmo rechonchudinha não te troco por nenhuma magrinha.

– Então, estou certa. Você me acha uma baleia? Eu sabia...

–... Claro que não, minha deusa. Olha que corpinho de sereia, que sorriso, que olhar, que meiguice, que voz suave e macia... Tu és a mulher mais bonita deste mundo. Aliás, a única.

– Só deste?

– E de outros mais que por acaso existirem. Ponha na tua cabeça o que vou dizer e grava bem: Santinha, tu és a paixão da minha vida. O meu sol, o meu vento, o meu tudo... Resumindo: tu és a mulher dos meus sonhos. Sem tua presença constante ao meu lado, sou vazio profundo, caminho sem volta, dia sem sol... Noite sem estrelas...

– Nossa, como você está romântico!

– É o meu amor por ti que me faz ser assim, um eterno carente. Apaixonado, embasbacado. Confesso, amada minha. Fiquei, ou melhor, não fiquei: sou cativo de tua beleza.

– Vem cá. Me beija...

– Não havia reparado em teus cabelos. Puxa! estás maravilhosa, eu diria divina...

Risos.

– Percebi que hoje você fez a barba.

– Só para não te arranhar.

– Cortou o bigode...

–... Para veres melhor meu sorriso estampado e nunca esquecer que esse sorriso só existe porque tu estás aqui. Vamos fazer amor?

– Agora?

– Já.

– Não tomei banho. Eu estava na cozinha fazendo seu papazinho...

–... Que diferença isso faz? Te quero do jeito que estás. Sujinha, suada, cheirando a cadelinha molhada, os pés com chulé...

– Só um banho!

– Depois. Temos a noite toda...

– Preciso lavar a...

–... Nada disso. Quero teu corpo agora e pronto. Me transformarei no teu cachorrinho. Vou abanar meu rabinho, e, em seguida, te lamber da raiz dos cabelos aos dedos dos sapatos. Miau!

– Espere. Isso que você fez aí não é a voz de um cãozinho, mas de um gato. Em qual dos dois vai se transformar, afinal?

– Em ambos. É pra sentires como sou louco e como é grande, grande, muito grande o meu amor por ti.

– Meu Roberto!...

–... Minha Isolina!...

–... O quê? Quem é essa Isolina...?

–... Eu... Eu... Eu...

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. RJ: Editora AMCGuedes, 2013

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 282


Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXX


Carlos Drummond de Andrade (Na Escola)


Democrata é dona Amarílis, professora na escola pública de uma rua que não vou contar, e mesmo o nome de dona Amarílis é inventado, mas o caso aconteceu.

Ela se virou para os alunos, no começo da aula, e falou assim:

— Hoje eu preciso que vocês resolvam uma coisa muito importante. Pode ser?

— Pode — a garotada respondeu em coro.

— Muito bem. Será uma espécie de plebiscito. A palavra é complicada, mas a coisa é simples. Cada um dá sua opinião, a gente soma as opiniões e a maioria é que decide. Na hora de dar opinião, não falem todos de uma vez só, porque senão vai ser muito difícil eu saber o que é que cada um pensa. Está bem?

— Está — respondeu o coro, interessadíssimo.

— Ótimo. Então, vamos ao assunto. Surgiu um movimento para as professoras poderem usar calça comprida nas escolas. O governo disse que deixa, a diretora também, mas no meu caso eu não quero decidir por mim. O que se faz na sala de aula deve ser de acordo com os alunos. Para todos ficarem satisfeitos e um não dizer que não gostou. Assim não tem problema. Bem, vou começar pelo Renato Carlos. Renato Carlos, você acha que sua professora deve ou não deve usar calça comprida na escola?

— Acho que não deve — respondeu, baixando os olhos.

— Por quê?

— Porque é melhor não usar.

— E por que é melhor não usar?

— Porque minissaia é muito mais bacana.

— Perfeito. Um voto contra. Marilena, me faz um favor, anote aí no seu caderno os votos contra. E você, Leonardo, por obséquio, anote os votos a favor, se houver. Agora quem vai responder é Inesita.

— Claro que deve, professora. Lá fora a senhora usa, por que vai deixar de usar aqui dentro?

— Mas aqui dentro é outro lugar.

