sábado, 5 de maio de 2012

A. A, de Assis (Estados do Brasil em Trovas) Piauí

Rosa Amanda Strausz (Mamãe Trouxe um Lobo para Casa!)


Acredite quem quiser. Mas foi isso mesmo o que aconteceu. Mamãe trouxe um lobo para casa.

O lobo chegou num belo dia de sol. Eu tinha acabado de chegar da escola. Como faço todo dia, joguei a mochila no sofá e chamei:

- Mamãe!

Mas em vez de escutar a voz tranqüila de minha mãe, ouvi um grunhido baixinho. Assim:

- Humpff, humpfff.

Gritei de novo, e desta vez bem alto:

- Manhêêê!!!!!!

Só aí ela apareceu.

- Mãe, tem um monstro aqui em casa. Ele fez humpff para mim.

- Que bobagem, filho. Monstros não existem.

- Mas este existe e fez humpf para mim - repeti, com os olhos arregalados.

Neste momento, vi o lobo. Estava deitado debaixo da mesa da cozinha, comendo um bife e lambendo os beiços.

- Olhe ali - berrei para mamãe, apontando para o lobo.

De um salto, escalei a cadeira e subi em cima da pia. Mas minha mãe nem ligou:

- Ah, este é o Levi. Ele não é um monstro, é só um lobo - ela explicou, como se fosse a coisa mais natural do mundo. E, para completar meu espanto, disse: - Ele chegou hoje de tarde e vai ficar aqui com a gente.

Minha mãe devia ter ficado doida. Que idéia, trazer um lobo para casa!

- Lobos são muito perigosos, eles são maus - eu disse para ela.

- O Levi é muito legal - ela disse, enquanto começava a fazer meu jantar.

- Eles comem porquinhos - eu falei, lembrando da história dos três porquinhos e do lobo mau.

- Nós não somos porquinhos - ela sorriu.

- Também comem meninas e vovozinhas - eu disse, lembrando da história do Chapeuzinho Vermelho.

- Nós não somos nem porquinhos, nem meninas, nem vovozinhas. E, além disso, o Levi só gosta de bife com batata frita - ela disse, tentando encerrar o assunto.

Mas eu não ia ceder tão facilmente. Engrossei a voz e falei bem alto:

- Eu não quero esse lobo aqui em casa de jeito nenhum!

Minha mãe olhou para mim muito séria, com ar de quem ia me dar a maior bronca do mundo. Pelo jeito dela, vi que não adiantava reclamar.

Dei uma espiada para baixo da mesa.

Levi era um lobo grande, peludo, com patas enormes, unhas compridas e dentes afiados.

De repente, ele se espreguiçou, levantou e foi andando devagarinho na direção da minha mãe. Comecei a gritar:

- Mãe, cuidado! Ele vai te comer!

Mas nada disso aconteceu. Ele chegou bem perto dela e esfregou o focinho no seu avental, como se pedisse carinho. Ela se abaixou, deu um abraço nele e depois voltou a se ocupar com a minha comida. Ele sentou no chão, do lado dela, e olhou para mim, com seus enormes olhos vermelhos.

Pensei:

- Céus! É a mim que ele quer comer!

Dei um pulo e saí correndo para meu quarto. Tranquei a porta, me enfiei na cama e fechei bem os olhos.

Eu devia estar sonhando. Aquilo não podia ser verdade. Com certeza, na manhã seguinte, não teria nenhum lobo na cozinha.

É, aquilo tudo só podia ser um sonho ruim.

A manhã seguinte era sábado, dia de meu pai vir me buscar para passear.

Corri para a cozinha assim que acordei. Minha mãe estava preparando o meu leite, viva e inteira, como todos os dias.

Fiquei aliviado. Claro que tudo aquilo tinha sido um sonho. Respirei fundo, tomei coragem e olhei debaixo da mesa.

Mas lá estava ele, enorme, peludo e bocejando: Levi, nosso lobo de estimação.

É bem verdade que ele não tinha devorado minha mãe, nem tentado me atacar. Mas, mesmo assim, eu não gostava nem um pingo dele.

Durante o café, não tive tempo para ficar emburrado porque logo escutei a campainha tocando. Era meu pai.

Corri para a porta. Para minha surpresa, Levi veio atrás de mim, fazendo humpf.

Fiquei gelado de medo. Aquele bicho ia atacar meu pai!

A campainha tocou novamente. Minha mãe gritou, lá de dentro:

- Abra a porta, meu filho. Deve ser seu pai.

Mas cadê coragem?

A campainha tocou de novo e escutei também umas batidas na porta. Meu pai chamava do lado de fora:

- Abra logo, seu preguiçoso. Está um dia lindo. Vamos pescar!

Finalmente, eu gritei, com a boca na fechadura:

- Não posso abrir. Tem um lobo aqui e ele está querendo atacar você.

Escutei novamente a voz do meu pai, desta vez divertida:

- Se o lobo me atacar, eu dou um tiro nele com a minha superespingarda a “laser”.

Como é que eu não tinha pensado nisso antes? Meu pai é um homem forte e poderoso, não tem medo de nada. Ele poderia se defender e ainda por cima salvar minha mãe e eu das garras daquele bicho.

Encarei Levi e abri a porta, pronto para assistir a uma luta espetacular, em que meu pai sairia vencedor.

Mas não foi nada disso que aconteceu.

Meu pai olhou para o lobo. O lobo olhou para meu pai. Os dois ficaram com cara de bobos.

