sábado, 25 de setembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 7: Adalberto Dutra Rezende

 

Fernando Sabino (O Preço da Admissão)

DE UM velho escritor, procurando incentivar outro ainda jovem:

— O escritor é um homem que passa a vida conversando consigo mesmo. Só há uma verdadeira vantagem em envelhecer: é que, com o correr do tempo, a conversa vai ficando cada vez mais interessante.

De um comentário do “Time” sobre Hemingway:

O segredo da autenticidade de tudo que escrevia estava em que sabia olhar a verdadeira face da vida, testemunhando o que acontecia ao seu redor como se fosse pela última vez, ou seja: como se fosse morrer no dia seguinte.”

E foi o que o matou: devia olhar o que acontecia ao seu redor como se fosse pela primeira vez, ou seja: como se tivesse acabado de nascer. Porque só devemos escrever sobre aquilo que (ainda) não sabemos.

Conselho do próprio Hemingway a um jovem escritor:

Procure lembrar-se dos ruídos e do que eles lhe diziam. Descubra aquilo que lhe causou emoção, a ação que o excitou. Então escreva tudo isso, da maneira mais clara possível, para que o leitor veja também e tenha o mesmo sentimento que você experimentou. E não se esqueça: prosa é arquitetura e não decoração interior. O barroco já passou.”

O barroco já passou, mas prosa não é nem arquitetura nem decoração interior. É prosa mesmo — e tudo mais é literatura.

De uma entrevista de William Faulkner, pouco antes de sua morte:

“O fracasso faz bem à gente. Se somos bem sucedidos durante muito tempo, alguma coisa morre, seca e sucumbimos sob nosso próprio peso, como aconteceu a tantos impérios e dinastias.”

E ainda:

Acho que o tema, a história, cria seu próprio estilo. Se a gente perde muito tempo se preocupando com o estilo, acaba não sobrando nada além do estilo.”

O que, em última análise, quer dizer que ter estilo é escrever sem estilo algum. Ou, segundo Jules Renard: “O estilo, este esquecimento de todos os estilos.”

Nem com isso o problema do escritor deixa de ser fundamentalmente um problema literário — e eis onde reside o sofisma de seu destino, do qual ele procura inutilmente escapar.

Quando se possui a ideia, a palavra jamais há de faltar.” De uma carta de Flaubert a George Sand. Desmentido por Jules Renard, cujo medo era de “acabar não passando de um Flaubert de salão, inofensivo”: “Percebo que serei atormentado pela frase. Dia chegará em que não serei capaz de escrever uma só palavra.

De Paulo Mendes Campos: “Quem tem facilidade de escrever, não é escritor: é orador.”

De Sinclair Lewis, sobre a dificuldade de colocar-se na postura psicológica (e física) de quem vai escrever:

Escrever é a arte de sentar o traseiro numa cadeira.

E por último, o conselho de Carlos Drummond de Andrade a um jovem escritor:

Só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode deixar.

Há muita vocação de escritor por aí, mas ainda maior é o número dos que pensam que para escrever basta aprender a ler. Por isso é que no Brasil há mais escritores que alfabetizados.

As cartas de leitores que recebo, na sua maioria, se não vêm logo acompanhadas de uma produção literária qualquer, revelam uma pretensão de escritor em perspectiva, tentando originalidade, ou querendo parecer natural. Os poucos que se salvam da mediocridade valem mais pelas qualidades humanas que por uma vocação para a literatura. A estes, eu diria que para se realizar integralmente como homem, ninguém precisa ser artista, e muito menos escritor.

Quem puder fugir, que fuja — se for possível não escrever, siga o conselho de Drummond, não escreva. A vocação certamente estará noutra atividade e pode ser espoliada para sempre.

Ainda agora recebo duas cartas de leitores que se viram estimulados a também escrever crônicas. A crônica parece o gênero mais fácil, e realmente é, para os que não ousam ou não merecem tentar uma experiência literária mais duradoura. (O verdadeiro escritor em geral busca nela apenas um meio de vida que se oferece, mas consciente muitas vezes de estar trocando em miúdos as exigências de sua vocação.) Um dos missivistas chegou mesmo a dizer que interrompeu o curso de medicina para “tentar as letras”. Pelo que escreveu, estou certo de que daria um excelente médico.

Não direi isto a ele, em verdade não lhe direi nada: se for mesmo um escritor, continuará escrevendo, a despeito do que eu lhe disser ou deixar de dizer. Se não for, não há de ser conselho meu que o salvará do equívoco.

E é uma pena, porque o Brasil anda precisando tanto de médicos.

Não é a primeira vez que me vêm às mãos originais desta espécie. Trata-se, agora, de uma senhora que “nasceu para fazer alguma coisa”, conforme teve ocasião de me declarar. Sabendo-a casada, ocorreu-me aconselhar que fizesse filhos — mas já os tinha, e neste caso melhor fora que deles cuidasse. Estou certo de que, se canalizasse para os afazeres do lar e a vida em família o esforço despendido com a sua veleidade literária, realizaria uma obra-prima. Não sei se me entendeu. Não chegou a dizer-me o que pretende, escrevendo um romance — se acaso me perguntasse o que pretendo escrevendo o meu, não saberia responder-lhe; seja como for, os problemas que certamente a afligem não se solucionam com a vaidade de escrever e publicar um livro, por mais sucesso que o mesmo faça. E este, não tenho a menor dúvida de que não fará.

É um trabalho que não penetra nem os mais longínquos subúrbios da literatura. Fosse uma tentativa de principiante na carreira literária, e os defeitos mais evidentes lhe serviriam de referência para o aprimoramento na arte de escrever. O que acontece, porém, é que ela, sem necessidade alguma de exprimir-se literariamente, busca afirmarse numa atividade artística que transcenda às limitações de sua vida cotidiana. E escolhe a literatura, como poderia ter escolhido o bordado ou a culinária.

A verdade é que ninguém se mete a projetar e executar um edifício sem ser arquiteto, como não se prestaria sequer a idealizar um monumento sem conhecimento algum no campo da escultura. É exatamente pelo fato de lidarmos na vida diária com o instrumento peculiar à literatura, a linguagem escrita, que tantos embarcam na ilusão de que escrever dispensa iniciação, aprendizado e disciplina de suas aptidões. Sem um mínimo de noção do que seja a literatura, e até mesmo do que seja sintaxe ou ortografia, o diletante sai a todo vapor para começar por onde os outros acabam. E o resultado é a eclosão, aqui e ali, das mais desastrosas improvisações.

Mas pode acontecer — e tem acontecido — que a tentativa frustrada não seja senão um passo em falso no caminho de decepções, renúncias e sacrifícios que levarão dolorosamente o autor à sua realização artística, pela exigência feroz de uma vocação.

Não creio que este seja o caso que tenho em mãos, como tantos outros. Se for, consola-me a certeza de que essa vocação se realizará, a despeito da opinião de quem quer que seja, contra tudo e contra todos.

Daí a sabedoria de Manuel Bandeira, respondendo a uma jovem que lhe perguntou qual o conselho que ele daria a quem quisesse iniciar-se na literatura:

Apenas este: não pedir conselho a ninguém.

Escrevo diariamente desde os quinze anos de idade. Bem ou mal, já gastei toneladas de papel e meus dedos até parecem mais curtos de tanto martelar as teclas da máquina. Posso dizer que passei a vida alinhando palavras, teimoso como um jumento, na tentativa de me exprimir literariamente. E se continuo insatisfeito, pelo menos me satisfaço com a impressão de que estou sempre começando e cada vez há mais a aprender.

Por isso me espanta que alguém busque se iniciar na literatura sem mais nem menos, pouco ou quase nada querendo dar de si. E omitindo o essencial a alguém que se inicia: a sua própria experiência oferecida em sacrifício.

Não estou me referindo ao que se profissionaliza na prática da atividade literária como meio de vida. Falo naquele que se dá um destino, cujo noviciado exige esta espécie de provação. É o primeiro passo — o espetáculo de si mesmo que o escritor tem a oferecer, expondo-se à curiosidade ou mesmo à execração pública — sem o qual os outros passos não virão. Talvez seja a isso que Machado de Assis queria se referir, quando disse que “alguma coisa temos de sacrificar”.

Numa carta de Scott Fitzgerald encontro alguns conselhos a um jovem escritor, que nos falam exatamente no sacrifício exigido:

Você tem de vender seu coração, suas reações mais poderosas, e não apenas as pequenas coisas que o tocaram ligeiramente, as pequenas experiências que você poderá contar ao jantar. Isso é especialmente verdadeiro quando você começa a escrever, quando não desenvolveu ainda os recursos com que prender os outros ao papel, quando nada tem da técnica que leva tempo para aprender. Quando, em suma, você tem apenas emoções para vender. O amador, vendo que o profissional, depois de aprender tudo que podia em matéria de escrever, consegue pegar um assunto trivial, como as reações mais superficiais de três moças comuns, por exemplo, e dar-lhe encanto e graça — o amador pensa que ele ou ela pode fazer o mesmo. Mas o amador só consegue realizar sua habilidade de transferir emoções a outra pessoa através do expediente desesperado e radical de arrancar do coração a trágica história de seu primeiro amor, e expô-la nas páginas para que os outros vejam. Este, de qualquer forma, é o preço da admissão.

Era o que Mário de Andrade procurava dizer-me, afirmando apenas que “Beethoven compôs primeiro a Heróica para depois compor a Pastoral”. Fitzgerald vai mais longe:

Alguém disse certa vez: um escritor que consegue olhar um pouco mais profundamente a sua própria alma e a alma dos outros, encontrando ali, graças a seu talento, coisas que ninguém jamais viu ou ousou dizer, aumenta com isso o âmbito da vida humana. Eis porque o escritor jovem, quando chega à encruzilhada do que dizer e do que não dizer, no que se refere a caráter e sentimento, é tentado a se deixar levar pelo já conhecido, admirado e aceito correntemente, pois escuta uma voz sussurrando dentro de si mesmo: ninguém se interessaria por este meu sentimento, este ato sem importância — portanto deve ser apenas peculiar a mim, não deve ser universal, nem interessante, nem mesmo certo. Mas se suas qualidades são poderosas — ou se ele tem sorte, como preferir — outra voz nessa encruzilhada o fará escrever tais coisas aparentemente insólitas e sem importância, e isso, nada mais, é o seu estilo, sua personalidade — eventualmente todo ele como artista. Aquilo que tentou jogar fora, ou que muito frequentemente jogou mesmo fora, vem a ser o toque de graça que o salvaria. Gertrude Stein tentou exprimir pensamento semelhante ao dizer — referindo-se mais à vida que às letras — que lutamos contra as nossas qualidades mais excepcionais até cerca dos quarenta anos, quando então descobrimos, tarde demais, que elas compunham o nosso verdadeiro ser. Eram a parte mais íntima de nós mesmos, que devíamos ter nutrido e acalentado.

E isso é tanto mais expressivo, se referido por alguém que, por dever de ofício, tem-se limitado tantas vezes a escrever sobre “as coisas que o tocaram ligeiramente, as pequenas experiências que poderia contar ao jantar

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Lima Barreto (Contos Argelinos) O Anel de Perdicas; Os Kalogheras

 
O ANEL DE PERDICAS

O reino não era completamente independente, mas era quase como se assim fosse. Dependia do império em tudo que tocasse as relações com os países estrangeiros e não podia ter exército próprio.