— É a mesma coisa. A senhora tem uma roxo-cardeal que eu vi outro dia na rua, aquela é bárbara.

— Um a favor. E você, Aparecida?

— Posso ser sincera, professora?

— Pode, não. Deve.

— Eu, se fosse a senhora, não usava.

— Por quê?

— O quadril, sabe? Fica meio saliente…

— Obrigada, Aparecida. Você anotou, Marilena? Agora você, Edmundo.

— Eu acho que Aparecida não tem razão, professora. A senhora deve ficar muito bacana de calça comprida. O seu quadril é certinho.

— Meu quadril não está em votação, Edmundo. A calça, sim. Você é contra ou a favor da calça?

— A favor 100%.

— Você, Peter?

— Pra mim tanto faz.

— Não tem preferência?

— Sei lá. Negócio de mulher eu não me meto, professora.

— Uma abstenção. Mônica, você fica encarregada de tomar nota dos votos iguais ao de Peter; nem contra nem a favor, antes pelo contrário.

Assim iam todos votando, como se escolhessem o presidente da República, tarefa que talvez, quem sabe no futuro sejam chamados a desempenhar. Com a maior circunspecção. A vez de Rinalda:

— Ah, cada um na sua.

— Na sua, como?

— Eu na minha, a senhora na sua, cada um na dele, entende?

— Explique melhor.

— Negócio seguinte. Se a senhora quer vir de pantalona, venha. Eu quero vir de mídi, de máxi, de short, venho. Uniforme é papo furado.

— Você foi além da pergunta, Rinalda. Então é a favor?

— Evidente. Cada um curtindo à vontade.

— Legal! — exclamou Jorgito. — Uniforme está superado, professora. A senhora vem de calça comprida, e a gente aparecemos de qualquer jeito.

— Não pode — refutou Gilberto. — Vira bagunça. Lá em casa ninguém anda de pijama ou de camisa aberta na sala. A gente tem de respeitar o uniforme.

Respeita, não respeita, a discussão esquentou, dona Amarílis pedia ordem, ordem, assim não é possível, mas os grupos se haviam extremado, falavam todos ao mesmo tempo, ninguém se fazia ouvir, pelo que, com quatro votos a favor de calça comprida, dois contra, e um tanto faz, e antes que fosse decretada por maioria absoluta a abolição do uniforme escolar, a professora achou prudente declarar encerrado o plebiscito, e passou à lição de história do Brasil.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 15


O OLHAR DELA...

MOTE:
Vou navegar estes mares,
de calmaria e procela
para ver se entre os olhares
encontro aquele olhar dela.

Clênio Borges
Porto Alegre/RS


GLOSA:
VOU NAVEGAR ESTES MARES,
vou navegar na emoção,
quero escutar os cantares
do meu próprio coração!

Nesse meu mar de esperança,
DE CALMARIA E PROCELA
é forte e doce a lembrança
que chega num barco à vela!

Por meios particulares
eu me ponho a procurar,
PARA VER SE ENTRE OS OLHARES
está quem quero enxergar!

Com amor e com ternura,
termino a nossa novela,
pois no fim desta procura,
ENCONTRO AQUELE OLHAR DELA.
****************************************

FORTUNA DO PERDÃO

MOTE:

Bendito seja o sujeito
que traído pelo irmão,
tira do fundo do peito
a fortuna do perdão!

Eduardo A. O. Toledo
Pouso Alegre/MG


GLOSA:
BENDITO SEJA O SUJEITO
que nunca guarda rancor,
é sinal de que ele é feito
só de amor, de muito amor!

Esse ser, mesmo tristonho,
QUE TRAÍDO PELO IRMÃO,
não destrói o grande sonho
que mora em seu coração!

Continua satisfeito,
pajeando a felicidade,
TIRA DO FUNDO DO PEITO
uma rosa de amizade!

A amizade verdadeira
é feita de doação,
e enriquece a terra inteira
A FORTUNA DO PERDÃO!
****************************************

PERFUME DELA

MOTE:

Ela voltou... penso... enfim!
Mas, a brisa me revela,
são as rosas do jardim,
usando o perfume dela.

Lila Ricciardi Fontes
São Paulo/SP


GLOSA:

ELA VOLTOU... PENSO... ENFIM!
Meu coração pulsa forte,
quase nem cabendo em mim,
sorrindo com tanta sorte!