- Ué, mas tinha mesmo um lobo aqui - meu pai disse, meio sem graça.

- Humpf... - Levi respondeu.

Ele não atacou meu pai. E meu pai não deu um tiro nele. Virou-se para mim e disse:

- Vamos logo, filho, vamos pescar.

Quando voltei, no domingo, mamãe e Levi estavam assistindo televisão na sala.

Ele não tinha me comido, nem devorado meu pai, nem matado minha mãe.

Mas também não desgrudava dela! Se minha mãe fosse para a cozinha, Levi ia atrás. Quando ela estava vendo televisão, ele ficava junto...

Podia até não ser mau, aquele lobo.

Mas era um chato!

Normalmente, segunda-feira era um dia complicado lá em casa. Cleide, a faxineira, nunca chegava cedo, mamãe precisava sair para trabalhar e não tinha com quem me deixar.

Ela sempre acabava pedindo ajuda à nossa vizinha, uma mulher chatíssima que tentava se passar por boazinha.

Nossa vizinha abria a porta e dizia:

- Ora, como vai o nosso lindo bebê! Pode deixar que eu cuido dele.

E me torrava a paciência a manhã inteira, me tratando como se eu fosse um bebezinho.

Eu não suportava aquela mulher!

Mas aquela segunda-feira foi diferente. Quando viu que a Cleide não ia chegar a tempo, mamãe disse:

- Não posso mais esperar. Já vou andando.

- Eu não quero ficar com aquela chata! - disse eu, como fazia toda segunda-feira.

E mamãe falou:

- Você não vai ficar com ela. Vai ficar com o Levi.

Meu coração disparou. Mamãe devia ter ficado maluca! Me deixar com um lobo!

- Ah, não! De jeito nenhum... - eu comecei a dizer.

Mas mamãe já estava me dando seu beijo de “tchau” e saindo pela porta.

Ficamos sozinhos, eu e Levi.

Pensei que ele fosse grudar no meu pé, como fazia com minha mãe. Mas Levi se sentou na sala e ficou ali, quietinho como se fosse um gato preguiçoso.

Fui até a cozinha, peguei água, voltei, liguei a televisão, desliguei, peguei meus carrinhos, brinquei um pouco, cansei de brincar...

E Levi continuava ali, quieto no seu canto.

Finalmente, sentei na poltrona e suspirei.

- Isso aqui está muito chato - eu disse, com raiva.

- Humpff. Também acho - disse Levi, bocejando.

Que susto! Ele falava! Um lobo que fala é mais interessante do que um lobo que só faz humpff. Então ele continuou, com uma voz rouca:

- Bem que a gente podia brincar de alguma coisa...

Fiquei desconfiado. Mas aproveitei que ele falava para perguntar:

- Você não vai me comer?

Levi começou a rir e eu levei mais um susto. Nunca vira um lobo rindo. Mas ele me garantiu que não ia comer ninguém. Só queria brincar um pouco.

Mas era difícil brincar com um lobo. Com suas patas enormes, era impossível fazer jogos de montar. Ele era grande demais para brincar de esconder, não cabia em lugar nenhum. Seus dentes afiados estourariam até mesmo minha bola de couro.

De que poderíamos brincar?

- Que tal fazer cavalinho? - sugeriu Levi.

Achei a idéia genial.

Subi em suas costas, que eram tão altas que meus pés ficavam balançando, sem encostar no chão. Agarrei os pêlos do seu pescoço como se fossem rédeas, bati com os calcanhares em sua barriga e gritei:

- Atacar o inimigo!

- Quem é o inimigo? - Levi perguntou.

Nem precisei pensar duas vezes. A vizinha chata, é lógico!

Saímos em disparada pela casa, abrimos a porta, corremos até o fundo do corredor do edifício e paramos na porta da vizinha.

Antes que eu tocasse a campainha, Levi deu um grunhido tão pavoroso que até eu fiquei assustado.

Logo escutamos uma voz melosa perguntando:

- Quem está aí?

- Sou eu - respondi com a voz mais bem-comportada que consegui fazer.

- Ora, mas é o meu pomponzinho fofo, meu lindo bebê bilu-bilu - disse a chata, abrindo a porta.

Quando ela deu de cara comigo montado sobre aquele lobo enorme, deu um berro e desmaiou.

Eu e Levi voltamos para casa às gargalhadas. Eu estava começando a gostar daquela brincadeira.

Lembrei de todas as pessoas em quem gostaria de pregar um bom susto: o menino do 206, que sempre me batia, o filho do jornaleiro, que vivia me chamando de mulherzinha.

Talvez fosse mesmo bom ter um lobo em casa...

Quando minha mãe chegou para o almoço, a casa estava uma bagunça medonha. Levi era muito desajeitado e enquanto corríamos tínhamos derrubado quase tudo pelo chão: almofadas do sofá, abajur, antena de televisão, fitas de vídeo...

Antes que ela pudesse começar a reclamar, tocou a campainha. Era nossa vizinha, em pânico, dizendo que eu tinha sido comido por um lobo terrível.

Foi um custo mamãe acalmar a vizinha, mentindo que não tinha lobo nenhum lá em casa e me mostrando bem vivo e contente.

- Viu só? Ele está aqui, inteirinho. Você deve ter sonhado - disse mamãe, sem graça.

- Mas eu nem estava dormindo... - disse a vizinha.

A partir desse dia, as coisas mudaram muito lá em casa.

Sabe a história do sapo que ganha um beijo da princesa e vira príncipe?

