Filharadas e cachorradas
Quando nasce filho, todo mundo fica alegre.
Quando você nasceu - faz um tempão, não é mesmo? -, foi uma alegria de dar gosto.
Eu sei que você não lembra. Afinal, você era muito pequeno naquele tempo e estava mais preocupado com a hora da mamadeira. Mas pode acreditar: todo mundo ficou muito, muito satisfeito.
Com os bichos é a mesma coisa. Veja o caso de Dona Bingona, por exemplo.
Dona Bingona era uma linda cachorra vira-lata que andava muito orgulhosa da sua enorme barriga. Ela estava esperando cachorrinhos, e esperou, e esperou, até que nasceu uma porção.
Um, dois, três... sei lá. Não dava pra contar direito, porque os cachorrinhos nunca ficavam quietos. A gente nunca sabia se já tinha contado aquele ali que corria atrás do irmãozinho, ou aquele outro que rolava que nem bola.
Era tanto cachorrinho que as tetinhas da Dona Bingona nem eram suficientes para todos mamarem. Tinham que mamar em turnos, e, enquanto alguns mamavam, sempre sobravam outros que ficavam puxando o rabo de algum irmãozinho para ele andar logo.
"Ora, mas tem um jeito muito fácil de descobrir quantos cachorrinhos tinham nascido", diria você. "Era só contar as tetinhas da Dona Bingona e depois contar quantos cachorrinhos sobravam na hora da mamada. Aí, era só somar o número das tetinhas ocupadas com o número dos cachorrinhos sobrantes e pronto!"
A sua idéia foi ótima, concordo. Mas você também há de concordar que não pegava bem essa intimidade de ficar contando as tetinhas da Dona Bingona, uma vira-lata de respeito, não acha?
Seu Bingão, o pai, também era um vira-lata de respeito. Filho, neto, bisneto e "transaneto" de vira-latas de respeito, Seu Bingão estava muito orgulhoso com a filharada. Era uma cachorrada alegre, brincalhona, que logo fez a alegria das crianças do bairro.
De todos os irmãos, o mais sapeca era Bingo.
Eta cachorrinho danado!
Bingo era alegre, era brincalhão, era curioso como ele só.
Vivia correndo por todos os cantos, metendo o focinho onde não era chamado.
"O que será que tem lá em cima?", pensava o cachorrinho olhando para a mesa da sala.
Era pensar e agir. Lá ia o Bingo e puxava a toalha com os dentes.
Desastre!
Cataprum, cataprás! Vinha tudo pra baixo, tigela, prato, salada, copo, jarra e feijão.
Assustado com o barulho, Bingo se escondia um pouco debaixo da mãe, mas logo esquecia o susto e ia reinar mais adiante.
Uma hora era xixi no tapete, outra hora era vaso quebrado.
- Quem sujou a colcha branca que eu acabei de lavar?
- Foi o Bingo, não vê? Não vê as pegadinhas de barro?
- Eta cachorrinho danado!
Mas com o Bingo, acredite, ninguém conseguia ralhar. Era só chegar perto dele que lá vinha o cachorrinho, rabo em pé, abanando, lingüinha de fora, pronto para brincar, carinhoso como ele só. Teve até uma vez em que ele se pôs a lamber a televisão, pois havia simpatizado com a atriz da novela.
É claro que Dona Bingona procurava dar a melhor educação para os seus filhotes, e insistia para que o Bingo só fizesse xixi no caixotinho cheio de areia que havia num canto. Mas como, se o Bingo virava o caixotinho e espalhava toda a areia?
Outro tormento era quando enceravam a casa. Quem conseguia impedir o Bingo de vir correndo e escorregar gostosamente até a parede do outro lado?
Certa vez, o dono da casa ficou quase louco: onde estava o pé esquerdo do seu sapato de ir a casamentos? Pois o sapato, cheio de marcas de dentinhos, foi encontrado no meio da horta, entre as couves e as chicórias.
E a horta, então? Volta e meia, lá ia o Bingo cavoucar por todo lado, desenterrar cenouras e rabanetes, atrás de alguma minhoca teimosa que teimava em se esconder do nariz cheirador do Bingo.
Assim era o Bingo. Um cachorrinho levado como ele só. Mas quem não gostaria de ter um Bingo assim?