O seu rei não era escolhido por força da primogenitura. Alguns sujeitos avançados tinham mostrado a desvantagem de o filho suceder ao pai no trono, e resolveram que o herdeiro fosse indicado por uma assembleia de notáveis a que chamaram - a dieta.

Governava nesse tempo o reino — El-Sulida, príncipe velho, de pouca barba, curto de pernas, rico de muitas fazendas, que desejava do fundo d'alma povoadas de escravos.

Sulida tinha encaminhado bem os filhos nos cargos do reino e do império e vivia, a contento de todos, distribuindo governo mais ou menos com sabedoria.

Além do desgosto que lhe ia n'alma por não ter mais escravos negros nas suas propriedades agrícolas, um dos seus pesares íntimos era não passar ao filho o trono que ocupava.

Ninguém suspeitava dessa sua mágoa secreta, por isso todos diziam que Sulida era um príncipe perfeito, respeitador das leis e desejoso da igualdade de seus povos, porque se bem que aquilo lá fosse reino, era legal que ninguém tivesse privilégios.

Uma bela manhã, fosse devido à idade avançada do soberano, fosse devido a outro qualquer motivo, el-rei Sulida amanheceu muito doente e os médicos que foram chamados declararam que o príncipe poucos dias tinha de vida.

Os seus ministros trataram de reunir logo a dieta, para que ela escolhesse o sucessor.

Reunida a tal dieta, não chegaram os seus membros a acordo algum. Todos eram candidatos, de modo que ninguém podia escolher o sucessor de Sulida, a não ser que o sucessor fosse o próprio eleitor, isto é: o desejo de cada um era votar em si mesmo.

Resolveram então apelar para a assembleia das cidades e vilas, isto é, para uma convenção maior, composta de representantes de todos os municípios do reino.

Reuniu-se essa convenção, mas não chegaram a acordo algum, após temíveis bate-bocas. Afinal, no fito de conciliar as várias correntes da política do reino, concordaram em deixar a escolha ao alvitre do soberano moribundo. Foram a ele e falaram-lhe. Ele respondeu:

— Quem deve ser o rei é Sancho.

Foi geral o espanto. Poucos conheciam esse Sancho e ninguém atinava com o motivo da escolha. Afinal vieram a saber que o obscuro Sancho estava noivo ou coisa parecida da filha de Sulida.

Está aí como um bom pai de família procede: não podendo deixar o trono ao filho, deixou-o ao futuro marido da filha.

Houve muito barulho no reino, apesar de não dizerem os cronistas se Sancho casou-se mesmo com a princesa filha de Sulida.
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OS KALOGHERAS

O sucesso do polemarco Kalogheras na retumbante mobilização das tropas nacionais para a gloriosa expedição da Bahia causou pasmo a todos, inclusive o basileus Epitaphio.

Entretanto a nós um tal acontecimento não nos trouxe nenhuma surpresa, porquanto conhecíamos de há muito as virtudes guerreiras dos Kalogheras, desde o mais remoto ancestral do atual ministro que foi o fulminante Alexandre da Macedônia, cuja fama enche o mundo e aborrece os meninos estudantes de história na indagação de saber se ele foi ou não foi o maior general de todos os tempos.

Os Kalogheras são originários da Macedônia e os outros gregos, inclusive Plutarco, falam neles aqui e ali, louvando-lhes as virtudes guerreiras.

Há alguns, porém, da Beócia. Cremos mesmo que já o velho Homero, na Ilíada, tem um verso em que se alude a altos feitos dessa família predestinada; o certo, porém, é que, nas épocas últimas, eles sempre se mostraram guerreiros de primeira ordem. Quando os turcos conquistaram e tomaram o Império Bizantino e suas restantes províncias, os Kalogheras, não tendo a quem oferecer as suas aptidões bélicas, puseram-se a serviço dos osmanlis, pelo que os sultões respectivos deram-lhes grandes honras e muitos cequins de ouro.

Corre que, entre as proezas dos Kalogheras, há a de ter ajudado a bombardear o Partenon de Atenas, feito glorioso que toda gente atribui a autoria tão-somente aos turcos, mas que, na verdade, nela tomaram parte muitos gregos.

Com a emancipação grega, os Kalogheras, não podendo suportar a admiração de um rei estrangeiro, imposto pela Inglaterra e pela França, emigraram, uns, e outros entregaram-se à guerra nacional de perturbar o comércio marítimo dos mares do Levante, sobretudo no do arquipélago.

As duas únicas grandes potências marítimas daquelas épocas, a França e a Inglaterra, fizeram uma guerra feroz e inumana a esses patriotas gregos e a maioria dos Kalogheras foi morta, sem julgamento nem outra qualquer formalidade, nos navios de guerra ingleses e franceses, quando neles caíam como prisioneiros.

Uma raça guerreira dessas, em cujo sangue há certamente muitas gotas do sangue do turco combativo, não podia deixar de revelar no nosso atual ministro da Guerra, que dela descende, uma capacidade extraordinária e uma forte alegria que mal se faz inteirar, na tática e, feroz, na estratégia de uma guerra civil.

Quem sai aos seus, não degenera.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Adega de Versos 47: Divenei Boselli

 Pintura obtida no site da Amazon

VI Concurso de Trovas de Cachoeira do Sul/RS – Prêmio Carolina Ramos (Prazo prorrogado: 31 de outubro)


1. O  VI CONCURSO DE TROVAS DE CACHOEIRA DO SUL, promovido e realizado pela UNIÃO BRASILEIRA DE TROVADORES, Seção de Cachoeira do Sul, obedecerá a regulamentação abaixo.

2. Para efeito deste concurso, entende-se por TROVA a composição poética (poema) de quatros versos (linhas) setissilábicos, rimando o 1° com o 3° e o 2° com o 4°, expressando um sentido completo.

3. Prazo:
 
31 de Outubro de 2021

4. Tema para todas as categorias:
 
JORGE AMADO (Líricas/Filosóficas)

 
5. Categorias
 
Categoria A - Nacional/internacional

Categoria B - Novos Trovadores

Categoria C – Estadual (RS)

6. Acima da trova o autor deve colocar a categoria na qual está concorrendo.

7. Não é obrigatório constar o nome do homenageado na composição da trova.

8. Máximo de 2 trovas por autor.

Remessa exclusivamente por e-mail:    

tudoepossivelw7@gmail.com

9. Serão contemplados os trovadores premiados nas 3 categorias com certificados digitais a serem enviados por email.

10. O corpo de jurados será formado por trovadores de reconhecido valor literário, já premiados em diversos concursos, indicados pela entidade promotora do evento.

11. Os casos omissos serão resolvidos pela diretoria da entidade promotora do evento.

Jaqueline Machado
Presidente da UBT – Seção de Cachoeira do Sul

Lima Barreto (Contos Argelinos) A Solidariedade de Al-Bandeirah; O Reconhecimento

A SOLIDARIEDADE DE AL-BANDEIRAH


Dos principados vassalos que constituíam o reino de Al-Patak não foi só Al-Bandeirah que não quis reconhecer Abu-Al-Dhudut como sultão.

O canato de Hbaya também, por intermédio do seu príncipe reinante, sempre protestou contra a usurpação. Ao contrário do primeiro, esse principado era trabalhado por grandes dissensões internas. Havia mais de cinco ou seis pretendentes ao seu trono e não existia entre os seus habitantes nenhuma harmonia de vistas.

A população com o seu gênio vivaz, com a sua queda para a eloquência, com a sua ligeireza de espírito, muito concorria para essas divisões e ela é de gênio muito oposto à de Al-Bandeirah, cuja gente é tardia, taciturna e cheia de um ingênuo orgulho de que são os primeiros de Al-Patak. Explorado habilmente, pelos governantes, esse último sentimento da população daquela província, foi-lhes sempre fácil obter dela uma quase unanimidade. Faziam uma ponte, uma torre, um bueiro e logo mandavam proclamar que era o primeiro de Al-Patak. O povo do canato é ingênuo, como um alemão, acreditava na coisa, ficava muito contente e escolhia para as altas funções os membros de três ou quatro famílias que o exploravam.

Dessa forma, toda a resistência à usurpação de Abu-Al-Dhudut estava centralizada em Al-Bandeirah.

Acontece, porém, que, ao contrário do que era de esperar, Hbaya demonstrou mais firmeza e o seu governo chegou a resistir às tropas que o invadiram, com armas na mão.

A coisa foi dolorosa e triste, pois a capital de Hbaya foi bombardeada, as suas casas incendiadas, o príncipe reinante andou daqui para ali, fugindo à sanha dos soldados de Abu-Al-Dhudut.

Infelizmente, devido às facções que dividiam a gloriosa província, a resistência não pôde ser eficaz e foi quase nula em resultados.

Esse episódio comovedor do bombardeamento da capital de Hbaya se deu justamente no dia em que o príncipe irmão de Abu-Al-Dhudut recebia no tesouro de Al-Bandeirah trezentos e cinquenta mil piastras, que, como já é sabido, ficavam reduzidas a trezentos e quinze mil.
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O RECONHECIMENTO

A organização política do Al-Patak não é assim tão absoluta como se pode supor.

Em tese o sultão tem todos os poderes, mas, devido à tradição, à liberalidade de alguns soberanos, o reino possui tribunais e juízes independentes que decidem soberanamente sobre os assuntos que lhes são afetos.

Além disto, Al-Patak possui uma espécie de parlamento – o "divã" — que representa ao rei sobre as necessidades dos povos.

Cada província, conforme a população, dá um certo número de representantes que o são durante alguns anos, uns durante mais anos e outros menos.

Logo que Abu-Al-Dhudut usurpou o trono, tratou de reformar essa espécie de conselho de Estado.

Não há quem não queira fazer parte dele, não só pelos vencimentos que percebem os seus membros, como também pelos presentes que recebem, graças à influência que possuem, podendo obter dos soberanos tudo o que desejam.

O príncipe irmão de Abu-Al-Dhudut foi logo eleito membro do "divã" e feito chefe dele.

Sendo homem esperto e sagaz, conhecendo perfeitamente os desejos de todos os habitantes de Al-Patak de serem do famoso conselho, tratou de regular a entrada nele, ao jeito mais propicio aos seus interesses.

Com este, negociava isto; com aquele, barganhava aquilo. Ia fazendo o seu negócio, quando se tratou do reconhecimento de cide Pen Ben-Forte. Tinha sido, esse ulemá, juiz durante muito tempo, de forma que conhecia o irmão do sultão, quando advogava.

O seu direito à entrada no "divã" era inconcusso, mas o príncipe queria que ele lhe desse dez mil piastras para tornar efetivo o seu direito.

Pen Ben-Forte não esteve pelos autos e lembrou a sua Alteza o fato de ter ele obtido, revelando uma sentença dele, cide, dinheiro ao mercador — sentença mais tarde reformada.

Pen Ben-Forte tinha disso documentos e prometeu publicá-los, se não entrasse no “divã".