Foi mais ou menos o que aconteceu. Só que eu não sou princesa, Levi não é sapo, eu não dei beijo em ninguém e ele não virou príncipe.

Mas a cada vez que a gente brincava, ele ficava mais parecido com um amigo de verdade.

Primeiro começou a falar, depois a rir, uns dias depois aprendeu a jogar bola, a andar sobre os dois pés, a fazer jogos de armar; começou a usar roupa de gente e a comer com garfo e faca.

Mesmo parecido com gente, Levi é um lobo.

Às vezes, ainda tenho medo dele, como quando ele se zanga.

Outras vezes, acho que ele é um lobo bobo e chato, como quando fica grudado na minha mãe ou come meu bife.

Mas na maior parte das vezes, nos damos bem.

Ele está mesmo ficando a cada dia mais parecido com um homem.

Em compensação, aprendi a dar grunhidos terríveis, a uivar para a lua e estou ficando cada vez mais forte.

Se continuar assim, acho que vou acabar virando um lobinho...

Fonte:
Historinhas pescadas : antologia de contistas brasileiros / [coordenação editorial Maristela Petrili de Almeida Leite, Pascoal Soto].- São Paulo : Moderna, 2001. – (Literatura em minha casa ; v. 2)

Sérgio Rivero (Leitura, Discurso e Ação)


Coloco o pequeno Francisco para dormir. Embalados, os dois, na rede da varanda, navegamos em navios diferentes. Meu filho, ainda sem a pesada carga da cultura, navega num barco onírico que trouxe com ele de algum lugar. Eu, viciado, entorpecido, massacrado pela linguagem, sinto-me a navegar num barco à deriva. Sim. Entre ser pai e não ser pai há muita diferença. Mistura de dor e delícia esse estado. Naquele momento de rede, barco sem porto, nesse momento em que dois navios começam suas mesmas viagens transversais, me vem uma frase síntese na cabeça: – Mostre a ele que na vida há algo em que acreditar… É lançado o desafio e uma onda gigantesca, repleta de espuma e natureza, lança minha embarçação de encontro aos rochedos.

Acreditar. Para mim, uma palavra rica nesse momento da vida.

Acabo de chegar(?) de uma viagem de 3 anos, uma viagem de 450 anos, uma viagem de 65 anos, uma viagem de 500 anos. Eu, Salvador, Carlos Vasconcelos Maia, Brasil.

Ao escrever pensa-se tanto, para se escolher uma única palavra…

Gabriel Garcia Marques, em entrevista, já dizia que a sua palavra é o tempo. Vai-se, assim, suponho, em busca de todos os seus significados, livro a livro, andarilho-lavrador, como que semeando, ao contrário, uma flor que, mesmo conhecida, germinará em semente, em surpresa.

Inicio com Francisco, meu filho, uma viagem que me amedronta muito pois, de fato, vou, unicamente, com a semente-palavra-acreditar. Não há flor, ainda, não há botão que, vejo, desabrocha... a não ser os dentes-de-leite do menino que rasgam dolorosamente suas gengivas e preenchem seu sorriso.

Volto.

Depois de três anos, defendida a dissertação de Mestrado, em março, quis deixá-la fechada, sem leitor, sem 'funcionar'. Determinei que a semente distinta, com o frescor da palavra recém renovada ficasse, lá, esquecida. Mas a terra tem seus mistérios. No mesmo caco da Rosa-Menina, que está na varanda e tem a idade de Francisco, brota e persiste uma planta sem nome. Na mistura que a terra processa e os olhos não vêem, foi colhida, recolhida e acolhida, com a dissertação, uma única palavra: exclusão. E 'exclusão' foi plantada sem que eu soubesse, novamente, como flor; e eis que, agora, a flor nasce sementificada. Acreditar. Exclusão.

Faço uma pergunta: – Acredito na exclusão? Ah, totalmente, respondo a mim mesmo. Acredito, desde 1960, quando ainda não era nascido, mas Vasconcelos Maia, escritor baiano, já havia escrito o conto O homem e as vitrines . 17 anos depois o escritor ainda acreditava em exclusão. Não só acreditava mas ruminava a certeza pois, ao reescrever o mesmo conto, agora entitulado É Natal! É Natal! , o personagem principal, o homem , passaria a ser nomeado o homem grisalho e magro , biotipo do autor naquele ano de 1977.

Nas duas versões, o personagem sai em busca de presentes de Natal para seus filhos mas dá-se conta, ao final da narrativa, que não tem dinheiro. Não há consciência política que lhe faça atribuir responsabilidades, a única saída é individualizada. Retira-se do cenário da cidade, como que, se ausente da Avenida Sete de Setembro, pudesse solucionar, por fim, a uma questão original.

Na primeira versão:

“Mentalmente, com um gozo muito grande, fez o rol dos Papais-Noéis dos filhos: a lambreta, o jipe, o carro de corrida, o cavalo, a boneca, a bola vermelha e preta. Também os preços de tudo vieram à sua lembrança. Deu meia volta, meteu a mão nos bolsos. Nos bolsos vazios. Foi andando, cabeça baixa, procurou outras ruas, sem lojas nem vitrines, sem luzes nem gente. Onde ninguém pudesse surpreender sua dor.”

E na segunda versão:

“Era véspera de Natal e ele ficou ali, parado, imóvel até a loja se fechar, vendo um a um os presentes serem retirados da exposição e entregues em vistosos embrulhos coloridos, a homens e mulheres excitados, de aspecto próspero, decerto bem empregados e bem remunerados. Deu meia volta, pôs-se a andar, a mão nos bolsos. Nos bolsos vazios. Procurou outras ruas sem lojas, luzes ou gente. Onde ninguém pudesse surpreender sua dor e sua miséria.”