Cachorros ao ar livre
Seu Bingão, Dona Bingona e a cachorradinha moravam num galpão muito confortável, no canto de um belo quintal, nos fundos de uma casa bem grande.
De vez em quando, os portões da casa se abriam para o passeio dos cachorros.
A primeira vez que os cachorrinhos foram passear com os pais foi uma verdadeira festa.
A dona da casa escovou todos os filhotes e amarrou fitas cor-de-rosa no pescoço das cachorrinhas e fitas azuis no pescoço dos cachorrinhos.
Assim, devidamente preparados, aconteceu o primeiro passeio e começaram os problemas da família do Seu Bingão.
Logo que se viram livres, com toda a calçada, com todos os postes e todas as árvores à disposição, os cachorrinhos saíram correndo para explorar as novidades.
Atrás, orgulhosamente, iam os pais, imaginando a inveja de todos os cachorros da vizinhança, principalmente do Fritz, aquele pastor alemão antipático do 102. Cachorro metido a gente!
Dona Bingona imaginava a cara da Frida, aquela pastora alemã magrela. Ah, Dona Bingona duvidava que outra cadela pudesse ter uma ninhada de filhotes tão lindos!
Os cachorrinhos nunca tinham visto automóveis e saíram atrás do primeiro que passou, com aqueles latidozinhos de cachorro novo:
- Iap, iap, iap.
Dona Bingona ficou preocupadíssima. Algum dos filhotes podia ser atropelado, não é? Mas Seu Bingão nem ligou. Perseguir carros era o destino de todos os cães, e seus filhos haveriam de se safar das dificuldades. Afinal, eram ou não eram de sua linhagem, da tradição dos vira-latas de respeito?
Até que passou um carro com o escapamento entupido e... Bam!
Os cachorrinhos tomaram o maior susto com o estouro, mas logo já estavam brincando de novo.
Quem preocupava Seu Bingão era o Bingo. Enquanto todos os machinhos da ninhada da Dona Bingona farejavam os postes e as raízes das árvores para fazer xixi logo em seguida, Bingo nem ligava. Ele estava mais interessado em sacudir o rabinho para todos os humanos que passavam, xeretar as sacolas que as madames carregavam e! lamber todas as mãos que se abaixavam para fazer-lhe festinhas.
Na hora em que todos foram perseguir automóveis, Bingo tinha arranjado um jeito de passar pelas grades de um jardim, cair no meio das roseiras, espetar-se nos espinhos e voltar ganindo para o aconchego da mamãe:
- Caim, caim, caim!
O mais grave, porém, ainda estava para acontecer. Na curva da primeira esquina, a família defrontou-se com um vira-lata vagabundo, desses sem respeito algum, sujo e magro.
Seu Bingão fez aquilo que se esperava dele. Enfrentou o vagabundo com seu possante latido, mostrando os dentes ameaçadoramente. No mesmo instante, Dona Bingona e os filhotes imitaram o líder, e o vira-lata importuno viu-se acuado contra a parede por todos os cães.
Por todos os cães, menos por Bingo. Sacudindo o rabo, o cachorrinho correu até o vagabundo, deu-lhe umas lambidinhas e ficou fazendo o seu “iap-iap” enquanto corria em volta convidando o novo amigo para brincar.
"Que vergonha!", ia pensando Seu Bingão, enquanto voltavam para casa. "Um filho meu perder a chance de mostrar a bravura de um vira-lata de respeito! Fazer amizade com vagabundos, cheirar as pessoas em vez de fazer xixi nos postes, meter-se com rosas em vez de perseguir os carros! Vergonha! Estragou o passeio de todos nós. E agora? Como é que eu vou olhar pra cara do Fritz, aquele pastor alemão cheio de raças, pedigris e não sei mais o quê?"
Mas o Bingo não sentia vergonha nenhuma. Estava muito feliz com o seu primeiro passeio, correndo alegremente na frente de todos.
O vizinho do telhado
A família do Seu Bingão tinha um vizinho. No telhado do galpão onde moravam, vivia um velho gato, sábio e calmo. Seu nome, ninguém sabia, porque ninguém era dono dele. Tinha escolhido o telhado para morar e por lá ficava enquanto queria e de lá saía para passear quando cismava.
Todos já se haviam acostumado com o gato, e até que ele tinha sua utilidade: quando aparecia alguma visita no quintal, Seu Bingão adorava exibir-se, rosnando na direção do gato, para todo mundo saber quem era o chefe por ali.
