quarta-feira, 2 de maio de 2012

Rubem Braga (Meu ideal seria escrever...)


        Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse - ôai meu Deus, que história mais engraçada!" E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida  de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria - "mas essa história é mesmo  muito engraçada!"

        Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse  atingido  pela  minha  história.  O marido a leria e começaria a  rir, o que aumentaria a irritação da mulher.  Mas depois que esta, apesar de  sua má-vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um  para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

        Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse - e tão fascinante de graça,  tão  irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas  de  alegria;  que o  comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles  bêbados e também aquelas pobres mulheres colhidas na calçada e lhes  dissesse - "por favor, se comportem, que diabo! eu não gosto de prender ninguém!"

E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus  dependentes  e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

        E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil  maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago - mas que em todas as línguas ela guardasse a sua  frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse:  "Nunca  ouvi  uma  história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida;  valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido  inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".

        E quando todos me perguntassem - "mas de onde é que você tirou essa história?" - eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história.. .”

        E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.

Fonte:
Para gostar de ler. Vol. 3. SP: Ed. Ática, 1978.

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