Penso, ser o seu perfume,
MAS, A BRISA ME REVELA,
quase chorando de ciúme,
entrando pela janela...

Chega ao fim o meu festim,
pois os perfumes que eu sinto,
SÃO AS ROSAS DO JARDIM,
mais as mil flores de absinto!

Bem fundo, em meu coração,
esse perfume se anela,
são lembranças de emoção,
USANDO O PERFUME DELA.
****************************************

RENÚNCIA

MOTE:

Se a renúncia em seus degredos,
meus sonhos cobre de pó,
dou-me as mãos... enlaço os dedos
e finjo não estar só...

Otávio Venturelli
Nova Friburgo/RJ


GLOSA:

SE A RENÚNCIA EM SEUS DEGREDOS,
me faz sofrer e chorar,
enrolado nos meus medos
eu me incito a continuar!

Se essa renúncia enfadonha,
MEUS SONHOS COBRE DE PÓ,
minha alma, então, já nem sonha
uma tristeza sem dó!

Mas eu tenho os meus segredos,
segredos do coração:
DOU-ME AS MÃOS... ENLAÇO OS DEDOS
e invento nova emoção!

Por precisar de alegria,
do pranto, eu aperto o nó,
e me faço companhia,
E FINJO NÃO ESTAR SÓ…

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. março de 2005.

Contos e Lendas do Brasil (Gongo-Velho)


— É de ouvido que vou contar, pois essas coisas não são do meu tempo. Ouvia-as de minha mãe um sem número de vezes, em serões como este. — disse o velho africano.

Gongo-Velho — prosseguiu — se chamava antigamente um pequeno córrego que ia desaguar no Rio das Mortes. Agora, tem outro nome que o coração manda calar para que não se saiba ao certo o lugar onde se desenrolou este drama, onde tanta lágrima foi vertida. Esse córrego passava pelas terras de dois irmãos que tinham chegado do Reino com uma cadeia de escravos e ali se estabeleceram, numa existência tão solitária e recolhida que não parecia de criaturas humanas.

Havia multo ouro na redondeza e Gongo-Velho ficou-se chamando toda a terra dos irmãos recém-chegados. Foi de muito trabalho os anos que se seguiram. Minerava-se no Gongo-Velho com verdadeira fúria de amontoar tesouros. Nunca ninguém soube da vida daqueles dois portugueses, também nunca se soube que eles se metessem com a vida dos outros.     Apenas cá fora, aquém dos muros do retiro, que era um verdadeiro presídio, transpiravam vagos rumores de cenas horrorosas, narrações de bárbaros castigos a que repugnava ao mais embrutecido ouvinte dar inteiro crédito. Com certeza — pensava-se — havia muito exagero nessas descrições.

Quando algum desgraçado conseguia, iludindo a severa vigilância dos algozes, evadir-se, ia pedir asilo em paragens bem distantes daqueles vales, cujas quebradas repetiam os ecos dos soluços de agonia dos seus irmãos de infortúnio.

Os dois moços envelheceram. Tinham um capataz de confiança, português como eles, que conduzia a tropa carregada de ouro a Vila Rica.    Ninguém mais saia do retiro e ninguém mais entrava a não ser o capataz, quando voltava, trazendo as mais das vezes, novo contingente de pretos para a escravatura.    No entanto, até ali o Gongo-Velho não tinha estória.

Já estavam bem velhos os dois irmãos quando se deram os acontecimentos por que se tornaram famosas as lavras do Gongo-Velho.

O principio do episódio ninguém sabe ao certo,    pois não sobrou um só de tantos para contá-lo ao mundo.    O que se sabe é que uma vez, à noitinha, os cativos se rebelaram e, num sítio afastado onde se encontravam depois do trabalho do dia, atacaram um dos senhores, aquele que costumava feitorear o serviço; atiraram-no por terra e lhe estraçalharam o corpo.

Consumado o crime, o bando revoltoso tomou o caminho da casa e entrou pelo retiro como uma horda de selvagens, aos berros, agitando no ar a ferramenta do trabalho, a gotejar o sangue do seu senhor. O outro fazendeiro, que estava à frente da casa esperando os escravos, viu logo que se tratava de uma rebelião. E, como o irmão não aparecesse, compreendeu logo que ele tinha sido vitima da sanha dos escravos rebelados.