O gato também já estava acostumado com a vizinhança e com a arrogância do Seu Bingão. Mas, para não decepcionar as visitas, arrepiava-se todo com os latidos do vizinho, fingia medo e, logo que as visitas se distraíam, virava para o lado e ia cuidar da vida.
E vai que Bingo virou, mexeu e acabou fazendo amizade com o gato. Um simpatizou com a alegria e a curiosidade do outro, e o outro ficou fascinado com a experiência e a vida aventurosa do um.
Bingo, como todos os cachorrinhos, brincava o dia inteiro e, quando o sol ia dormir, lá ia ele dormir também.
Mas, com o gato, a história era diferente. Ah, se era! O bichano cochilava o dia inteiro, lá no telhado, acordando somente para um gole d'água, para fingir medo do Seu Bingão ou para uma lambidinha no prato de leite com pão do Bingo. Mas, logo que a lua aparecia por cima do telhado, o velho gato mergulhava na noite, e o mundo era todo dele.
"Ah, que vida maravilhosa!", invejava o Bingo.
O cachorrinho pensava todos os dias naquele mundo que era bem maior que o seu quintal. Um mundo que o velho gato via de cima. Um mundo em que a altura dos muros não importava. O mundo negro da noite, o mundo da cor do gato.
Sombras assombradas
Bingo morria de medo da noite. Mas, ao mesmo tempo, ela o atraía com as fascinantes histórias do gato. E o cachorrinho fechava os olhos, sonhando com ele mesmo a passear pelos telhados, a pular por cima dos muros, a enfrentar os desafios escondidos nas sombras.
Deu de acordar à noite e espiar medrosamente para fora do galpão. À sua volta, todos os irmãozinhos dormiam amontoados sobre almofadas, ao som dos roncos de Seu Bingão.
Lá fora, recortada contra a lua cheia, Bingo conseguia ver a sombra do gato, orgulhosamente dominando os telhados, como o imperador da noite.
A noite. Que maravilha não ter medo da noite, não tremer quando as sombras escondem o que está a um passo da gente! O gato enxergava através das sombras, o gato via tudo. Como podia haver segredos para uma criatura como ele?
Mesmo sem ousar esticar uma pata para fora da segurança do galpão, Bingo ficava um tempão acordado, tentando ver um pouco mais do que era possível ver dos telhados fracamente iluminados pelo luar. Tentando imaginar tudo o que podia haver e acontecer por trás das cortinas negras da escuridão.
De tanto soltar sua imaginaçãozinha à noite, Bingo deu de acordar tarde. Geralmente, quando conseguia sair de sua almofada, as tigelinhas de pão com leite já tinham sido esvaziadas pelos irmãozinhos.
Mas Bingo não se importava, tão fascinado estava com os mistérios que não conseguia resolver. Com os olhinhos pesados, já piscando de sono, pensava num mundo bem maior que o seu quintal. Por onde andaria o gato àquela hora?
De longe, o cachorrinho ouvia o brado da liberdade:
- Miaaauuu!
Aos poucos, aquele som foi se intrometendo na cabeça do Bingo, foi crescendo, foi tomando corpo, até que ocupou todos os espaços que deveriam ser preenchidos pelo volumoso latido do Seu Bingão.
O primeiro miado
Os filhotes já estavam crescidinhos e tinha chegado a hora de Dona Bingona mostrar para Seu Bingão como ia bem a educação daquela cachorradinha que havia de continuar a tradição dos vira-latas de respeito.
O tempo dos “iap-iap” tinha chegado ao fim. Era preciso mostrar ao chefe da família que os filhotes estavam se tornando vira-latas de verdade e que a voz deles se encaminhava para impor o respeito que se esperava.
Seu Bingão postou-se de patas cruzadas, com aquele jeitão de pai que se prepara para assistir ao filho declamar um versinho e finge que nem está ligando.
Todos os cachorrinhos estavam excitadíssimos. Cada um apostava que ia se sair melhor que o outro e tratava de empurrar, para ser o primeiro da fila.
Dona Bingona, depois de muito trabalho, conseguiu alguma ordem e começou a exibir as qualidades de cada filho.
O latido do primeiro cachorrinho, fracote e tímido mas muito simpático, provocou a resposta muda de um piscar de olhos seco mas aprovador por parte do patriarca da cachorrada.