Na segunda versão do conto é apresentada, de forma mais incisiva, a condição do personagem. A dor, reflexo da impossibilidade de presentear os filhos com os tão esperados presentes de Natal, está acompanhada da miséria, uma qualificação com significado paramétrico, coletivo.

Ao não querer que alguém surpreenda sua dor e miséria, o personagem em seu único movimento ativo, durante toda a narrativa, retira-se do cenário, assumindo, sem dúvida, sentimento de culpa, fracasso, como se 'não ter dinheiro' fosse um problema de sua inteira responsabilidade. A solução, para ele, é sair dali, esconder-se num lugar sem luzes, nem gente, nem vitrines… num lugar que, em suma, não é o espaço urbano. Vasconcelos Maia vai determinar, assim, que 'exclusão' é conceito absoluto. Não existe lugar na cidade para quem não é consumidor.

Acredito em exclusão, ainda, há mais tempo. Vem da fundação da cidade de Salvador, da sua sina fabricada; a implantação de Salvador como estaleiro, base de todo o processo mercantilista europeu (assim foi idealizado em Portugal), o resultado de uma imposição internacional imediatista que acabou por construir uma baianidade sem sedimentação prévia. A história dos homens, o que fez? Tratou de sedimentar esse fato até hoje e é claro que Salvador é metáfora para Brasil.

Segundo a historiadora Maria Alice Rezende de Carvalho, as cidades brasileiras foram “prefigurações exclusivas da autoridade colonial e concebidas como pastiches de uma racionalidade proveniente de outras latitudes”. Assim, originou-se uma arquitetura desprovida de “densidade estética e política em seu sentido mais amplo”. Não podemos construir algo que não tenha surgido de um desejo coletivo. Não podemos mudar, ativamente, o que não pensamos para nós; aquilo que, passivamente, aceitamos.

Acredito em exclusão, ainda mais, hoje. Ela graça, campeia; o abismo social entre os brasileiros é imenso. Volto à palavra 'acreditar'. Se uma das possibilidades do 'acreditar' vem pela crença religiosa – uma busca de salvação, sempre fora daqui, e portanto, muitas vezes desacreditada de nossa história e suas possibilidades – existe um outro caminho que coloca a palavra acreditar próxima de quem a criou – o Homem. E aqui, destaco a correspondência entre Umberto Eco e o Cardeal Carlo Maria Martini editada no livro, com o título em português, Em que crêem os que não crêem . Uma carta, em especial, a última escrita por Eco ao Cardeal, em janeiro de 1996.

A partir do questionamento se existem 'universais semânticos', ou seja, 'noções elementares comuns a toda espécie humana que podem ser expressas por todas as línguas', Eco enumera 'concepções universais acerca do constrangimento', isto é, entre todos os homens existem determinadas normas básicas de convivência que não podem ser negligenciadas: em síntese devemos, antes de tudo, respeitar o direito da corporalidade do outro, entre os quais o direito de falar e de pensar.

Nesse momento, entendo que a 'viagem transversal' que faço com meu filho, Francisco, pode tornar-se, de quando em vez, paralela se eu seguir à risca essa mensagem.

Segundo Eco, essa semântica é base para uma ética. Assim ele coloca, em primeiro plano, algo distante de nós, aquilo que vem sendo substituído, acredito, pelo que chamamos, hoje, de politicamente correto – 'moda' social tão permeada de massificação e rótulos. Eco fala simplesmente de 'humanidade'. Sim, isso que herdamos (de quem?), carregamos, sabemos que faz parte da nossa natureza – o que de melhor existe em nós – mas que teimamos em não seguir.

O sentimento ético é corporificado, permeia cada uma de nossas ações, ao lado de nossas leituras sobre o mundo, como um grilo falante emitindo, continuamente, bases verdadeiras em nossos ouvidos… mas nossos narizes não crescem, nossa anatomia envelhece mas não se constrange…

E retomo à questão da corporalidade do outro: Eco nos diz que a dimensão ética começa quando entra em cena o outro. E que dificuldade é entender que quando faço a leitura do outro estou fazendo, na verdade, a leitura de mim mesmo… mas parece que a dor é algo muito individualizado, distante, como se existissem mil palavras para dizer dor e mil outras para entendermos dor.

Acreditar, ética, exclusão.

Acreditar na ética, no que o homem tem de melhor, para combater toda espécie de exclusão.

A experiência com a leitura, essa prática de dividir com o outro a leitura de um mesmo texto, compartilhar o espaço da vida; mesmo sob o condicionamento da cultura e todas as suas vozes, desperta na gente, promotores da leitura, uma maior consciência ética. Talvez, por isso, o tema exclusão, em Vasconcelos Maia tenha me seduzido. Sem dúvida, o exercício de ler o mundo, com mais vagar, nos torne mais sensíveis às diferenças, mas, por outro lado, o desafio para o leitor que se forma em constante exercício, não é ler o mundo com mais perspicácia, não é indicar essa ou aquela leitura precisa, mais inusitada, mas é ler (e ler é sempre ler o outro) aproximando-se, sentindo-se capaz de sentir o que o outro sente, ou ainda, de uma maneira mais desafiante, sentindo a alegria que o outro for capaz de sentir, entendendo o que é.