Então, precipitou-se para a turba ululante com os punhos cerrados e, numa explosão de palavras ásperas, conseguiu impor-se e dominar a rebelião. Diante dessa atitude inesperada os escravos submeteram-se, perdendo a liberdade que haviam conquistado por algumas horas. E, restabelecida a ordem, recolheram-se á senzala, mais parecendo uma procissão de penitentes.

No dia seguinte, os escravos foram levados pelo capataz para trabalhar num lugar que ficava do lado oposto àquele em que, na véspera, se haviam rebelado e onde deviam jazer os despojos do velho que fora assassinado.

Conta-se que o irmão, solitário e em lágrimas, dirigiu-se ao local da tragédia e recolheu os restos sangrentos do companheiro, sepultando-o numa cova aberta por suas próprias mãos.

E tudo pareceu mergulhar no esquecimento. Uma tarde, tendo chegado a gente das lavras, o senhor em pessoa foi presidir à distribuição do rancho. Chegou e foi logo dizendo:

— Não sei porque sinto na alma uma alegria tão grande... Quero que vocês todos comam à farta!

Nesse dia foi da melhor qualidade a comida que serviu.

A um canto, o capataz, com o queixo apoiado no cabo do rebenque, olhava espantado para o amo, pensando que, com certeza, ele tinha enlouquecido.

Terminado o repasto, o próprio fazendeiro, tomando ao capataz as grossas chaves que ele trazia à cinta, abriu a porta da senzala e assistiu à entrada dos escravos. Todos, um a um, homens, mulheres, velhos e crianças, elevando humildemente as mãos negras e calosas iam pedindo sunscristo, com um grunhido deformado pelo uso.

Depois que o último escravo entrou, o velho meteu na fechadura a chave ferrugenta, fechou a senzala e atirou para o terreiro as chaves restantes. Encostou uma escada, a muro maciço, de taipa, subiu até lá acima e abriu um buraco no sapé da coberta. Então, seus olhos pouco a pouco puderam ver o interior da senzala, alumiado por candeeiros de azeite, presos à parede sem reboco.

Na meia claridade do recinto, lombrigou pelo chão como um tumultuar de vermes. Em diversos pontos já iam brilhando as labaredas de pequenas fogueiras de cavacos. Mais habituada a vista, agora o fazendeiro distinguia os corpos dos escravos acomodando-se pelo chão, numa promiscuidade animalesca de homens e mulheres, velhos e crianças. Súbito, um grito lancinante quebrou o silêncio daquele sepulcro de vivos. Todos voltaram-se para o lado de um infeliz que, de um salto, tendo desdobrado a estatura hercúlea no meio da senzala, estorcia-se horrivelmente, erguendo-se ou caindo de rastros, como a procurar meter-se pelo chão a dentro.

Não demorou e outro grito se fez ouvir. Depois, novo grito igualmente espantoso. E, numa sucessão aterradora, os prisioneiros iam caindo no chão negro da senzala, bracejando numa confusão infernal. Eram centenas de fantasmas numa dança macabra, numa agonia indescritível.

Durante certo tempo, o fazendeiro, lá de cima do teto, espiando pelo buraco que fizera no sapé, teve diante dos olhos uma visão do inferno.

Dali a pouco toda aquela agitação foi amainando e só ficou um indefinível resfolegar, soluçado e trêmulo, que por sua vez diminuiu até tornar-se em sepulcral quietude, em silêncio de morte.

Sem compreender o que estava se passando, o capataz colava o ouvido à porta da senzala, ou mergulhava o olhar pelo estreito orifício da fechadura. No fundo, sentia medo de acertar com a explicação daquele mistério. Quando tudo lhe pareceu terminado, lembrou-se do fazendeiro. Subiu pela escada e foi encontrá-lo estendido na coberta, com a cabeça metida no buraco que fizera no sapé encardido pela fumaça.    Parecia inteiramente absorvido nas cenas monstruosas que se tinham passado lá embaixo, no interior escuro da senzala.