Não é preciso contar mais; basta dizer que o antigo juiz entrou e foi reconhecido membro do conselho.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.
Este livro pode ser baixado na íntegra, em pdf, no Domínio Público

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 3

AVANCEMOS

Vara a tormenta de granizo e lama
Que te vergasta a noite escura e fria,
E, erguendo em prece a taça da agonia,
Sorve gemendo o fel que se derrama.

De alma cansada e pensamento em chama,
Ouve em silêncio a enorme gritaria
Da turba que te fere e calunia
Descendo para a treva que a reclama.

De peito aberto por sinistras lanças,
Sob as pedras e farpas em que avanças,
Bendize a senda estreita e atormentada!...

Chora, mas segue alçando a luz sublime,
Que, além da sombra que te envolve e oprime,
Fulgura o céu de nova madrugada…
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BENDITA SEJAS

Bendita sejas, mão piedosa e pura,
Em cujos doces dedos, de mansinho,
A caridade tece o brando arminho
Com que afagas miséria e desventura.

Estrela fulgurante em noite escura,
És a consolação, a paz e o ninho
Dos aflitos, que choram no caminho,
Sob as chagas da sombra e da amargura...

Mão que repartes luz, pão e agasalho,
Coroada na glória do trabalho,
A refulgir em todas as igrejas!...

Por toda a gratidão que te abençoa,
Mão que ajudas, contente, humilde e boa,
Deus te guarde, feliz! Bendita sejas!…
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BENDIZE

Feliz de ti se choras e bendizes
A angústia que te oprime e dilacera,
Guardando a luz da fé, viva e sincera,
No coração marcado a cicatrizes!

Ditosa a crença que não desespera
No turbilhão das horas infelizes,
Entrelaçando as fúlgidas raízes
No País da Divina Primavera!

Suporta a sombra que precede a aurora,
Louva a pedrada que nos aprimora,
Trabalha e espera ao temporal violento!...

E, um dia, sem a carne em que te abrasas,
Remontarás ao Céu com as próprias asas,
Purificadas pelo sofrimento.
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CAMINHO DE REDENÇÃO

Este o caminho da ascensão sublime
E o carro excelso para a luz da glória :
A subida de angústia transitória
E a cruz do amor a que o amor se arrime...

Segue, viajar, sem que te desanime
A visão da paisagem merencória
Formada em pedra da terrestre escória,
Nem te detenha a voz que te lastime.

Segue amparado à fé serena e pura,
No bem que a nada fere nem censura,
No amor que em tudo habite ou sobrenade...

Ama somente, ajuda, serve e guia
E chegarás triunfante e livre, um dia,
A redenção do amor na Eternidade.
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CANÇÃO MATERNA

Filho do coração, além das dores
Da cruz de pranto que te dilacera,
Fulge, sublime, excelsa primavera
Ao sol do amor de todos os amores.

Agradece os espinhos e amargores
Em que te afliges sob a longa espera...
E lançando ao futuro a alma sincera,
Vara, gemendo, os trilhos redentores.

Chora, louvando as lágrimas doridas
Que nos lavam as sombras de outras vidas
Como forças de imensa tempestade...

Trabalha, serve e crê, ama e confia
E ascenderás à glória da alegria
No coração de luz da Eternidade.

Fonte:
Francisco Cândido Xavier. Auta de Souza. Ebook obtido na Biblioteca Espírita.

Contos e Lendas do Mundo (A Baba do Passarinho)

Há tempos atrás, num país longe daqui, existia um rei muito sábio e bondoso. Seus súditos o amavam e respeitavam, pois no reino todos viviam felizes.

Um dia, porém, correu pelo país uma notícia muito triste: o rei estava doente, vítima de um mal terrível que o deixara cego dos dois olhos. E os médicos da corte, por mais que se esforçassem, nada conseguiram fazer para curá-lo. Vieram também outros médicos, de todos os cantos do mundo, mas nenhum deles, nem mesmo o mais sábio de todos, conseguiu encontrar a cura para a estranha doença do rei.

O reino inteiro mergulhou, então, numa profunda tristeza. O pobre rei, achando que só um milagre poderia salvá-lo, passou a ficar horas e horas rezando, pedindo a Deus que o fizesse voltar a enxergar.

Até que uma noite, enquanto rezava, o rei ouviu uma voz suave, que lhe disse:

"Longe, muito longe, no lugar onde o seu reino termina, há uma fada, presa num castelo de ferro e guardada por um feroz dragão. Na sala ao lado de onde ela fica trancada, também está prisioneiro um passarinho, numa gaiola de diamantes. Esta ave é encantada e, quando canta, deixa escorrer pelo bico uma baba muito fina e perfumada. Se alguém juntar essa baba e passá-la por três vezes nos olhos de um cego, ele voltará a enxergar imediatamente. Para se apoderar do pássaro encantado, é preciso antes libertar a fada do encantamento. E o ousado jovem que realizar esse feito terá como recompensa a mão da fada em casamento, ela que é na verdade uma princesa muito rica e poderosa."

Depois de dizer isso, a voz se calou tão misteriosamente quanto havia surgido. E o rei não conseguiu dormir o resto da noite, tamanha era sua ansiedade.

No dia seguinte, mal o sol nasceu, mandou anunciar a todo o povo a revelação que lhe havia sido feita. Os jovens corajosos do reino foram convocados para saírem em busca do castelo de ferro e do prêmio destinado a quem desencantasse a fada e o passarinho.

Não faltaram pretendentes para a empreitada, e logo todos os jovens do país começaram a se preparar para a viagem.

Em frente ao palácio real morava um viúvo que tinha três filhos. O mais moço dos três, que se chamava Lúcio, era uma criatura muito bondosa. Os dois mais velhos eram maus e invejosos e viviam fazendo de tudo para humilhar e aborrecer o irmão. Logo que ficaram sabendo da convocação do rei, os dois iniciaram os preparativos para a viagem. E, quando Lúcio veio dizer-lhes que pretendia ir também, os dois ficaram furiosos e disseram:

- Seu tolo! Você pensa que uma aventura como essa é coisa para crianças? Vamos enfrentar muitos perigos pelo caminho, e um boboca como você só iria nos dar trabalho!

Lúcio, porém, era persistente. E insistiu tanto que o pai obrigou os irmãos a levarem-no. Os dois malvados, entretanto, assim que saíram de casa, já combinaram um jeito de se livrarem do irmão. E, na primeira noite que passaram na mata, esperaram que Lúcio dormisse profundamente para lhe roubarem todo o dinheiro. Depois partiram em silêncio, deixando-lhe apenas o cavalo e um pouco de comida.

Na manhã seguinte, ao acordar e ver que tinha sido roubado e abandonado pelos irmãos, Lúcio ficou muito triste. Mas, como era um rapaz corajoso e decidido, resolveu não voltar para casa e tentar encontrar sozinho o castelo de ferro.

Seguiu cavalgando sem saber bem para onde, até chegar à margem de um rio, onde viu sentado um velho muito pobre, quase morto de fome e com o corpo cheio de feridas.

Lúcio, que tinha bom coração, teve pena do velho. Desceu do cavalo e, depois de dividir com o pobre homem a pouca comida que ainda possuía, lavou-o e tratou de suas feridas. Além disso, tirou da sacola a única muda de roupa que trazia e entregou-a ao velho.

- Muito obrigado, meu bom rapaz! - disse o homem, olhando-o agradecido. - Seu coração é muito bom e você vai ser recompensado. Sei que deixou a cidade em busca do pássaro encantado, para curar o rei. Essa é uma tarefa muito difícil e perigosa, mas eu vou ajudá-lo. Seus irmãos passaram por mim antes de você, e não quiseram me socorrer. Eles são muito maus e, por isso, jamais conseguirão encontrar o castelo de ferro!

- Mas quem é o senhor, meu bom velho? - perguntou Lúcio, admirado.

“- Sou o protetor dos bons, meu filho. E agora vou guiá-lo, para que você seja feliz. Ouça com atenção: perto daqui há uma fazenda, onde você deve dormir esta noite. Como está sem dinheiro, logo que chegar venda o seu cavalo, pois ele de nada vai lhe servir. Com parte do dinheiro, compre o cavalo mais magro, velho e doente que encontrar na fazenda. Escolha mesmo o pior de todos, aquele que já estiver cercado pelos urubus. Não se importe com comentários. Monte nele e saia. Assim que deixar a fazenda, ele se transformará num animal forte e bonito, que, em vez de correr, voa velozmente. Ele o levará ao castelo de ferro.

“Logo na entrada do castelo, você vai encontrar o dragão alado, que mantém prisioneiros a fada e o passarinho. A chave do castelo fica escondida na garganta desse monstro e, para consegui-la, você precisa esperar que ele esteja dormindo. Mas o dragão, para enganar quem se aproxima do castelo, dorme com os olhos abertos. Por isso, se, quando você chegar, ele estiver com os olhos fechados, não se aproxime, pois ele estará acordado! Ao contrário, se seus olhos estiverem escancarados, tire a chave da garganta dele sem medo e abra a porta do castelo. Logo na primeira sala, vai encontrar a fada, que você desencantará, tirando a chave de ouro que ela carrega no pescoço. Esta chave abre a sala seguinte, onde está preso o passarinho. Mas tome muito cuidado: não deixe que a beleza da fada o seduza, porque senão você não conseguirá fazer nada e ainda cairá prisioneiro do monstro. E não se preocupe com a fada, porque ela, depois de desencantada, não correrá mais perigo.

“Preocupe-se apenas em fugir dali com o pássaro o mais rápido possível. Pois o dragão logo acordará para sair em sua perseguição. Fuja montado no cavalo alado e, quando o monstro estiver quase para alcançá-lo, desmonte e, com esta espada que lhe entrego, abra a barriga do cavalo e se esconda com o passarinho lá dentro, gritando: "A mim, bom velho!
".

Depois que o dragão for embora, saia da barriga do cavalo e costure-a com esta agulha e esta linha que estou lhe dando, e verá que ele voltará a viver e a voar tão bem quanto antes. O monstro voltará a persegui-lo e, quando ele estiver bem perto de você, grite de novo por mim e lance ao ar este punhado de alfinetes; mais adiante, este punhado de cinzas e, depois, este monte de sal, sempre chamando por mim.

“De volta à fazenda, venda o cavalo, porque não vai precisar mais dele. Com o dinheiro, compre de novo o seu e, sem perder tempo, volte depressa ao reino. E não pare por nada no mundo, enquanto não receber as bênçãos de seu pai, que está muito preocupado com você.”


Lúcio beijou as mãos do velho e agradeceu-lhe. Guardou bem a espada, a agulha, a linha, os alfinetes, as cinzas, o sal e seguiu viagem.

Chegou à fazenda ao anoitecer, cansado e faminto. Vendeu o cavalo e usou parte do dinheiro para pagar a hospedagem. Com o que sobrou, comprou, no dia seguinte, o cavalo mais velho e fraco que havia no lugar. Era um animal tão magro e acabado, que o próprio Lúcio chegou a duvidar das palavras do velho. Até o dono da fazenda não queria acreditar que alguém quisesse mesmo comprar um animal em tal estado.