Vamos ao livro, mais especificamente à literatura, campo de reflexão e de descoberta. Ali, vamos todo o tempo ler, como na vida, o confronto do sentimento ético – a reverência à corporalidade do outro – contra a dimensão invasiva que as relações humanas determinam cotidianamente.

Entre realidade e ficção uma tênue fronteira, depois, um único caminho.

Vale a minha leitura sobre o mundo, se consigo unir meu discurso e minha ação. Talvez aí eu tenha o que dizer a meu filho Francisco. Talvez assim eu possa lhe dizer em que acreditar.

Fonte:
Leia Brasil – http://www.leiabrasil.org.br

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 545)


Uma Trova de Ademar

Tem visita que aconchega,
tem outra que não me atrai...
Não empolga quando chega,
mas alegra quando sai!
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Infiéis os meus cabelos!
saudoso, o careca chora...
Dei carinhos... Tive zelos...
mas foram todos embora!
–HÉRON PATRÍCIO/SP–

Uma Trova Potiguar


Pagar eu nunca me atrevo
a dívida que eu contraio.
A “quem fala” eu só não devo
A rádio e a papagaio
-FRANCISCO MACEDO/RN-

Uma Trova Premiada


1999 - Cachoeiras de Macacu/RJ
Tema: CERVEJA - M/H


Quando um pinguço gagueja
e não se firma nos pés,
diz: tomei uma cerveja,
mas já tomou mais de dez...
–MARIA NASCIMENTO/RJ–

...E Suas Trovas Ficaram


A origem fica explicada:
nasceu tão pequeno, tão...
que a mãe dele, horrorizada,
Ao vê-lo gritou: “Ah, não!”
–ELTON CARVALHO/RJ–

Uma Poesia


A propósito de nomes
Aqui tenho o meu guardado
Como doce que se come
Como presente envenenado

Felizes as Ivones da vida
As Marias ou as Joanas
Bonitas e doces, queridas
Cuja beleza não engana

Já o meu nome nada revela
De tão simples que é
Quem quer chamar-se Felisbela?
Antes levar um tiro no pé!

Se eu me chamasse Ana
Mariana ou Joaquina
Cheias de graça soberana
Ou de loucura traquina…

Já eu tenho que dizer
Que não estou lá muito feliz
Com o nome dado ao nascer…
Foi o meu pai que assim quis!

Por ter um nome tão "estranho"
Nem as pulseiras consigo comprar
Não há prato de loiça ou de estanho
Que o tenha para mostrar...

E desde a escola primária
Mesmo com tantos afazeres
Brincavam até os professores
"Feliz e Bela", que mais queres?
–FELISBELA/RS–

Soneto do Dia

Um Vice-Versa... Ao Contrário
–HELOISA ZANCONATO/MG–


Amigo Zé Maria que surpresa,
saber-te um Casanova aposentado,
pois, sempre, existe alguma brasa acesa
por baixo do carvão enfumaçado.

Se quem foi rei não perde a realeza,
um pau-de-lei não morre carunchado
e uma viril pistola portuguesa
não vive de gatilho enferrujado...

Esquece a osteoporose... a catarata
e sai, enfim, atrás de uma mulata
que tope um “ti-ti-ti” num canto escuro...

Pois, para um português de nome honrado,
melhor ficar com fama de tarado...
que ser considerado um dedo “duro”!
a soberana
Ou de loucura traquina

sexta-feira, 4 de maio de 2012

A. A. de Assis (Estados do Brasil em Trovas) Pernambuco

Wagner Marques Lopes/MG (A FAMÍLIA em trovas), parte 10 - final


No caminho de Jericó

Toda família cristã,
em caminho soberano,
relembra, no justo afã,
certo Bom Samaritano.

Família e modismos

Tomar pé, quando preciso,
das águas novidadeiras...
Quantas modas sem juízo
são correntes traiçoeiras!...

Na iniciação do trabalho

A criança aos pais contenta
e no labor se agiganta
se busca uma ferramenta
e faz a rega das plantas.

A família e as virtudes do perdão

Uma vida em plenitude
na área familiar
vem do prazer das virtudes
que o perdão pode ofertar.

Fonte:
trovas enviadas pelo autor

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 544)


Uma Trova de Ademar

Eu recebi, “lá de cima”,
para versificação,
o dom do verso e da rima
e a fonte da inspiração!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Meus sonhos não são modelos;
alguns me fazem chorar...
Mas não tenho pesadelos:
pesadelo é não sonhar!...
–MILTON SOUZA/RS–

Uma Trova Potiguar


A velha esquina esquecida,
toda enfeitada de flor,
sem querer fez-se guarida
de nossa história de amor.
–MARA MELINNI/RN–

Uma Trova Premiada

2006 - Balneário Camboriú/SC
Tema: LUA - M/E


Cumprem a Lua e as estrelas
o ofício de serem belas...
E, no entanto, para vê-las,
só o poeta abre as janelas!
–A. A. DE ASSIS/PR–

...E Suas Trovas Ficaram


Contemplo à noite, à janela
e entre as estrelas e a lua
eu sinto o perfume dela
que no meu quarto flutua.
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Uma Poesia


Quando acabo de escrever
um verso, uma trova, um poema,
sinto que acabo de erguer
uma casa de fonema,
o som, a matéria prima,
a alma, a palavra, a rima,
e amor como argamassa,
mas nunca que acho perfeita
a obra depois de feita,
por melhor mesmo que a faça.
–RAYMUNDO SALLES/BA–

Soneto do Dia

Assim São Meus Versos
–SÔNIA SOBREIRA/RJ–


Assim são meus versos, enigmáticos,
como ventos que bailam nas andanças,
são mistérios, são fúlgidas lembranças,
luzeiros cintilantes, mas estáticos.