Chamou por ele. Como não tivesse resposta, chamou-o de novo. Nada. Então, sacudiu-lhe o corpo. Estava morto. Tirou-o dali. O velho apresentava os olhos esbugalhados, mas extintos. Naquele espelho embaciado, devia ter ficado sua última visão: a dança macabra de tantos homens, mulheres, velhos e crianças, envenenados e presos, que chegaram à morte ao longo de horripilantes sofrimentos.

— Façamos oração, meus camaradas, para que seja aliviado em seu penar sem fim o velho fazendeiro, cuja alma sem descanso deve andar a estas horas vagando nas proximidades daquele sitio.

E, persignando-se, voltou à primitiva postura.

Fonte:
Rodrigo Otávio. Contos de Ontem e de Hoje. RJ: Ed. Guanabara, 1932.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 281


Cláudio de Cápua (Esses Adultos)


A confirmação de mais um casamento desfeito foi o pronunciamento do divórcio por incompatibilidade de gênios. Da separação permaneceu entre o casal um único elo, uma linda menininha com menos de dezoito meses.

A jovem mulher dispensara a pensão e o auxílio, pois, alta funcionária federal, não precisava de esmolas. Queria mesmo era sua liberdade. Assim sendo, ficou feliz da vida. Ele, por sua vez, herdara a fazenda do pai, no interior, e ia pra lá a fim de administrá-la. Como bons companheiros, apertavam as mãos sem ressentimentos.

A menininha ficou com a mãe, indo morar em Santos, pois Laura para lá havia sido transferida. Daí em diante, cada um levou a vida que pediu a Deus.

Ela encontrou outro príncipe encantado, afinado com o seu jeito de ser, um professor universitário, homem bom, que logo se afeiçoou à menina, que, inocentemente, o chamava de tio Victor.

Pouco mais de dois anos decorridos, a menina ouviu de sua mãe:

- Ana Maria, vá tomar seu banho. Vista roupinha nova, hoje você vai conhecer seu pai, que chegou de viagem.

A menina, com cerca de 4 anos, chega, pela mão da babá, até o pai, que a esperava no carro estacionado em frente ao prédio. Aquele homem elegante, bronzeado, que pela primeira vez via e chamava de pai, logo a cativou. Disse-lhe ele ter vendido a fazenda no interior e que, agora, iria ficar perto da filha, morando na cidade vizinha, São Vicente. Administrava uma firma construtora.

A presença do pai passou a ser uma constante nos fins de semana e isso já durava mais de um ano. Ana Maria estava feliz, ganhava bonecas, revistas, doces e passeios. E com o passar do tempo, mais e mais se apegava ao pai.

Ocorreu-lhe uma ideia. A pessoa de quem mais gostava depois da mãe era, inegavelmente, o pai. Que tal se conseguissem dar um passeio com a mãe e o pai juntos?

Assim ficou atenta, à espera de uma brecha para concretizar seu sonho.

Num dos sábados, ao sair para o passeio, passou pela sala e ouvia a mãe ao telefone:

- É da pizzaria Micheluccio? Gostaria de encomendar uma pizza de atum para viagem. Passo ai para pegá-la por volta das dezenove horas.

Como de costume, o pai perguntou-lhe o que queria fazer.

- Eu gostaria de ir ao cinema ver o filme do Batman e, depois, comer uma pizza de champignon no Micheluccio. Essa pizzaria fica ali na Conselheiro Nébias. Eu adoro a pizza de lá!...

Após o cinema, foram à pizzaria. Saboreada a pizza, a menina, esticando o programa, pediu mais um guaraná e depois uma mouse de chocolate.

O pai observava a filha um tanto inquieta, a indagar as horas várias vezes, sem tirar os olhos da porta.

Foi quando entrou Laura. Ana Maria levantou-se e, pegando a mãe pela mão, levou-a até a mesa onde estava o pai.

- Olá, Gilberto - disse Laura. Estão se divertindo?

Gilberto levantou-se, cumprimentando-a com um aperto de mão.

Ana Maria ficou imóvel.

Laura pediu desculpas pela pressa, pegou a pizza e saiu.

- Que foi querida? A mousse não está boa?

O que Ana Maria acabara de presenciar era muito decepcionante! Fizera de tudo para apresentar seu pai à sua mãe... e eles já se conheciam, sem nunca lhe dizerem nada!