Mas Lúcio não se arrependeu de seguir fielmente as recomendações do bom velho, pois, assim que saiu da fazenda montado no cavalo, ele começou a engordar e a correr. Dali a pouco, criou asas e, logo em seguida, Lúcio saía voando numa rapidez incrível.

No fim de algumas horas de viagem, chegou ao castelo de ferro. Bem na entrada, enxergou o dragão, que por sorte estava com os olhos arregalados e portanto dormia. A boca enorme do monstro estava escancarada; por isso não foi difícil tirar a chave de dentro da garganta e com ela abrir a porta do castelo.

Logo na primeira sala, Lúcio encontrou a fada. Ela era mesmo lindíssima e a sua beleza seduziu tanto o jovem, que ele ficou ali parado, sem conseguir despregar os olhos daquele belo rosto. Mas o cavalo alado, percebendo o perigo, bateu três vezes com a pata no chão para avisar a Lúcio do perigo que corria.

Lembrando-se imediatamente das palavras do velho, ele tirou logo a chave de ouro do pescoço da fada, que se desencantou, voltando a ser uma princesa. Lúcio nem olhou para trás. Correu até a sala seguinte, tirou dali a gaiola de diamantes com o passarinho encantado e mal teve tempo de montar no cavalo e sair voando. O dragão acordou e imediatamente se deu conta do que tinha acontecido e, mais rápido do que o vento, saiu no encalço de Lúcio.

Seguindo as recomendações do velho, ele esperou que o dragão chegasse bem perto para desmontar. Depois, abriu a barriga do cavalo com a espada que o velho tinha dado e se escondeu lá dentro junto com a gaiola do passarinho, gritando: - A mim, bom velho!

O monstro, desnorteado, parou. Farejou em volta do cavalo e, vendo-o morto, pensou que havia perdido a pista dos fugitivos. Desesperado, saiu voando ao léu, à procura de nova pista.

Lúcio saiu então da barriga do cavalo, costurou-a com a agulha e a linha que trazia e imediatamente o animal se recuperou e seguiram viagem voando a toda velocidade.

Mas não demorou para que o monstro reaparecesse, mais rápido e mais furioso ainda, voando perto deles. Já quase alcançava o cavalo, quando Lúcio jogou para o ar o punhado de alfinetes, gritando: - A mim, bom velho!

E viu, maravilhado, os alfinetes se transformarem num espinheiro enorme e tão fechado que o dragão ficou preso, levando um bom tempo para conseguir se soltar.

Lúcio aproveitou esse tempo para tomar fôlego e tentar ganhar distância de seu perseguidor. Mas o dragão era mesmo muito veloz, pois logo os alcançava de novo. Quando já estava quase por apanhá-los, Lúcio atirou o punhado de cinzas para o ar e gritou: - A mim, bom velho!

E as cinzas se transformaram, como por milagre, numa neblina tão forte que o dragão não conseguia enxergar, ficando desnorteado.

Só com muita dificuldade foi que conseguiu passar e recomeçar a perseguição ao cavalo alado, que já ia longe.

Logo depois, entretanto, lá estava ele de novo tentando alcançá-los. Lúcio, então, pegou a última coisa que lhe restava, o punhado de sal, e o atirou ao ar, rezando para que isso o livrasse de uma vez do terrível monstro. Enquanto o sal caía, gritou, como sempre: - A mim, bom velho!

E, olhando para trás, viu surgir um oceano imenso, que engoliu o dragão com suas ondas gigantescas. O monstro ainda tentou escapar, mas, como suas asas estavam molhadas, não conseguiu. Ficou se debatendo nas águas furiosamente, até desaparecer no fundo do mar.

Lúcio suspirou aliviado, e, seguindo as recomendações do velho, não parou um instante. Seguiu voando, o mais rápido que podia, em direção à fazenda. Lá chegando, não perdeu tempo: vendeu o cavalo, que agora já não tinha asas, mas que continuava forte e muito bonito, e com o dinheiro comprou o seu de volta. E partiu, levando a gaiola com o passarinho.

Já ia bem longe, em direção à casa do pai, quando viu dois homens cavalgando. Reconheceu neles seus irmãos e, esquecendo-se das palavras do seu protetor, parou para encontrá-los.

Os dois malvados estavam cansados e famintos, pois haviam viajado horas seguidas, sem nada encontrar. Ao verem Lúcio, fingiram ficar felizes com o encontro, mas a verdade era bem outra. Eles não se aguentavam de inveja e ciúme por Lúcio ter conseguido encontrar o pássaro encantado. Arrancaram-lhe, então, a gaiola das mãos e depois, para que ele não os denunciasse, bateram-lhe muito e lhe furaram os olhos, deixando-o quase morto na beira da estrada.

Ao chegarem em casa, mentiram ao pai, dizendo que Lúcio havia morrido no castelo de ferro. E, sem se preocuparem com a tristeza do velho, tiraram o passarinho da gaiola de diamantes para levá-lo ao palácio do rei.

A corte inteira recebeu os dois mentirosos com todas as honras, e o rei, cheio de esperança, ordenou que levassem o passarinho para perto de seu trono.

Na sala real, todos aguardaram em silêncio absoluto que a ave encantada começasse a cantar. Mas, para decepção do rei e dos membros da corte, o passarinho não só ficou mudo, como se recolheu a um cantinho da nova gaiola que lhe deram, cada vez mais triste e recusando tudo que lhe ofereciam para comer.

O rei, desesperado, vendo que o passarinho se recusava a cantar, achou que a voz que ouvira naquela noite não era mais que uma zombaria que lhe haviam feito. E, muito triste, deixou-se ficar sentado no trono, sem ânimo para nada.

Enquanto isso, ainda na beira da estrada, Lúcio chorava de dor e de mágoa pelo que os irmãos lhe haviam feito. Não conseguia entender o porquê de tanta maldade e, chorando amargamente, esperava que a morte o levasse, livrando-o de tanto sofrimento. De repente, lembrou-se mais uma vez do seu velho protetor e de como ele havia prometido sempre ajudá-lo. Assim, juntou as últimas forças que lhe restavam e gritou o mais alto que pôde: - A mim, bom velho!

No mesmo instante, ouviu passos ao seu lado. E, com o coração cheio de alegria, ouviu a voz do velho dizer:

- Meu filho, eu lhe disse que andava pelo mundo escolhendo os bons, para protegê-los. Você me socorreu quando eu precisava de ajuda; por isso, estou aqui para ajudá-lo também.

E, depois de dizer isso, levou Lúcio para um rio perto dali, curou-lhe as feridas e disse:

- Não fique triste por estar cego, porque você logo voltará a enxergar. O passarinho está ao lado do rei, mas não cantará enquanto seu verdadeiro salvador não chegar ao palácio. Eu levarei você até lá.

E, tomando a mão de Lúcio, o velho o conduziu até o palácio. Na sala real, o rei continuava sentado no trono, sem nenhuma esperança de se ver curado da sua doença. Entretanto, assim que o rapaz entrou na sala, o passarinho encantado recuperou-se e saiu voando em sua direção. E no palácio inteiro reinou o mais profundo silêncio, enquanto ele cantava maravilhosamente, pousado na mão do seu salvador.

O velho recolheu, então, a baba encantada que escorria do bico da ave e passou-a por três vezes nos olhos do rei e de Lúcio, que voltaram imediatamente a enxergar. Pelo reino inteiro espalhou-se uma enorme alegria e o rei, completamente curado, encarregou seus ministros de prepararem a maior festa que o reino já havia tido até então.

Na madrugada seguinte, quando o povo todo se preparava para iniciar  os festejos, surgiu na cidade, sem que ninguém soubesse explicar como, um magnífico palácio. De sua entrada partiam três luxuosas estradas: uma forrada de ouro, outra de prata e outra de veludo.

O povo inteiro, tendo o rei à frente, olhava pasmado para o palácio, quando de repente viram sair dele uma carruagem belíssima, toda feita de ouro e cravejada de brilhantes, puxada por seis cavalos brancos. Dentro dela vinha a princesa, ricamente vestida e mais linda do que nunca.

Todos a saudaram com muita alegria e o rei foi recebê-la pessoalmente, dando-lhe as boas-vindas.

- Estou aqui - disse ela - para me casar com o jovem corajoso que libertou a mim e ao passarinho encantado daquele dragão terrível!

O rei lhe respondeu que teria muito prazer em realizar aquele casamento, mas como saber a quem cabia o prêmio, se três jovens tinham aparecido para reclamá-lo?

- Só um foi o meu salvador! - disse a princesa. - E, para saber qual deles diz a verdade, mande buscá-los, um de cada vez, em minha carruagem, e diga-lhes para escolherem uma das três estradas para chegar ao meu palácio. O mais humilde deles escolherá a estrada mais pobre, e esse será saudado pelo passarinho, que o reconhecerá.

Assim fez o rei. Mandou buscar o irmão mais velho de Lúcio, ordenando-lhe que indicasse a estrada que levava ao palácio encantado. Quando chegou no lugar onde começavam as três estradas, o rapaz gritou para o cocheiro:

- Pela estrada de ouro!

E lá se foi a carruagem. Diante da fada, o irmão mais velho ajoelhou-se e beijou-lhe as mãos. Mas o passarinho ficou mudo, sem dar sinais de reconhecê-lo, e o rapaz teve de voltar para casa.

O rei mandou buscar, então, o segundo irmão, e também o orientou para que escolhesse a estrada pela qual queria seguir.

- Pela estrada de prata! - respondeu ele ao cocheiro.

Ao chegar ao palácio e beijar as mãos da princesa, entretanto, novamente o passarinho se manteve mudo. E, furioso, o segundo irmão também teve de voltar para casa.

Chegou a vez de Lúcio, e a carruagem parou no início das estradas, para que ele escolhesse por qual delas queria ir. Lúcio, sem pensar duas vezes, imediatamente escolheu a estrada de veludo. Mal a carruagem partiu em direção ao palácio, o pássaro encantado começou a cantar e saiu voando ao encontro de seu salvador.

Sempre acompanhado pelo passarinho, Lúcio chegou ao palácio. Aproximou-se da princesa, que o esperava sorrindo, e ajoelhou-se a seus pés. E, enquanto lhe beijava as mãos, o pássaro encantado voou por sobre a cabeça da jovem, transformando-se na coroa mais bonita e rica que já se viu no mundo.

No dia seguinte, Lúcio e a princesa se casaram em meio a muita alegria e a grandes festas.