São girassóis altivos e fleumáticos,
são quimeras, retalhos de esperanças,
cantilenas que embalam as crianças,
fantasias dantescas de fanáticos.

Frágeis anseios a rimar cansaços,
que choram seus lamentos nos meus braços,
num desconsolo que jamais se acalma.

São espectros com dedos gigantescos,
desenhando nas pedras arabescos,
que entrelaçam pedaços de minh'alma.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

A. A. de Assis (Estados do Brasil em Trovas) Paraná

Wagner Marques Lopes / MG (A FAMILIA em trovas), parte 9

Familia (pintura de Juan Bautista Martinez del Mazo)

Influências

A concha se torna abrigo
da marcante voz do mar:
criança leva consigo
o que o adulto ofertar.

Berço, apelo especial

Retornar – ação bendita.
Berço – apelo especial,
onde a criança recita:
“ – Meus pais, livrem-me do mal”.

Confissão de um familiar

- Na paixão descontrolada,
infelizmente, eu me perco:
é estouro da boiada
a exigir mais amplo cerco.

Paixões, aves de arribação

Em céus da reencarnação,
meus afins veem comigo
as aves de arribação –
as paixões de um ninho antigo.

Fonte:
trovas enviadas pelo autor

Carlos Lúcio Gontijo (O Miraculoso Apreço por Estrela)


Sou apenas um cidadão provinciano que, levado pelo exercício da literatura, terminou por editar livros, atendendo ao clamor das palavras, que somente ganham alma através da poesia. Muitas vezes imagino que, sem o toque poético, a palavra é simples instrumento de permuta, compra e venda nos balcões do materialismo que se estendem mundo afora.

Meu tempo de viver em cidade grande venceu e eu retornei à minha Santo Antônio do Monte, leito dos meus passos, mirante do qual vejo preocupado crianças e jovens entregues ao âmbito da construção virtual, enormemente potencializado pelo avanço da internet, sinalizando-nos que, em breve, não haverá troca de olhares. Ou seja, as pessoas se encontrarão sem se incomodar nem com nomes nem com qualquer sentimento de afeição, para uma relação sexual casual, na mera condição de corpos.

Assisto, com amargura no peito, ao ser humano exposto, como simples ameba, diante da imensidão de informações que as novas tecnologias lhe possibilitam, sem nenhum esforço na análise de conteúdo ou interesse em se aprofundar naquilo em que apenas correu os olhos. É como se a superficialidade fosse a inconfessável meta a ser alcançada, dentro de uma cultura que toma a reflexão como indesejável fonte de sofrimento.

Num quadro social do futuro, deparar-nos-emos com uma sociedade geradora de cidadãos desprovidos de memória e sem a experiência de saudades no coração, quando então aflorará a incapacidade de extrair e dar sonoridade ou mesmo novas vestes à palavra, que se verá prisioneira dos dicionários amarelecidos e completamente empoeirados pelo contínuo abandono em meio ao deserto de inventiva e criatividade em seu uso como expressão de sentimento esvoaçante, alado e tão-somente tangível pelas mãos da poesia.

Estou para lançar meu 14º livro (o romance "Quando a vez é do mar") e o faço sem vislumbrar patamar de estrondoso sucesso, aos moldes de festejada celebridade, basta-me a sensação de autor bem-sucedido e disposto a fazer da minha literatura um veículo de comunicação com outras mentes. Tanto é verdadeira esta proposição que a maior parte da edição será destinada a bibliotecas comunitárias e escolas rurais. Planejo uma sessão aberta de autógrafos e distribuição gratuita de livros na biblioteca comunitária que leva o meu nome, no Bairro Flávio de Oliveira, em Santo Antônio do Monte, como forma de inserir um pouco de literatura e poesia em um contexto adverso, aonde a arte da palavra escrita raramente chega.

Perdoem-me os que tecem glamour em torno da atividade literária, alçando o autor a uma espécie de "deusinho", a quilômetros de distância do leitor, o que em muitos casos dificulta a criação de hábito, ou melhor, de gosto pela leitura, uma vez que os estudantes jamais ou quase nunca têm a oportunidade de contato pessoal com os autores.

Foram muitas as vezes em que preguei a necessidade de indicação regionalizada de livros de literatura para as instituições de ensino, com o objetivo tanto de facilitar a aproximação entre escritores, poetas e leitores, quanto para favorecer o aumento da edição de livros país afora. Isso sem falar que a maneira regional de se expressar contida em cada obra funcionaria como mecanismo de estímulo aos leitores, que se perceberiam mais próximos e representados na narrativa.

Claro que todo esse enunciado acima descrito é o meu destilar de autor movido, única e exclusivamente, pelo combustível do mais puro idealismo, que usa o seu trabalho literário como ferramenta de conscientização e de luta em prol do soerguimento de um mundo melhor, como declaro no verso de um poema há muito trazido à luz (O ser poetizado), no qual procuro passar a ideia de que história verdadeira cheira a berço e que homem realista tem apreço por estrela, numa tentativa de alertar que a raça humana corre grande risco por estar sob o comando dos não poetas (os maus poetas no meio), dos que menosprezam os milagres divinos que se multiplicam todos os dias, explicitamente, ao nosso redor, tornando cada vez mais verdadeira a assertiva que publiquei no romance "Jardim de Corpos": Quem não acredita em milagre, vive sob o milagre de em nada acreditar.