Veio mais um, mais safadinho, latindo animadamente, com uma voz fina de cachorrinho novo.
E veio outro, com um latido um bocadinho só mais forte, mas suficiente para receber um rosnar orgulhoso do pai.
Aí chegou a vez do Bingo. O cachorrinho, com o rabo pra lá e pra cá, deu uns pulinhos até Seu Bingão e aplicou-lhe a mais molhada lambida de que era capaz.
Com a autoridade que se esperava, o pai empurrou delicadamente o filho com o focinho e ficou à espera.
Bingo sentou-se sobre as patas traseiras, língua de fora e aquele olhar sapeca que todos conheciam muito bem.
A família estava à espera, mas Bingo não deixou a espera ficar muito comprida. Preparou-se e soltou o mais sonoro:
- “MIAAAU!”
Ecos de um simples miado
Horror! Alvoroço! Pandemônio! Coisa nunca vista!
Enquanto os filhotes ficavam sem saber o que estava acontecendo, e Dona Bingona fingia uma espécie de desmaio de cachorro, Seu Bingão levantou-se como se tivessem jogado um balde de água gelada em suas costas.
Que brincadeira era aquela?
A expressão de fogo nos olhos do pai deixou o pequeno Bingo morto de medo e cheio de surpresa.
Não tinham gostado do seu miado? Por quê? Ele tinha caprichado tanto...
Pois é. Parece que não tinham gostado. Bingo não se lembrava de ter visto o pai tão zangado.
De olhos arregalados, toda a pose perdida, Seu Bingão nem sabia o que pensar.
Como?! Um filho dele? Miando? Onde estava aquele latido destinado a meter medo a toda a mal- dita raça dos felinos de todas as cores e capaz de fazer correr todos os carteiros? Não! Aquilo ele não podia admitir. O que diriam dele? O que diria o Fritz, aquele pastor alemão antipático? O que seria da sua honrada linhagem dos vira-latas de respeito?
Tão bravo estava Seu Bingão, tão nervosa estava Dona Bingona, que todos os filhotes se assustaram. E todos, ao mesmo tempo, puseram-se a ganir, desconsoladamente.
A um canto, lá estava Bingo. Sozinho, rabo entre as pernas, orelhinhas murchas.
A incompreensão humana
Uma bagunça como aquela, no quintal, nunca tinha sido vista. Ou melhor, nunca tinha sido ouvida. Abriu-se a porta da cozinha, e os donos da casa apareceram para ver o que estava acontecendo.
Era gente muito boa. Bingo já sabia muito bem. Gente sempre disposta a fazer um cafuné no cangote e a encontrar alguma guloseima extra para ele.
"Esse pessoal vai me compreender", pensou Bingo.
Correu para o lado dos donos, abanando o rabinho, cheio de esperança. Olhou firme para cima e pronunciou o seu forte:
- “MIAAAU!”
Os óculos do dono pularam do nariz e a dona quase se engasgou com a dentadura. O dono pôs-se a falar apressadamente, enquanto procurava os óculos, de quatro, no meio dos cachorros. A dona pôs-se a balançar a cabeça, sem falar nada, porque ainda não tinha desengasgado.
Finalmente o dono encontrou os óculos e colocou-os de novo sobre o nariz, mesmo com uma das lentes quebrada pela queda. Voltaram os dois para dentro e bateram a porta da cozinha. Bingo pôde ouvir que discutiam alto, primeiro só o dono, depois com a dona junto, quando conseguiu desengasgar e pôr a dentadura no lugar.
Ai, ai, ai... Pelo jeito, o miado também não tinha dado certo com os humanos. O que iria acontecer agora?
Apavorado, surpreso, ofendido, Bingo ouviu alguma coisa parecida com “carrocinha”, ou algo do gênero.
Uma decisão de respeito
Bingo nunca tinha ouvido falar em carrocinha, mas Seu Bingão e Dona Bingona sabiam muito bem do que se tratava, pois a cachorra agarrou-se ao marido, tremendo. De medo, na certa.
Seu Bingão balançou a cabeça. Não havia nada a fazer. Ele sempre havia pensado que o pior destino de um cão é a carrocinha. Mas, agora, a carrocinha lhe parecia a melhor solução para uma tragédia daquele tamanho. Melhor a carrocinha do que a dignidade enlameada por um filho seu, miando como... como um gato!