Quanto aos dois irmãos malvados, o rei os condenou à morte, como castigo por todo o mal que haviam cometido.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Varal de Trovas n. 525

 

Baú de Trovas XXXIV


Sinto os meus sonhos murchando,
perdendo a cor e a fragrância...
- Meu Deus, estou precisando
de uma transfusão de infância!
A. A. de Assis
(Maringá/PR)

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Xingar, sempre, a escuridão
sem acender sua luz
é sinal de alienação,
a lugar nenhum conduz.
Alfredo Barbieri
(Taubaté/SP)

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O olhar... e a ação disfarçada
do interesse ainda mudo,
podem ser um simples nada...
início, talvez, de tudo!
Carolina Ramos
(Santos/SP)

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Em partilha descabida,
eu fui a parte lesada:
dei-te metade da vida,
me deste o dobro de nada.
Élbea Priscila de Sousa e Silva
(Caçapava/SP)

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Renúncia - uma ponte estreita,
onde, das extremidades,
pode-se ouvir, sempre à espreita,
chorando, duas saudades!...
Ercy Maria M. de Faria
(Bauru/SP)

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Ó, meu Jesus, não permita
que eu me afaste do caminho,
pois sei que a estrada bonita
é a que contém mais espinho...
Gilvan Carneiro da Silva
(São Gonçalo/RJ)

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Toda vez que eu penso nela,
meu peito começa a arder,
que minha paixão por ela
é uma brasa em meu viver...
Isaías Teves
(Amparo/SP)

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Do meu amor guardo ainda
aquela velha lembrança,
pois dizem que tudo finda
mas não acaba a esperança.
Ieda Marini Souza Oliveira
(Mar de Espanha/MG)

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Com sorriso se conquista,
um sorriso compra tudo:
até mesmo a balconista
vende algodão por veludo!
José Gilberto Gaspar
(São Paulo/SP)

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Sem na vida ter nenhuma
outra vida que me baste,
segue a minha, pela bruma,
com o nada que deixaste,
José Manuel Veloso Galvão
(São Paulo/SP)

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Olhando nos olhos teus,
quantas flores refletidas!
Para vê-las, peço a Deus,
amar-te sempre em mil vidas!
José Roberto Pereira de Souza
(Bauru/SP)

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Espero-a... A noite é fria,
mas não desisto... Ouço passos...
E o prêmio da teimosia
vem se acolher nos meus braços!
José Tavares de Lima
(Juiz de Fora/MG)

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És meu gênio predileto,
pois sem lâmpada e magia,
meu desejo mais secreto
me concedes, dia a dia.
Luzia Brisolla Fuim
(São Paulo/SP)

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Não consta a felicidade
nos bens que alguém pode ter,
Mas... nos atos de bondade
que a gente pode fazer.
Maria Aparecida Pires
(Curitiba/PR)

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O amor, atrás das vidraças,
num peito que não se cansa,
faz descerrar, quando passas,
as cortinas da esperança...
Maria Helena Oliveira Costa
(Ponta Grossa/PR)

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O carro virou paçoca
num acidente invulgar!
- Socorro! - geme a dondoca,
- Salvem o meu celular!
Maria Ignez Pereira
(Mogi-Guaçu/SP)

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Razão de minha altivez;
meu orgulho mais profundo:
- Ouvir falar "português"
nos quatro cantos do mundo!
Maria Madalena Ferreira
(Magé/RJ)

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Ter amor é minha lei,
sem ele, como há de ser?
Parece vício, eu bem sei,
um vício que faz viver!
Marta Maria O.Paes de Barros
(São Paulo/SP)

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Nosso amor foi tão ranzinza
que explodiu como um vulcão,
deixando somente cinza
no meu pobre coração,
Maurício Norberto Friedrich
(Porto União/SC, 1945 – 2020, Curitiba/PR)

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Não é paixão descabida,
nem são afetos pequenos.
Afeição tem a medida
que não é nem mais nem menos.
Maryland Faillace
(Santos/SP)

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Jorge Amado, renomado,
é mestre na sedução:
manteve Zélia ao seu lado
de corpo, alma e coração,
Patrícia Rocco
(São Bernardo do Campo/SP)

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Não há saber que se acabe,
pois há sempre o que aprender;
o sábio é aquele que sabe
o quanto falta saber…
Renata Paccola
(São Paulo/SP)

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Nenhuma mulher suporta
tratar de um homem folgado;
é paixão que nasce morta
com tempo determinado.
Roberto Nini
(Mogi-Guaçú/SP)

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A mentira com extrema
e total habilidade,
tem passado, sem problema,
como exemplo de verdade.
Roberto Resende Vilela
(Pouso Alegre/MG)

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Deixa o que passou "de lado"
a vida é um ensinamento...
Pois lamentar o passado
é correr atrás do vento!...
Roberto Tchepelentyky
(São Paulo/SP)

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Com tanta delicadeza,
um regato a serra desce,
que eu tenho quase certeza
que a própria serra agradece.
Selma Patti Spinelli
(São Paulo/SP)

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São dois no espaço de um só
de agarradinhos que estão...
e a moça, após o forró
teve direito à pensão!
Therezinha Dieguez Brisolla
(São Paulo/SP)

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Sou vaso, às vezes quebrado...
mas, cada vez Deus permite
que eu volte a ser restaurado,
com Seu amor sem limite.
Vanda Fagundes Queiroz
(Curitiba/PR)

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Meu diário! Em tuas folhas
morrem desejos sem fim...
Pago o preço das escolhas
que outros fizeram por mim.
Wanda de Paula Mourthé
(Belo Horizonte/MG)
 
Fonte:
Informativos da UBT Seção São Paulo

Aparecido Raimundo de Souza (Rapidinhas) 2


GENTLEMAN


- Dona Fausta, a certa altura da festa, cismou de fugir do marido. Adivinha o que a sem vergonha aprontou?

- Jogou o sujeito pela janela?

- Fala sério!

- Ta legal. Ela prendeu o infeliz no banheiro das moças?

- Qual o quê. Embebedou o pobre coitado até ele emborcar na mesa. Depois, meu prezado, simplesmente veio vindo, veio vindo, veio vindo de fausto até perto de mim...

- E você aproveitou a deixa. Levou a infeliz para um canto e...

- Engano seu. Como respeitoso cavalheiro, acenei com a cabeça, abri um sorriso franco e rapidamente me “afaustei”
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

IRREQUIETO

- Amigo, por favor, é impressão minha, ou aquele orelhão ali, de frente para a padaria, fica se movimentando, pra lá e pra cá?

- O senhor está absolutamente correto. Ele realmente se desloca, ora para um lado, ora para outro!

- Saberia explicar por quê?

- Com toda certeza. Ele descobriu que é um vai-e-vem.
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INSOCIÁVEIS

- Soube da última?

- Não!

- O Bar se juntou a Bante...

- Com que finalidade?

- Os dois resolveram dar um nó.

- Ué em quem?

- No seu Anastácio, o cego.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. O vulto da sombra estranha. SP: Ed. Sucesso, 2009. E-book enviado pelo autor.

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 6

 

Paulo Mendes Campos (Balé do pato)

Sete horas da manhã quando o guarda-vidas Alexandrino, moreno bem brasileiro, chegou à praia de Botafogo. Sorte sua, pois o fiscal apareceu como se acabasse de materializar-se. Era homem de fiscalizar os minutos.

Manhã de vento, mais para fria e nebulosa, anunciando pouco serviço. Com uma vareta o guarda-vidas começou a desenhar na areia um excelente elefante, no qual tinha jogado ao passar no café da esquina. Só faltava o rabo quando a vaga veio e devorou o elefante. Alexandrino dedicou-se a criar o coração de Jesus envolto em labaredas de amor, e ficou só.

Não por muito tempo, pois, erguendo a cabeça, viu que entrava para dentro da praia uma linda senhora loura, vestida com simplicidade esportiva e elegância. Até aí tudo normal. Mas acontecia que a bonita senhora chorava a cântaros, tocando o coração do bom Alexandrino. Assim mesmo, até aí tudo mais ou menos normal. Mas acontecia uma coisa mais grave: a mulher trazia nos braços brancos um pato, preto e gordo. A golpes de pescoço e das patas membranosas, o pato se rebelava, grasnando dramaticamente.

Na folhinha da casa de Alexandrino tinha uma estampa linda - Leda e o Cisne - e ele se riu do prazer engraçado que existe nas analogias estéticas. Discreto, o guarda-vidas assumiu um ausente perfil profissional e ficou por ali paquerando. A senhora passou por ele: olhos azuis, vermelhos de choro, lágrimas caindo em cima do pato, o pato berrando, automóveis buzinando, aviões decolando, mar bramindo - um desconcerto insano. Apesar dos pesares, ela ao passar o cumprimentou polidamente:

"Bom dia, senhor".

Tem fala de francesa, adivinhou Alexandrino.

A senhora entrou dentro d'água, molhando as sapatilhas de pano, inclinou-se, molhando a barra da saia, e assentou cuidadosamente o pato sobre o mar, como se fosse um pato de dar corda.

Depois de tentar manter a cabeça do pato virada para o lado do Pão de Açúcar, a mulher largou o bicho e levou as mãos às orelhas, como se o pato pudesse explodir, num gesto mesclado de aflição e esperança.

Deu-se que o pato avançou um pouquinho só para o mar, virou logo o rabo e nadou em busca da praia. Madame tentou sustar-lhe a passagem, estendendo-lhe duas mãos abertas, mas ficou batida no lance como um lateral europeu marcando Garrincha*. Mané (Alexandrino batizou o pato em cima da finta) deu mais umas vigorosas patadas e atingiu a areia, onde começou a correr - quem, quem - na direção da avenida das Nações Unidas. Esbaldando-se em lágrimas, a gentil senhora disse em francês uma palavrinha de cinco letras.

O dever de Alexandrino é salvar criaturas que se afogam no mar, mas dessa vez ele inverteu o caminho, correndo para salvar o pato que os automóveis decerto iriam atropelar. O pato subiu desengonçado o passeio e já ia cruzando a rua, quando o gari que passava agarrou Mané pelo pescoço num gesto seco e impecável. Foi tão depressa tudo que Alexandrino ficou estatelado diante do gari e sorriu depois com uma compreensão infinita. O outro servidor, num relâmpago, abriu a portinhola da carrocinha, deu um beijo no bico do pato e o meteu lá dentro. Assoviando o "Samba duma nota só", foi levando a carrocinha como se não tivesse acontecido nenhum milagre naquela manhã em Botafogo.

Na praia, como a estátua de amargura do soneto, a mulher ficou chorando. Contou a Alexandrino que chorava porque o marido dela tinha fugido. O banhista continuou não entendendo nada.

- Meu marido, senhor, foi-se embora - repetiu madame com um sotaque que a fazia mais desconsolada.

Alexandrino hesitou um instante, mas teve a coragem de colocar o problema que o tumultuava:

- Mas, madame, era seu marido... aquele pato preto?

- Oh, claro que não, senhor. Mãe-de-santo mandou jogar pato no mar. Venho de entrar pelo cano, senhor.

Ela explicou entre soluços: num terreiro de Vigário Geral tinham lhe falado que lançasse um pato na praia de Botafogo às sete horas em ponto duma sexta-feira; se o pato nadasse para o mar, marido voltaria; se fugisse para a terra, adeus marido. E choramingava:

- Le canard a nagé vers la plage... le canard  a nagé vers la plage...**

Entre compadecido e sagaz, Alexandrino vislumbrou um plano perfeito:

- Mas acontece, madame, que nos casos como esse o pato não pode ser preto.

- Perdão, senhor.

- Tem de ser branco.

- Senhor compreende macumba?

- Pai-de-santo, madame.

A francesa parou de chorar e perguntou onde poderia comprar um pato àquela hora. Ali no comecinho da rua São Clemente ficava um aviário. Um quarto de hora depois, ela voltava com um pato, branco e soberbo como o cisne de Leda.