Fonte:
texto enviado pelo autor

quarta-feira, 2 de maio de 2012

A. A. de Assis (Estados do Brasil em Trovas) Paraíba

Wagner Marques Lopes /MG (A FAMÍLIA em trovas), parte 8

Sagrada Família (pintura de Murillo)
Rugas e rusgas

Na casa em que se conjuga
os verbos servir e amar,
pode o tempo trazer rugas,
mas rusga não tem lugar.

Sinceridade em família

Sinceridade é medida
do núcleo familiar,
pois a clareza na vida
só pode nos ajudar.

Coração pensante

Quando a vida se faz densa –
tudo está por naufragar,
o coração de mãe pensa...
E põe tudo no lugar.

Águas do bem querer

Se em família se aglutina
amor, perdão e saber,
sem demora surge a mina
das águas do bem querer.

Fonte:
trovas enviadas pelo autor 

Clevane Pessoa (Velhos Olhos, Novos Olhos)


Potiguar, da pequena cidade de São José do Mapibu, Clevane Pessoa de Araújo Lopes expõe toda a sua sensibilidade pulsante e lirismo psicológico nos quinze poemas que compõem o livro Velhos olhos, novos olhos.

Em As lavandeirinhas a autora faz um tributo às lavadeiras, com um belo lirismo, retratando a atividade dessas profissionais quase folclóricas, com muita graça. Apesar de citar as lavadeiras das margens do rio São Francisco e outras, o poema universaliza tais mulheres trabalhadoras. Clevane também trás para a roda, o próprio rio, ou lagoa, além da fauna que cerca o “tanque” natural.

Mas nem só de lirismo vive a poesia de Clevane. No poema Infância perdida, infância roubada, a autora trata com sobriedade e sem perder o tom poético, a triste situação de milhares de crianças que acabam sendo privadas de sua juventude.

A poesia mística, presente na obra Velhos olhos, novos olhos, faz o leitor passear pelo estilo pós-conversão dos poetas Murilo Mendes e Jorge de Lima. Tal elemento está representado no Poema de natal. Entretanto, as referências diretas a personagens religiosos se restringem ao componente anjo e lógico, ao menino (Jesus, certamente).

Em certos momentos da poesia de Clevane, o eu lírico mergulha em estados melancólicos e até pessimistas. No caso da poesia Rompimento, o motivo é um amor despedaçado. Não que as experiências citadas sejam inspiradas em passagens pessoais da autora, pelo contrário. Clevane deixa claro nessa poesia que o enredo declamado em seus versos é inspirado no episódio de outra pessoa.

Mais adiante, inclusive, a autora chega a ponto de esclarecer em uma nota, após o poema de sugestivo nome, À beira do precipício, que “a poesia não tem nada a ver comigo, é que gosto de interpretar a todas as mulheres, sempre que posso...”. E pelo que vemos em Velhos olhos, novos olhos, pode mesmo.

Fonte:
texto enviado pela autora 

Histórias que o Povo Conta (O Macaco e a Onça)


Nesse tipo de história, os personagens são animais, mas agem como se fossem gente. Costumam aparecer disputando alguma coisa, como o macaco e a onça que você vai conhecer a seguir. Esta espécie de conto também é chamada de fábula, principalmente quando termina com uma lição de moral explícita.

O macaco e a onça

 A onça era o bicho mais bravo e malvado da floresta. Comia anta. Comia capivara. Comia tatu. Comia queixada. Comia veado. Só não comia o macaco, pois esse a onça não conseguia pegar, de jeito nenhum.

 - Um dia eu agarro esse malandro - dizia ela lambendo os beiços.

 Quando foi um dia, a onça teve uma idéia.

 Subiu no alto de uma pedra e chamou a bicharada da floresta. Avisou que ia dar uma festa. Mas tinha uma coisa. A onça fazia questão:

 - Quero que cada bicho traga sua mãe.

 - Pra quê? - perguntou a anta.

 A onça fez cara de inocente. Inventou que era para ver quem gostava e quem não gostava da própria mãe:

 - Quem não trouxer, já sei que não gosta! A bicharada caiu na conversa fiada da onça.

 Mas o macaco ficou desconfiado. Voltou para casa e escondeu a mãe no galho mais alto do tronco mais alto da árvore mais alta do morro mais alto da floresta.

 O dia da festa chegou.

 A bicharada apareceu toda contente, cada um trazendo a sua mãe.

 Que desgraceira!

 A onça deu um bote e foi comendo tudo quanto foi mãe de bicho que encontrava no caminho.

Quando estava de pança cheia, encontrou o macaco:

 - Cadê sua mãe?

 O macaco encheu os olhos de cuspe, botou a mão no peito, fez careta e começou a berrar:

Ai de mim, ai de mim
Minha pobre mãe morreu
Minha mãe era um quindim
Veio uma onça e comeu

 O macaco gritava, chorava e ria.

 A onça ficou com raiva, pois não tinha comido nem a mãe do macaco nem, muito menos, o macaco.

 Tempos depois, a malvada teve outra idéia.

 - Agora eu cato o danado!

 Ficou escondida bem no caminho que o macaco pegava todos os dias.

 No fim da tarde, o macaco apareceu.

 Sentiu um cheirinho estranho no ar.

 "Aqui tem onça", pensou ele.

 Para ter certeza, parou, olhou bem para o chão e gritou:

Caminho, cadê você
Caminho, quero passar
Caminho, se não responde
Vou já pra outro lugar

 O caminho, claro, continuou quieto, parado no chão.