Dona Bingona estava com o coração partido. Em condições normais, ela teria se oferecido para ser presa pela carrocinha, só para salvar um filhote seu. Mas a situação era diferente. Por mais que ela quisesse proteger o Bingo, não poderia, como boa mãe que era, permitir que a presença de seu filhote continuasse dando um péssimo exemplo como aquele. Era a carrocinha para um ou a perdição para toda a ninhada.
Assim, com tristeza, mas decidida, Dona Bingona deu as costas para o filhote e foi juntar-se ao marido. Ela era, também, uma vira-lata de respeito.
Os outros cachorrinhos, mesmo sem saber a razão de tudo aquilo, logo descobriram quem era mais forte e trataram de se juntar aos pais, por via das dúvidas.
A um canto do quintal, Bingo ficou só.
Do outro lado, debaixo do galpão, nenhum membro da família olhava para ele.
Mas, lá de cima, no alto do telhado, havia dois olhos fixos no pobre cachorrinho.
Bingo levantou o olhar. Lá estava o gato.
Ao relento, ao luar
Pelo resto daquela tarde, ninguém mais brincou naquele quintal. E ninguém chegou perto do Bingo, como se ele tivesse alguma doença contagiosa, tipo catapora ou sarampo, que ninguém quer pegar.
Quando a noite caiu, todos os cães foram para o galpão ajeitar-se em suas almofadas. Depois que todos já estavam acomodados, Bingo aproximou-se, exausto, só pensando em dormir.
Mas Seu Bingão levantou a cabeça e rosnou ameaçadoramente, mostrando os dentes.
O pobre Bingo parou, quis chorar, quis pedir, mas fez meia-volta. Nada adiantaria. Nada daria jeito.
Deitou-se num canto da horta e adormeceu, iluminado pelo luar. O mesmo luar que, naquele momento, em algum canto da cidade, iluminava o gato.
O homem de uniforme
Na manhã seguinte, um caminhãozinho cercado por grades, com cães de todos os tamanhos e feitios latindo e ganindo lá dentro, parou em frente à casa.
Os donos da casa e dos cachorros da família Bingão saíram para receber um homem de uniforme, com uma corda na mão.
Pelo jeito, depois de ouvir a explicação, o homem de uniforme não gostou da história:
- Cachorro que mia não pode!
- Mas por que não? - perguntou o dono com os óculos de lente quebrada.
- Não sei por quê. Só sei que nunca ouvi falar de cachorro miando. Quem mia é gato!
- Isso nós sabemos - concordou a dona com a dentadura solta. - Só que, infelizmente, esse mia...
- Então não é cachorro. É “gachorro”, ou “cachogato”, sei lá. E isso a carrocinha não pode prender.
A discussão não durou muito. O dono levantou os óculos quebrados para a testa, para enxergar melhor, meteu a mão no bolso, tirou uma ou duas notas e passou-as para o homem de uniforme.
O sujeito embolsou o dinheiro e suspirou:
- Está bem, vou ver o que posso fazer.
Quando aquele homem de uniforme, com sua corda, entrou no quintal, foi uma correria. Seu Bingão esqueceu-se do respeito e foi esconder-se debaixo da almofada. Dona Bingona pulou para baixo do tanque e entalou-se num balde.
Os cachorrinhos corriam de um lado para outro do quintal, e o homem de uniforme não sabia o que fazer.
- Qual deles? Este aqui? Aquele lá?
Cada cachorrinho apontado tratava logo de latir o mais que podia para livrar-se do laço.
A dona interveio, dentadura solta:
- Não, não é nenhum desses. É o Bingo. Cadê o Bingo?
- Bingo, vem cá!
E lá veio o Bingo. Aproximou-se do homem de uniforme. Todos os cães abriram um espaço, no meio do qual ficou o cachorrinho. Olhou para o homem, olhou para o laço e fez, tristemente:
- “Miau”...
- “Teje” preso! - gritou o homem de uniforme, jogando o laço em torno do pescocinho do Bingo.
Em cima do telhado, assistindo a tudo, estava o gato.
Na jaula sobre rodas
Bingo só pôde respirar quando lhe tiraram o laço do pescoço e o jogaram dentro da carrocinha.