- Esses adultos!...

(Revista Santos, Arte e Cultura - Janeiro 2008)

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

Silmar Bohrer (Croniquinha) 2


E a gente sai devagar a divagar pelos caminhos - esquinas, ribaltas, encruzilhadas - e não se dá conta de que talvez sejamos mais um autômato a estar perguntando como o OUTRO, da novela NOITE (Érico). "Quem sou ? De onde venho ? Para onde vou ? ".

Na verdade este mistério chamado vida, que ainda não conseguimos decifrar, é um enigma para o qual os seres que se dizem os inteligentes do planeta, não encontram respostas.

Como "donos", cultivam a ganância, o egoísmo, o preconceito. Armas poderosas que põem em risco a velha humanidade pelos séculos a fora.

TEMOS A EXALTAÇÃO DA BARBÁRIE.

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Sammis Reachers (Poemas Avulsos) 1


A MORTE DE SAMUEL RICARDO
Para Kivitz, o temeroso da morte

Estou sentado solitário em meu sofá,
nesta sexta-feira da longa Paixão,
e ao contemplar a janela,
a luminosidade que ela deixa passar
filtrada pela diáfana cortina de linho,
penso que um dia a Morte entrará
por esta mesma janela, arrombando-a;
será talvez pela tarde, uma tardezinha
de paz e livros e solidão como esta.
Entrará epifânica, com um estrondo
de trovão, a Morte – um dragão
de escamas lindas, azuis como o céu e o mar.
Entrará arrombando os ferros,
explodindo a casa, ela a Morte,
a coisa mais desejável depois do Rei.
****************************************
 
CREPÚSCULO DOS DEUSES: RAGNARÖK

Um Dia feito da escuridão
de todos os dias
o Dia em que Odin-o-exaurido
será devorado pelo lobo Fenris,
Thor-do-trovão tombará sobre o cadáver
da serpente-sem-fim, Iormungand

Você é um dos homens
eleitos pelo deus, guerreiro?
Afie pois os dois caminhos de sua espada,
as duas asas de seu machado firme
e caia como vaga sobre o conflito:
será tudo em vão,
pois ao fim e ao cabo
como a Ordem venceria o Caos?

Mas você terá combatido,
você terá deveras combatido
e não foi afinal para isso e para este Dia,
ó boneco de pó predestinado,
que o pai Odin criou os homens?
****************************************

LAMENTO À MANEIRA ANTIQUA

Um coração de tipo e viés cigano
valia-me mais que este meu, pacato
eu amaria as que me constrangem, sem recato
trocaria minha farda por colorido pano.

Beberia vinho em fundas taças de cristal
sem atinar para a vil aparência do mal;
deitaria meu rosto de pranto em todo colo
e redimiria de o vazio delas todo o dolo...

Mas temo e tremo, pela alma e destino meus;
recolho-me à minha taba, espero em meu Deus.
****************************************

MAR OCIDENTAL

Em meio à praça
Em meio ao mar
Espero com flores
O cortejo passar

E além (a)dentro
(d)os livros, Álcoois de Guillaume*
E Paul**, no Cemitério Marinho
Ou no Waste Land
calçando as botas de Eliot***

Meu amor acabou
E perambulo pelo cais,
Praças e mares
mercando narcóticos e livros

E em silêncio busco a Ti,
Deus maltrapilho,
Para que me ressuscite
- - - - - -
*Guillaume Apollinaire
**Paul Valéry
***T.S. Eliot

****************************************

CANTIGA DOS MOLEQUES FRUTEIROS

Pedrinho tem fome de mato,
das frutinhas que tantas dão por lá:

Cajuí, taperebá, araticum e cajá
Cambuci, guabiroba, cagaita e maracujá

Juca menino erradio
pulou a cerca do sítio,
e lá se foi, frutas a roubar:

Pindaíva, marôlo, sorvinha e biribá
saguarají, feijoa, sapoti e joá

Gustinho não poupa ninguém
nem atina se a fruta é veneno;
se tem polpa pouca
ou se nem polpa tem,
a de vez ele come,
a passada também:

Mangaba, guriri, tucum e butiá
uarutama, bacupari, marmelinho e ingá

Renato é um bicho-do-mato:
chafurda nas matas,
rompe pelos florestins
sabe o tempo de cada fruta,
e deita sozinho a fazer seus festins:

Babaçu, inajá, catolé e bacuri
sapota, cupuaçu, araçá e cacauí

Fernandinho é moleque mateiro:
gosta é de pelar pé de árvore
no pomar da avó.
É fruta que não acaba tão cedo
e lá vai ele, arteiro, trepar no arvoredo:

Grumixama, cubíu, marmixa e abiu
guaburiti, pitangatuba, murtinha e camu-camu

Saltam riacho, cerca de roça,
mata fechada e o que se lhes dá;
Comem de tudo e tudo sem pressa,
sorvendo o bom doce de tudo o que há:

Acumã, pequiá, jameri e jaracatiá
aboirana, curriola, fruta-de-tatu e cambuiú.

Fonte:
Sammis Reachers. Pulsátil: poemas canhestros & prosas ambidestras. e-book. 2014.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) A Marcha da Produção


Maringá, 18 de outubro de 1958. Tudo pronto para a partida da Marcha da Produção, rumo ao Rio de Janeiro, para um protesto em frente ao Palácio do Catete, então sede do governo federal. Juscelino Kubistchek era o presidente da República. Seria um evento épico, provavelmente o mais marcante de toda a história da cafeicultura.

Produtores de café convalesciam de uma série de desoladoras geadas, situação agravada por longas secas e incêndios nas áreas rurais. A economia da região, que dependia fundamentalmente da rubiácea, padecia fortemente as consequências da crise. Para completar, o governo JK parecia insensível e batia pesado nas costas da agricultura com uma perversa política de preços para os produtos do campo e, pior ainda, impondo sobre o café um malfadado confisco cambial. Daí estarem todos com os nervos à flor da pele, criando clima para a preparação de um vigoroso movimento a que se deu o nome de “Marcha da Produção”.

Café não é brinquedo do governo”, diziam as faixas empunhadas por homens, mulheres, jovens, reunidos em Maringá para a partida em direção à antiga capital. O esquema era assim: sairiam daqui duas caravanas, a de Maringá e a de Paranavaí, que se juntariam adiante com as caravanas de Londrina e Jacarezinho. Em Ourinhos, entrariam na Marcha os cafeicultores paulistas, aos quais se somariam mais à frente produtores mineiros, fluminenses e capixabas. Seria um tsunâmi de gente do campo batendo às portas do Catete.

Como tudo o que se referia ao café afetava a vida de toda a população do norte-noroeste do Paraná, o movimento recebeu total apoio dos bispos de Maringá, Dom Jaime Luiz Coelho, e de Londrina, Dom Geraldo Fernandes, bem como de Associações Comerciais, Clubes de Serviços e outras entidades. Na liderança dos cafeicultores, destacavam-se o maringaense Renato Celidônio e o londrinense Álvaro Godoy.

Ao som de rojões, a caravana pegou a estrada após a bênção de Dom Jaime, que de batina branca foi no primeiro jipe, ao lado de Celidônio. Centenas de veículos – jipes, caminhões, automóveis, tratores. A expectativa era chegar ao Rio com cerca de 40 mil pessoas.

Deu-se, porém, que a Marcha foi interrompida antes de chegar a Marialva. O caminho estava bloqueado por uma barricada formada por soldados do Regimento de Infantaria do Exército de Ponta Grossa. Ante os manifestantes, que insistiam em romper a barreira, o major comandante, do alto de um tanque, fez o apelo: “Parem, irmãos, em nome da lei”. Dom Jaime e Celidônio tentaram convencer o militar a retirar a barricada, mas não houve jeito. Para evitar as consequências de um enfrentamento, a Marcha acabou ali.

Acabou, mas não acabou. A repercussão foi enorme em todo o país. O presidente JK tomou um susto ao ser informado do tamanho do protesto. Medidas importantes foram tomadas. Não a ponto de deixar contentes os cafeicultores, mas dando para acalmar um pouco os ânimos.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 23-4-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 280


Stanislaw Ponte Preta (Pedro — O Homem da Flor)


Se você se enquadra entre aqueles que se dizem boêmios ou, pelo menos, entre aqueles que costumam ir, de vez em quando, a um desses muitos barzinhos elegantes de Copacabana, é provável que já tenha visto alguma vez Pedro - o homem da flor. Se, ao contrário, você é de dormir cedo, então não. Então você nunca viu Pedro — o homem da flor - porque jamais ele circulou de dia a não ser lá, na sua favela do Esqueleto.