Repetiu-se a cerimônia de lançamento de pato ao mar, e o pato, para alvoroço de ambos, nadou assustado para fora, e por lá ficou em evoluções mansas. A mulher, emocionada, segurou as duas mãos de Alexandrino, deu-lhe um beijo quase na boca, correu para a calçada, entrou num Peugeot verde-garrafa e arrancou em disparada.

Alexandrino despiu incontinenti a camiseta, nadou umas braçadas, deu um mergulho e reapareceu com o pato agarrado pela perna. Na perna ainda estava o cartão com o preço do pato: Cr$ 1 800.

Alexandrino se rindo de puro gosto trouxe o pato para a praia, enfiou o indicador na boca e proferiu um assovio longo e agudo com modulações. Como por encanto, um pretinho de doze anos brotou do café do outro lado, cruzou em velocidade incrível as pistas todas e freou a um passo de Alexandrino com o fôlego em forma:

- Lumumbinha, meu nego: leva este pato aqui lá em casa e manda a patroa caprichar no molho pardo. Passa aqui na volta e apanha uma nota.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
* Garrincha: Manuel Francisco dos Santos (1933-1983), grande talento do futebol brasileiro reconhecido mundialmente. Ponta-direita famoso por seus dribles desconcertantes.

** Le canard a nagé vers la plage: "O pato nadou em direção à praia"


Fonte:
Paulo Mendes Campos. O colunista do morro. RJ: Ed.  do Autor, 1965

Luiz Damo (As Faces da Trova) – 7 –

A saudade, tão discreta,
abala e nos causa dor,
mesmo não sendo direta
sempre afeta o nosso humor.
= = = = = = = = = = =

Diz. o pequeno infrator;
nunca serei condenado!
Pois tem muito corruptor
que nunca acabou julgado,
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Em junho tem São João,
Pedro, Paulo e Santo Antônio,
este, pela tradição,
mediador do matrimônio.
= = = = = = = = = = =

Enquanto nos deleitamos
com caprichos abissais,
das alturas vislumbramos
escombros e nada mais.
= = = = = = = = = = =

É tão forte a dor do parto!
Diz à mãe, quem a conforte...
Sim, lhe responde e a reparto,
às que dizem, ser da morte!
= = = = = = = = = = =

Forte luz sobre o horizonte
trouxe tantos imigrantes,
ígneo facho, ao sonho fonte
de paz aos perseverantes.
= = = = = = = = = = =

Jamais o homem se acovarde
e impeça alguém de crescer,
nem a colheita retarde
pro fruto não se perder.
= = = = = = = = = = =

Mais que dar um copo d'água
a quem sede voraz sente,
é não ser fonte de mágoa,
nem da dor uma vertente...
= = = = = = = = = = =

Morte, um eterno Inimigo,
surge e ataca com desdém,
manda prover um jazigo
Na necrópole do além.
= = = = = = = = = = =

Não permaneça caído
mas tente se levantar,
mesmo sendo dolorido
pode ser um mal-estar.
= = = = = = = = = = =

Na vida somente vence
quem luta com dignidade,
porque a vitória pertence
a quem se arma da verdade.
= = = = = = = = = = =

Nunca faças dos fracassos
o escuro fulcro do enterro,
mas do decurso dos passos
um laço de amparo e esmero,
= = = = = = = = = = =

O escritor, agradecido,
reconhece em seu leitor,
que o doce fruto colhido
foi, ser lido como autor.
= = = = = = = = = = =

O homem, de tudo tem medo,
desde a sombra que projeta
e a noite, com seu segredo,
mais insegurança injeta.
= = = = = = = = = = =

O homem na dor a sofrer,
nada resta que o conforte,
está pronto pra morrer,
mas não preparado à morte.
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Partes de um sonho rompido
soltas ao longo da estrada,
são de alguém que tem caído
no curso da caminhada.
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Pelos campos da humildade
quem planta e for aguerrido,
não falta a oportunidade
para o fruto ser colhido.
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Pôr o ato em banho-maria,
ou volvê-lo em pano-quente,
é ter medo da água fria
por julgá-la estar fervente.
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Que a leitura companheira
não se afaste do leitor
e este, por mais corriqueira,
entenda a voz do escritor.
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Que o respeito varra à vida
tudo quanto causa a dor
e deixe a estrada varrida
com a vassoura do amor.
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Se as flores forem colhidas,
os jardins se descolorem,
sem as roseiras floridas,
os aromas também morrem.
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Se o escritor ficar gravado
com cuidado em seu leitor,
foi, por ter se transformado
no seu grande inspirador.
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Sob a ação devastadora
de um vendaval fulminante,
resta a dor assustadora
da defesa inoperante.
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Só quem luta sabe o quanto
pesa a dor de uma derrota,
seu rosto banhado em pranto
reflete o que ela denota.
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Toda a caneta denota
uma história a ser descrita,
se for prova, mostra à nota,
o poder que tem a escrita.
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Vibrante e excelsa Caxias
do Sul, com força total,
vivo rito de alegrias
num alegre ritual...

Fonte:
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Lima Barreto (Contos Argelinos) A Firmeza de Al-Bandeirah; O Desconto

A FIRMEZA DE AL-BANDEIRAH


Abu-Al-Dhudut não usurpou o trono de AI-Patak sem que houvesse grande oposição por parte dos espíritos eminentes e mesmo de províncias inteiras do país.

A todas estas, ele subjugou e dominou, excetuando o canato de Al-Bandeirah cuja riqueza e prosperidade eram muito admiradas no país.

Esse canato era governado por quatro ou cinco famílias que, sob o pretexto de terem feito a independência de Al-Patak e o proclamado sultanato, se sucediam no governo da província e a exploravam em seu proveito, tanto nos altos cargos, como no monopólio de bancos, indústrias e a exportação de tâmaras.

Sob o disfarce de auxiliar a lavoura desse fruto, os membros dessas quatro ou cinco famílias conseguiam dos soberanos privilégios e auxílios pecuniários que engrandeciam as suas indústrias, tornavam sem concorrentes os seus produtos e favoreciam grandes lucros nas suas explorações agrícolas.

Temendo que Abu-Al-Dhudut não continuasse, como os seus antecessores, a lhes dar tudo o que pediam, armaram uma grande oposição ao seu governo, agitaram os espíritos e fizeram com que muita gente perdesse haveres, cargos e até a vida.

Abu-Al-Dhudut, quando se viu seguro no trono, tratou de invadir a província e castigá-la conforme entendesse.

Organizou tropas e dispôs as coisas de forma a vencer os recalcitrantes de Al-Bandeírah.

O povo dessa província pôs-se como uma só pessoa ao lado dos oligarcas que o governavam com muita habilidade e tal era esta que ninguém podia supor que o que eles defendiam eram os seus interesses particulares de donos de bancos, de chefes de casas comerciais, de proprietários de minas e fábricas, de ricos cultivadores de tâmaras.

O entusiasmo e o ardor da população pela causa de sua autonomia eram tais que tudo fazia esperar que a guerra civil rebentasse. Mas, como os membros das famílias que governavam Al-Bandeirah eram antes de tudo homens de negócios, de especulação comercial e não tinham interesse em guerrear, mas sim amedrontar Abu-Al-Dhudut de modo a que este não perturbasse as suas existências regaladas, trataram de arranjar as coisas de modo mais cômodo, tanto mais que o sultão continuava no seu propósito de intervenção.

Pondo de parte tudo o que tinham afirmado com tanta altivez, procuraram um príncipe da família de Abu e arranjaram, por alguns milhares de piastras e outros dons, que não houvesse a invasão projetada.

Dessa maneira eles continuaram a fruir e a aumentar as suas riquezas, embora tivessem arrastado, com a agitação que fizeram, com os juramentos que juraram, muita gente à miséria, à enxovia e à morte.
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O DESCONTO

Como foi contado aos leitores, o canato de Al-Bandeirah, depois de arrotar muita farofa, que fazia e acontecia, acabou por comprar a não-invasão das tropas de Abu-Al-Dhudut por bom dinheiro.

Essa província de Al-Bandeirah, como se sabe já, é governada por vários magnatas e algumas famílias, entre aqueles conta-se o cide Cinsin Ben-Nhato, que é, a bem dizer, o general da oligarquia do canato.

Ele, quando os tais cultivadores de tâmaras gastam á vontade e ficam encalacrados, corre ao sultão e diz cheio de choro e lábia:

— Majestade; os cultivadores de tâmaras estão morrendo de fome; o produto da venda não paga as despesas que dá o seu cultivo; os grandes empregam toda a sua fortuna para que ele baixe.

Aí ele faz uma pausa e continua alteando a voz:

— E preciso que Vossa Majestade cá ao encontro das necessidades dessa pobre gente que tanto concorre para a grandeza do reino que é de Vossa Majestade.

— Mas como, cide?

— Como? Dando-lhes dinheiro, Majestade.

— Não tenho. O meu tesouro está esgotado.

— Majestade: o poder de Vossa Majestade é grande e há um meio.

— Qual?

— Vossa Majestade decrete um imposto sobre os mendigos do reino que haverá dinheiro para socorrer os miseráveis cultivadores de tâmaras.

Os sultões todos lhe fazem a vontade e os de Al-Bandeirah se blasonam de ricos e trabalhadores.

Há outros casos que hei de contar-lhes, mas agora quero lembrar um muito típico.

Os tais de Al-Bandeirah tinham, como já foi narrado, comprado um príncipe irmão de Abu-Al-Dhudut para que este não invadisse com as suas tropas o canato. O príncipe, que era seguro, foi em pessoa buscar o preço do negócio. Trotou várias e muitas léguas em camelo e chegou à capital da província ex-semi-rebelde.

Falou ao clã e este mandou ordem ao seu tesoureiro, para que lhe pagassem trezentos e cinquenta mil piastras.

O irmão de Abu foi logo á presença do funcionário que lhe disse:

— Príncipe! Vossa Alteza poderá ir para o palácio de Vossa Alteza que o dinheiro irá lá ter.

De fato assim foi e um empregado do tesouro lá chegou com os sacos de ouro.

Esperou este que o príncipe contasse o dinheiro. Acabou e exclamou furioso:

— Mas faltam trinta e cinco mil piastras.

— Príncipe! É a minha porcentagem. Dez por cento.

O irmão de Abu calou-se.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

Estante de Livros (Tarzan: O filho das selvas, de Edgar Rice Burroughs)


Tarzan é um personagem de ficção criado pelo escritor estadunidense Edgar Rice Burroughs na revista pulp All-Story Magazine em 1912 e publicado em formato livro em 1914. O personagem apareceu em mais vinte e cinco livros e em diversos contos avulsos, vários livros autorizados por outros autores e inúmeros trabalhos em outras mídias, autorizadas e não autorizadas. Outros escritores que escreveram versões autorizadas foram Barton Werper, Fritz Leiber e Philip José Farmer.