 O macaco sacudiu os ombros, deu meia-volta e fingiu que ia embora.

 Ao ver o macaco escapar mais uma vez, a onça disfarçou e fez voz de estrada:

 - Uh! mucucu. Num vui imbura num. Pudi pussur qui iu istu uqui.

 Ao ouvir aquela voz fingida, o macaco caiu na gargalhada:

Cai fora, onça, cai fora
Cai fora, não vem com essa
Cai fora que eu vou-me embora
Cai fora, que eu estou com
 pressa!

 Disse isso, saltou num galho e sumiu rindo e dançando no meio das folhagens.

 A onça ficou tiririca. Arreganhou os dentes e resmungou baixinho:

 - Um dia eu te pego, pelintra!

 Passou o tempo. A onça teve outra idéia. Subiu no alto de uma pedra e chamou a bicharada. Disse:

 - Descobri que tem uma santa morando na floresta. Vamos fazer um altar pra botar a santa.

 Mandou a bicharada juntar madeira e construir um altar. Explicou que no dia seguinte a santa ia aparecer.

 A bicharada tinha medo da onça, por isso achou melhor obedecer.

 A onça disse mais:

 - Amanhã, todo mundo aqui. Se a santa estiver no altar quero ver a bicharada cantando, dançando e tocando pandeiro.

No outro dia, logo cedo, a onça se enrolou num pedaço de linho branco, subiu no altar e ficou lá se fingindo de santa.

 A bicharada, quando chegou, ficou espantada:

 - Não é que apareceu uma santa mesmo? - disse a anta.

 - Milagre! - gritou o papagaio.

 - Eta coisa danada de boa! - disseram todos.

 E a bicharada, feliz da vida, ficou cantando, dançando e tocando pandeiro em volta do altar.

 A onça parada lá no alto só espiava. O macaco escutou aquela folia e resolveu ver o que estava acontecendo.

 A onça sabia que o macaco era curioso. Sua idéia era agarrar o bicho quando este se aproximasse do altar.

 Mas o macaco era esperto. Olhou para a santa. Olhou de novo. Olhou outra vez e logo desconfiou. Só de pirraça, saltou da árvore no chão e começou a rezar, a dançar e a cantar:

Me salva, santa, me salva
Que a onça quer me pegar
Me ajuda, santa, me ajuda
Que a onça vai me matar

 E o macaco foi dançando e foi chegando perto. De repente, de surpresa, catou uma pedra no chão e atirou bem na cara da onça:

Sai daí, santa malvada
Sai desse pano de linho
Vai embora, onça pintada
Vai embora do meu caminho

 Rosnando furiosa, com a fuça machucada, a onça saltou do altar mas não pegou coisa nenhuma. O macaco, ligeiro feito um corisco, sumiu no matagal cantando:

Um bicho quer me prender
Mas não vai
Um bicho quer me caçar
Mas não vai
Um bicho quer me comer
Mas não vai
Um bicho quer me matar
Mas não vai

Fonte:
Azevedo, Ricardo. Histórias que o povo conta : textos de tradição popular. São Paulo : Ática, 2002. - (Coleção literatura em minha casa ; v.5)

Roberto Pinheiro Acruche (Livro de Poemas)


A SAUDADE

Saudade... Qual é a sua cor?
Por que estou sentindo-a
tão junto a mim e não consigo vê-la?
Não me atormente ainda mais
com este silêncio,
além desta dor que me rasga o peito.

Porque você não aparece
e desvenda logo esse mistério?
Você sabe onde me encontrar!

Vou estar nos mesmos lugares,
sentado na areia olhando o mar
ou nos mesmos bares
consumindo a noite.

E se acaso não me encontrares
pergunte pra solidão...
Somente ela saberá dizer
o meu paradeiro.
Mas não demore mais;
faça antes da tristeza
me levar por inteiro!...

ARCA DOS SONHOS

As horas passam
e eu me curvo diante
do tempo
que também passa... Que passa!...
E eu preso na arca dos sonhos,
fantasiando a vida.
Quando acordar
desta aspiração
liberto do devaneio,
quem sabe ainda haverá tempo
para realizar os sonhos?
E se não houver tempo
e se não realizar meus sonhos,
valeu à pena ter sonhado!

AUSÊNCIA

A tua ausência transforma a noite em um suplício,
faz a formosura da lua desaparecer no infinito
e as estrelas no céu perderem o brilho.

A solidão minha constante companheira
cresce no silêncio que constrói um assombroso vazio,
enquanto as canções evolucionam a saudade.

E não há como se esquecer do passado
quando a caminhada era ornamentada
pela beleza das flores e perfumada em todos os momentos...
Mesmo quando a natureza disseminava as tempestades, com chuvas, trovões e ventos.

A brisa tinha a fragrância dos lírios
e os teus suspiros eram o meu alento.

A tua ausência, sentida nesse momento,
quando o pensamento
é todo reservado a ti,
faz explodir no peito a angústia
dessa solidão que abruma
ainda mais, essa noite triste e vazia.

QUANDO

Quando as gotas d’água
romperem as pedras dos meus caminhos,
cicatrizarem no meu peito as feridas
provocadas pelos espinhos
da desilusão...
Quando o tempo
arrancar do meu coração
as seqüelas da falsidade
e a perfídia for tragada
pela fidelidade...
Quem sabe,
encontrarei razão para viver
e os meus versos
falarão de um outro amor?

Fonte:
Poemas enviados pelo autor