Quando anoitece Pedro pega a sua clássica cestinha, enche de flores, cujas hastes teve o cuidado de enrolar em papel prateado, e sai do barraco rumo a Copacabana, onde fica até alta madrugada, entrando nos bares — em todos os bares, porque Pedro conhece todos — vendendo rosas. Quando a cesta fica vazia, Pedro conta a féria e vai comer qualquer coisa no botequim mais próximo. Depois volta para casa como qualquer funcionário público que tivesse cumprido zelosamente sua tarefa, na repartição a que serve.

Conversei uma vez com Pedro — o homem da flor. Já o vinha observando quando era o caso de estar num bar em que ele entrava. Via-o chegar e dirigir-se às mesas em que havia um casal. Pedia licença e estendia a cesta sobre a mesa. Psicologia aplicada, dirão vocês, pois qual o homem que se nega a oferecer uma flor à moça que o acompanha, quando se lhe apresenta a oportunidade? Sim, talvez Pedro seja um bom psicólogo mas, mais do que isso, é um romântico. Quando o homem mete a mão no bolso e pergunta quanto custa a flor, depois de ofertá-la à companheira, Pedro responde com um sorriso:

— Dá o que o senhor quiser, moço. Flor não tem preço.

Como eu ia dizendo, conversei uma vez com Pedro e, desse dia em diante, temos conversado muitas vezes. Ele sabe de coisas. Sabe, por exemplo, que a rosa branca encanta as mulheres morenas, enquanto que as louras, invariavelmente, preferem rosas vermelhas. Fiel às suas observações, é incapaz de oferecer rosas brancas às mulheres louras, ou vice-versa. Se entra num bar e as flores de sua cesta são todas de uma só cor, não coincidindo com o gosto comum às mulheres presentes, nem chega a oferecer sua mercadoria. Vira as costas e sai em demanda de outro bar, onde estejam mulheres louras, ou morenas, se for o caso.

O pequeno buquê de violetas — quando as há — é carinhosamente arrumado pelas suas mãos grossas de operário, assim como também as hastes prateadas das rosas. Saibam todos os que se fizeram fregueses de Pedro — o homem da flor — que aquele papel prateado artisticamente preso na haste das rosas e que tanto encanta as moças foi antes um prosaico papel de maços de cigarros vazios, que o próprio Pedro recolheu por aí, nas suas andanças pela madrugada.

Sei que Pedro ama a sua profissão, tira dela o seu sustento, mas acima de tudo esforça-se por dignificá-la. Não vê que seria um mero mercador de flores! Lembro-me da vez em que, entrando pelo escuro do bar, trouxe nas mãos a última rosa branca para a moça morena que bebia calada entre dois homens. Quando os três levantaram a cabeça ante a sua presença, pudemos notar — eu, ele e as demais pessoas presentes — que a moça era linda, de uma beleza comovente, suave, mas impressionante. Pedro estendeu-lhe a rosa sem dizer uma palavra e, quando um dos rapazes quis pagar-lhe, respondeu que absolutamente não era nada. Dava-se por muito feliz por ter tido a oportunidade de oferecer aquela flor à moça que ali estava. E sem ousar olhar novamente para ela, disse:

— Mais flores daria se mais flores eu tivesse!

Assim é Pedro — o homem da flor. Discreto, sorridente e amável, mesmo na sua pobreza. Vende flores quase sempre e oferece flores quando se emociona. Foi o que aconteceu na noite em que, mal chegado a Copacabana, viu o povo que rodeava o corpo do homem morto, vítima de um mal súbito. Só depois é que se soube que Pedro o conhecia do tempo em que era porteiro de um bar no Lido. Na hora não. Na hora ninguém compreendeu, embora todos se comovessem com seu gesto, ali abaixado a colocar todas as suas flores sobre as mãos do homem morto. Pois foi o que Pedro fez, voltando em seguida para a sua favela do Esqueleto.

Naquela noite não trabalhou.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996.