Tarzan é filho de aristocratas ingleses que desembarcam em uma selva africana após um motim. Com a morte de seus pais, Tarzan é criado por macacos ("manganis", na linguagem dos símios, criada por Burroughs) na África; seu verdadeiro nome é John Clayton III, Lorde Greystoke. Tarzan é o nome dado a ele pelos macacos e significa "Pele Branca". É uma adaptação moderna da tradição mitológico-literária de heróis criados por animais. Uma destas histórias é a de Rômulo e Remo], que foram criados por lobos e posteriormente fundaram Roma.

Por ter sobrevivido na selva desde sua infância, Tarzan mostra habilidades físicas superiores às de atletas do "mundo civilizado", além de poder se comunicar com os animais.

A visão da África criada por Burroughs tem pouco a ver com a realidade do continente, pois ele inventa que a selva africana esconderia civilizações perdidas e criaturas estranhas. Burroughs, entretanto, nunca esteve na África.

A versão cinematográfica de Tarzan como o bom selvagem ("Mim Tarzan, Você Jane"), na interpretação de Johnny Weissmuller, não reflete o personagem original dos romances, que é gracioso e altamente sofisticado.

Tarzan é filho de um lorde e dama britânicos que foram abandonados na costa atlântica da África por amotinados. Quando Tarzan era criança, sua mãe morreu e seu pai foi morto por Kerchak, líder da tribo símia por quem Tarzan foi adotado. Logo após a morte de seus pais, Tarzan tornou-se uma criança selvagem e sua tribo de símios é conhecida como os Mangani, grandes símios de uma espécie desconhecida pela ciência. Kala é sua mãe símia.

Burroughs acrescentou histórias que ocorrem durante a adolescência de Tarzan em seu sexto livro de Tarzan, Jungle Tales of Tarzan. Tarzan é seu nome mangani; seu nome em inglês é John Clayton, Visconde Greystoke (segundo Burroughs em Tarzan, Lord of the Jungle; Conde de Greystoke em fontes menos canônicas, notavelmente o filme de 1984, Greystoke). Na verdade, o narrador de Burroughs em Tarzan of the Apes descreve Clayton e Greystoke como nomes fictícios - sugerindo que, dentro do mundo fictício que Tarzan habita, ele pode ter um nome real diferente. Como um jovem adulto de dezoito anos, Tarzan conhece uma jovem americana chamada Jane Porter. Ela, seu pai e outros membros do grupo estão abandonados na mesma área costeira da floresta onde os pais humanos de Tarzan estavam vinte anos antes. Quando Jane retorna aos Estados Unidos, Tarzan deixa a floresta em busca dela, seu único e verdadeiro amor.

Em The Return of Tarzan, Tarzan e Jane se casam. Em livros posteriores, ele vive com ela por algum tempo na Inglaterra. Eles têm um filho, Jack, que leva o nome do mangani de Korak ("o assassino"). Tarzan desdenha do que ele vê como a hipocrisia da civilização, e ele e Jane voltam para a África, fazendo sua casa em uma propriedade extensa que se torna uma base para as aventuras posteriores de Tarzan.

Conforme revelado em Tarzan's Quest, Tarzan, Jane, a amiga de macaco de Tarzan, Nkima, e seus aliados ganharam algumas das pílulas de Kavuru que concedem imortalidade ao consumidor.

Caracterização


Mowgli de Rudyard Kipling foi uma influência provável em Tarzan, incluindo sua facilidade com primatas não-humanos.

Burroughs criou uma versão elegante da figura do homem selvagem em grande parte livre de falhas de caráter ou defeitos. Tarzan é descrito como sendo alto, atlético, bonito e bronzeado, com olhos cinzentos e longos cabelos negros. Ele quase não usa roupas, exceto uma tanga. Emocionalmente, ele é corajoso, inteligente, leal e firme. Ele é apresentado como se comportando eticamente na maioria das situações, exceto quando busca vingança sob a motivação da dor, como quando sua mãe Kala é morta em Tarzan of Apes, ou quando ele acredita que Jane foi assassinada em Tarzan the Untamed. Ele está profundamente apaixonado por sua esposa e totalmente dedicado a ela; em numerosas situações em que outras mulheres expressam sua atração por ele, Tarzan declina educadamente, mas com firmeza, suas atenções.

Quando apresentado a uma situação em que um indivíduo ou parte mais fraca está sendo atacada por um inimigo mais forte, Tarzan invariavelmente fica do lado da parte mais fraca. Ao lidar com outros homens, Tarzan é firme e vigoroso. Com amigos do sexo masculino, ele é reservado, mas profundamente leal e generoso. Como anfitrião, ele é igualmente generoso e gracioso. Como líder, ele comanda lealdade devotada. De acordo com essas características nobres, a filosofia de Tarzan abrange uma forma extrema de "retorno à natureza". Embora ele seja capaz de passar dentro da sociedade como um indivíduo civilizado, ele prefere "despir o fino verniz da civilização", como Burroughs costuma dizer. Sua vestimenta preferida é uma faca e uma tanga de couro de animal, sua morada preferida é qualquer galho de árvore conveniente quando ele deseja dormir, e sua comida preferida é carne crua, morta por ele mesmo; melhor ainda, se ele puder enterrá-lo por uma semana, para que a putrefação tenha a chance de amaciar um pouco.

A filosofia primitivista de Tarzan foi absorvida por inúmeros fãs, entre os quais Jane Goodall, que descreve a série de Tarzan como tendo uma grande influência em sua infância. Ela afirma que achava que seria uma esposa muito melhor para Tarzan do que sua esposa fictícia, Jane, e que, quando começou a morar e estudar os chimpanzés, estava cumprindo seu sonho de infância de viver entre os grandes símios, assim como Tarzan.

Competências e habilidades

A agilidade, a velocidade e a força de Tarzan permitem que ele mate um leopardo..

A criação na selva de Tarzan lhe dá habilidades muito além daquelas dos humanos comuns. Isso inclui escalar, agarrar-se e pular, assim como qualquer grande macaco, ou melhor. Ele usa ramos e balanços de trepadeiras para viajar a grande velocidade, uma habilidade adquirida entre os símios antropoides.

Sua força, velocidade, resistência, agilidade, reflexos, sentidos, flexibilidade, durabilidade, resistência e natação são extraordinárias em comparação com os homens normais. Ele lutou com grandes macacos e gorilas adultos, gorilas, leões, rinocerontes, crocodilos, pitões, tigres, cavalos marinhos do tamanho de um homem (uma vez) e até mesmo dinossauros (quando visitou Pellucidar). Tarzan é um rastreador habilidoso e usa seus excepcionais sentidos de audição e olfato para seguir presas ou evitar predadores, e mata apenas por comida, mas é um ladrão experiente quando invade aldeias tribais africanas ou caças que Tarzan julgou ser brutal e merecedor de sem pena, pegando suas lanças, escudos, arcos, facas e, o mais importante, pontas de flechas metálicas. Um aguçado senso de audição permite que ele escute conversas entre outras pessoas próximas a ele.

Extremamente inteligente, Tarzan era letrado em inglês antes de poder falar a língua quando conheceu outros falantes de inglês como Jane Porter. Sua alfabetização é autodidata depois de vários anos em sua adolescência, visitando a cabana de seus pais mortos e olhando e deduzindo corretamente a função de cartilhas de livros infantis. Os livros foram trazidos para a África por sua mãe morta que pretendia ensinar seu próprio filho. Ele eventualmente lê todos os livros da coleção de livros portáteis de seu falecido pai e tem plena consciência da geografia, história mundial e sua árvore genealógica, mas não consegue falar inglês até conhecer seres humanos, pois nunca ouviu como o inglês deveria soar. como quando falado em voz alta. Ele é "encontrado" por um francês viajante que lhe ensina os fundamentos da fala humana e o leva de volta à Inglaterra.

Tarzan pode aprender uma nova língua em dias, falando muitas línguas, incluindo os grandes símios, francês, finlandês, inglês, holandês, alemão, suahili, muitos dialetos bantos, árabe, grego antigo, latim antigo, maia e as línguas dos Homens Formigas e de Pellucidar.

Ao contrário de representações em filmes em preto e branco da década de 1930, depois de aprender a falar uma língua nos romances, Tarzan/John Clayton é muito articulado, reservado (ele prefere ouvir e observar atentamente antes de falar) e não fala inglês como os clássicos filmes retratam ele. Ele pode se comunicar com muitas espécies de animais da selva, e tem se mostrado um impressionista habilidoso, capaz de imitar perfeitamente o som de um tiro.

No Brasil

Dezoito livros de Tarzan foram publicados no Brasil pela Companhia Editora Nacional a partir de 1933, na coleção Terramarear. As traduções foram feitas por importantes escritores, como Monteiro Lobato, Godofredo Rangel, Manuel Bandeira e outros. Na década de 1970, a Editora Record relançou oito desses volumes, com capas de Burne Hogarth. No final da década de 1980, foram publicados pela editora Tempo Cultural. Esses livros foram traduzidos do espanhol e não do inglês. Já em Portugal, a editora Portugal Press, de Lisboa, editou a obra completa do herói.

Em janeiro de 2014, o livro Tarzan dos Macacos foi republicado pela Jorge Zahar Editor com tradução de Thiago Lins e ilustrações de Hal Foster em decorrência do lançamento do filme animado alemão Tarzan: A Evolução da Lenda e o centenário do lançamento do romance em livro.

Os filmes

O primeiro Tarzan do cinema foi Elmo Lincoln, no filme Tarzan, O Homem Macaco ou Tarzan dos Macacos (Tarzan of the Apes), de 1918. Lincoln também estrelou o filme seguinte, O Romance de Tarzan ou Os Amores de Tarzan (The Romance of Tarzan, 1918) e o seriado As Aventuras de Tarzan (The Adventures of Tarzan, 1921, quinze episódios).

Na era muda foram produzidos quatro filmes e quatro seriados com o herói; além de Lincoln, ele foi interpretado, entre outros, por Gene Pollar e James Pierce.

O primeiro Tarzan do cinema sonoro foi também o mais famoso: o nadador estadunidense Johnny Weissmuller, que encarnou o herói em doze fitas, primeiro na MGM, depois na RKO. O refinado lorde dos livros foi transformado por Weissmuller em um selvagem que conseguia apenas grunhir e emitir frases monossilábicas, do tipo "me Tarzan, you Jane" (que ele, a bem da verdade, nunca disse. O que ele disse no filme Tarzan, O Filho das Selvas/Tarzan the Ape Man foi, simplesmente "Tarzan… Jane", apontando para si mesmo e depois para Jane Porter).

Weissmuller é responsável por emitir, pela primeira vez, o famoso grito de vitória de Tarzan. Esse grito, que seria reproduzido por todos os Tarzans subsequentes, não passava de uma hábil mixagem dos sons de um barítono, uma soprano e de cães treinados.

Devido à censura da época, os trajes de Weissmuller e, principalmente, de O'Sullivan foram aumentando de tamanho de filme para filme; a censura também é responsável pela ausência de filhos da dupla, que não era legalmente casada: Boy (vivido por Johnny Sheffield), introduzido em O Filho de Tarzan (Tarzan Finds a Son!, 1939) não era filho do casal e, sim, adotado, conforme mostra o título original. Nos livros, no entanto, Tarzan e Jane são pais do menino Korak, que chega à idade adulta nos romances finais.

Depois de atuar em Tarzan e a Caçadora (Tarzan and the Huntress, 1947), Johnny Sheffield disse adeus ao papel de Boy, porque já estava com dezesseis anos. Ele foi para a Monogram e fez os doze filmes da série Bomba, o Filho das Selvas/Bomba The Jungle Boy (um personagem inspirado em Tarzan, publicado em uma série de livros publicada entre 1926 e 1938), entre 1949 e 1955.

Quando já não possuía o físico necessário para viver o herói, Weissmuller estrelou a série Jim das Selvas/Jungle Jim para a Columbia. Foram dezesseis filmes entre 1948 e 1955. Nesse ano, o herói foi para a televisão, onde foram feitos vinte e seis episódios de meia hora cada, com um Weissmuller já gordo e envelhecido.

Outros Tarzans que ficaram famosos foram Lex Barker, que substituiu Weissmuller a partir de 1948 e Gordon Scott, que é considerado por alguns críticos como o ator que melhor interpretou o herói. Já Mike Henry é visto como o mais parecido com os desenhos de Burne Hogarth.

Das atrizes que interpretaram Jane, a única lembrada é Maureen O'Sullivan, que fez os seis primeiros filmes da série com Johnny Weissmuller e depois saiu porque não queria ficar presa à personagem. Jane não aparece em todos os filmes de Tarzan: ela esteve em apenas um dos cinco filmes com Gordon Scott e esteve ausente de todas as produções com os Tarzans Jock Mahoney, Mike Henry e Ron Ely.

Foi noticiado que a personagem Cheeta, a macaca (Cheeta, na verdade era um macho) que protagonizou os filmes da década de 1930 e 1940 e do seriado para televisão da década de 1960, faleceu em 2011, aos 80 anos de idade, notícia essa, entretanto, colocada em dúvida por uma reportagem da agência de notícias Associated Press, pela ausência de documentos que comprovem se tratar do mesmo primata, além de outras inconsistências apontadas.

Os quadrinhos


Em meados da década de 1920, surgiu um projeto de uma tira de jornal de Tarzan, a princípio, o publicitário Joseph Neebe queria chamar o ilustrador J. Allen St.John, que já fazia artes dos livros de Tarzan, com a recusa dele, Neebe escolheu um artista que trabalhava em peças publicitárias, Hal Foster, que foi o primeiro artista a desenhar o herói em tiras de aventura: a estreia foi na em novembro de 1928 na revista inglesa Tit-Bits, em 7 de janeiro de 1929, estreou nos jornais americanos, coincidentemente essa também foi a data de estreia da adaptação de outro herói dos pulps, Buck Rogers, foram publicadas as sessenta tiras diárias de "Tarzan of the Apes" assinadas por Foster.

Foster só voltaria ao personagem em 1931, desenhando páginas dominicais coloridas. Ele é responsável por várias inovações de inspiração cinematográfica: campo e contra-campo, grandes planos e contra-luz. Ele seguiu fielmente os livros de Burroughs e nunca usou balões e, sim, textos incorporados aos quadrinhos em legendas ou recordatórios. A partir de 1937, Foster foi substituído por Burne Hogarth.

Influenciado por Michelângelo e pelo expressionismo alemão, Hogarth utilizou seus conhecimentos de anatomia para mostrar uma explosão de músculos, um turbilhão de movimentos, paisagens atormentadas mas vibrantes, selvas fantasmagóricas e raízes com formas monstruosas. Ele desenharia essas páginas até 1950, quando foi substituído pelo também importante Bob Lubbers, mas voltou em 1972, com uma nova versão da história de Tarzan em forma de livro, quatro anos depois, foi a vez de uma adaptação de Jungle Tales of Tarzan, ambos os trabalhos são considerados proto-graphic novels.

Rex Maxon começou uma longa série de aventuras de Tarzan ainda em 1929, quando Foster se recusou a desenhar "The Return of Tarzan". Dono de um traço duro, que melhorou com o tempo, Maxon desenhava tiras diárias, distribuídas para os jornais do mundo inteiro, mas se encarregou também de páginas dominicais durante vinte e oito semanas em 1931, enquanto Foster não voltava. Maxon desenhou Tarzan até 1947.

A partir de 1968, no entanto, tanto as tiras diárias quanto as páginas dominicais foram entregues a outro artista : Russ Manning, que também desenhou as histórias de Korak, o filho de Tarzan. Mestre absoluto do preto e branco, Manning desenvolveu uma visão moderna do herói, sem os barroquismos de Hogarth.

Vários outros desenhistas se dedicaram ao personagem, muitas vezes anonimamente: Joe Kubert, Dan Barry, John Lehti, Reinman, Ruben Moreyra, Jesse Marsh, John Celardo, John Buscema, Bob Lubbers etc. Dentre os autores, destaca-se Gaylord DuBois. Poucos artistas conseguem capturar a essência da figura humana em sequências de ação como Joe Kubert. Seu expressivo talento encontra-se plenamente exposto nas HQs do Tarzan da década de 1970.

Tarzan apareceu em muitas revistas em quadrinhos em vários editoras. Em 1947, o personagem foi publicado pela Dell Comics em parceria com Western Publishing. O Tarzan da Dell pouco tinha a ver com os livros Edgar Rice Burroughs, era mais parecido com o Tarzan dos cinemas. Pelo selo Whitman, a Western publicou uma série de Big Little Books do personagem.

Inspirado nos filmes estrelados por Johnny Weissmuller, o filho de Tarzan era Boy, que substituía o Korak, presente nos livros, na década de 1960, Boy substituído por Korak.

Em 1962 a parceira entre a Dell e Western foi desfeita, logo foi criado pelo Western, o selo Gold Key Comics. Tarzan foi um dos títulos publicados pela Gold Key.

Entre Dezembro de 1964 Julho de 1965, a Charlton Comics publicou a revista Jungle Tales of Tarzan, a editora pensava que com a morte do criador em 1950, o herói estive em domínio público. Em 1972, a DC consegue a licença de Tarzan e inicia uma série de quadrinhos produzida por Joe Kubert, a primeira edição da revista é a número 207, continuando a numeração da Dell. Em 1977, a DC publica seu último número de Tarzan, encerrada na edição 259, nesse mesmo ano o personagem passa a ser publicado pela Marvel Comics, na Marvel a numeração é reiniciada, a revista teve 29 edições e possuía arte de John Buscema.

Dark Horse Comics publica várias séries Tarzan desde 1996 até os dias atuais, incluindo republicações de editoras anteriores como a Western/Gold Key, em parceria com a DC, publicou dois crossover de Tarzan com Batman e Superman: Batman/Tarzan: Claws of the Cat-Woman e Superman/Tarzan: Sons of the Jungle Tarzan também lutou contra os Predadores, alienígenas da série de filmes em Tarzan vs. Predator: At the Earth's Core.

Em dezembro de 2011, a Dynamite Entertainment lançou a série Lord of the Jungle, estrelada por Tarzan, a editora evitou usar o nome do personagem na capa, a fim de não violar a marca registrada, mesmo que o personagem esteja em do domínio público. No entanto, em 2012, a Edgar Rice Burroughs, Inc. processou a editora.

Em 2012, a Edgar Rice Burroughs, Inc. iniciou a publicação de webcomics em seu site oficial; incluindo Tarzan pelo roteirista Roy Thomas e o ilustrador Tom Grindberg e Tarzan of The Apes, também roteirizada por Thomas, ilustrada por Pablo Marcos com letras e cores de Oscar Gonzales. Em 2013, Dynamite Entertainment publicou um crossover com outro personagem do autor, John Carter de Marte na minissérie Lords of Mars. Em 2014, o filho de Tarzan, Korak, ganhou uma webcomic solo, roteirizada por Ron Marz e ilustrada por Rick Leonardi.

Em 2015, o selo Sequential Pulp Comics da Dark Horse publicou a graphic novel Jungle Tales of Tarzan, escrita por Martin Powell e ilustrada por Pablo Marcos, Terry Beattye outros. A capa foi desenhada por Daren Bader. No mesmo ano, a Dynamite anunciou um crossover de Tarzan e Sheena.

Os Quadrinhos no Brasil

No Brasil, a primeira publicação do herói deu-se no número 31 do Suplemento Juvenil, de 10 de outubro de 1934, com Tarzan, O Filho das Selvas, a história desenhada por Harold Foster cinco anos antes. Com o sucesso, as tiras foram reunidas no álbum "A Primeira Aventura de Tarzan em Quadrinhos", relançado em 1975 pela EBAL. Em seguida o Suplemento Juvenil passou a publicar A Volta de Tarzan e depois histórias de Rex Maxon e Burne Hogarth.

O primeiro número da revista dedicada exclusivamente ao herói data de julho de 1951 e trazia uma foto de Lex Barker na capa. A revista seria a mais duradoura da história da EBAL, tendo sido editada, de várias formas em cores, em preto e branco, formatinho, formato americano, tamanho padrão, mensal, bimestral etc—até 1989.

A EBAL lançou também diversas edições especiais. A Editora Abril publicou histórias baseadas no filme animado da Disney.

Em maio de 2010, a Devir Livraria anuncia o lançamento da versão traduzida de Joe Kubert, englobando em um único volume do número 207 ao 214, com introdução do próprio autor. Em 2015, a Pixel Media (selo de quadrinhos da Ediouro Publicações) publica a graphic novel Jungle Tales of Tarzan com o título "Tarzan: Contos da Selva". Em março de 2021, a editora francesa Soleil Productions pulbicou Tarzan, seigneur de la jungle por Christophe Bec (roteiro) e Stevan Subic (desenhos).

Rádio

Nos Estados Unidos, Tarzan era o herói de dois programas de rádio populares: o primeiro entre 1932 e 1936 com James Pierce no papel-título; o segundo entre 1951 e 1953, estrelado por Lamont Johnson.

Televisão

Ron Ely interpretou Tarzan em uma cultuada série que teve cinquenta e sete episódios entre 1966 e 1968. Alguns episódios duplos foram fundidos e exibidos nos cinemas.

Em 1989, foi lançado o telefilme Tarzan in Manhattan, estrelado por Joe Lara, entre 1991 e 1994, foi exibida a série franco-canadense-mexicana Tarzán, estrelada por Wolf Larson, entre 1996 e 1997, Joe Lara volta a interpretar o personagem em Tarzan: The Epic Adventures, apesar disso, a série não possui cronologia com o telefilme.

Entre 2001 e 2003, foi produzida pela Walt Disney Company a série animada A Lenda de Tarzan (The Legend of Tarzan), com os personagens do longa de animação de 1999.

Em 2017, uma série animada em CGI foi lançada na Netflix.

Trabalhos inspirados em Tarzan

Tarzan inspirou uma série de personagens selvagens nos pulps, filmes e quadrinhos chamados de tarzanides e garotas das selvas. Alguns desses, como Kwa e Ka-Zar, eram cópias diretas ou vagamente veladas; outros, como Polaris of the Snows, eram personagens semelhantes em diferentes configurações. Destes personagens, o mais popular foi Ki-Gor, o tema de cinquenta e nove romances que apareceram entre o inverno de 1939 e a primavera de 1954 na revista Jungle Stories da Fiction House.

Fonte:
Wikipedia