Clang! fez a porta ao fechar-se.
Clic, clic! fez o cadeado ao trancar a porta.
O cachorrinho olhou à sua volta. Estava espremido entre vários companheiros de desgraça. Tudo lhe parecia um sonho mau, um pesadelo.
- Ora, vejam! - comentou um cão cheio de sarnas. - Agora eles estão prendendo crianças.
- Por que vocês estão presos? - perguntou timidamente Bingo. - Vocês também miam?
- Miar?! - horrorizou-se um cachorro de maus bofes. - Nós somos cães vagabundos, mas somos cachorros de verdade.
- Só temos azar - lamentou-se um felpudo, coçando as pulgas.
- Esse cachorrinho deve ser maluco...
- Antes cachorro maluco que cachorro louco! - resmungou um pequinês falsificado.
- É muito azar mesmo - lamentou-se de novo o felpudo, que era de lamentar-se. - Fome, pulgas, carrocinha, e ainda por cima um filhote maluco. Ai, ai, isso é o que chamam de “vida de cachorro”!
- É, mas tem cachorro que leva vida melhor do que muita gente - comentou o das sarnas. - Eu mesmo conheci uma cadelinha cheirosa, cheia dos talcos e dos trinques, que morava numa casa que...
- Ai, nem fale nesses cachorros almofadinhas - rosnou o cachorro de maus bofes. - Essa vida não é pra nós.
- Pois foi por causa daquela cadelinha que eu vim parar aqui - continuou o das sarnas. - Eu e ela estávamos no maior dos namoros quando chegou esse sujeito de uniforme, com aquele laço maldito.
- Vai ver foram os donos da tal cheirosinha que chamaram o homem do laço - raciocinou o pequinês.
Bingo ouvia tudo aquilo como se nada estivesse acontecendo de verdade. Na certa, ele ia acordar e ver-se novamente no seu quintal. Aí podia bater um papinho com o gato, e tudo voltaria a ficar como antes.
Um mestiço de buldogue inter- rompeu o pensamento do Bingo:
- Pra onde será que estão nos levando?
- Sei lá - tentou responder o sarnento. - Já vi muitos colegas caírem no laço da carrocinha. Só não vi nenhum voltar pra contar o que aconteceu...
Todos ficaram em silêncio. Em cada cabeça surgiram idéias diferentes acerca do destino daquela viagem sacolejante. E nenhuma era uma imagem agradável.
Já estava escurecendo quando a carrocinha freou na frente de uma casa grande, cercada de muros altos, onde estava escrito Canil Municipal. Lá de dentro ouviam-se uivos tristes e ganidos de cortar o coração. Nenhum latido de alegria.
No Canil Municipal
A grande porta da casa abriu-se e a carrocinha entrou por ela, manobrando até chegar perto de uma série de jaulas cheias de cães.
Bingo, na escuridão da noite que caía, mal pôde ver o que havia dentro das jaulas. Adivinhou apenas sombras assustadas que pulavam contra as grades, fazendo um alarido ensurdecedor.
Clic, clic! fez o cadeado destrancando a porta.
Clang! fez a porta ao abrir-se.
Querendo aproveitar a oportunidade, o cão de maus bofes pulou para fora, tentando fugir e ameaçando morder quem estivesse à frente.
Como um relâmpago, uma corda cortou o ar e apertou-se em torno do pescoço do cão, enquanto - vapt, vapt! - a ponta de outra corda caía várias vezes sobre o lombo do fujão, deixando marcas vermelhas e arrancando um ganido longo, sufocado pelo laço.
Com gritos e golpes de corda, os cachorros foram empurrados para uma das jaulas. Bingo, pequeno que era, conseguiu livrar-se das lambadas e esgueirou-se a salvo para o fundo da masmorra.
Outro “clang”, mais dois ou três “clics” e estavam todos presos de novo.
O canil estava cheio. No escuro, os cães se empurravam, se amassavam, excitados, perturbados, aflitos.
- Chega pra lá! - ameaçou um grandão, pêlo liso, negro. - Chega pra lá, senão vai dentada!
- Que é isso, valentão? - enfrentou um dos que acabavam de chegar junto com Bingo. - Estamos juntos, na mesma desgraça. Não vamos nos morder uns aos outros!
- É isso mesmo - concordou um veterano. - Vamos nos ajeitar, porque não temos outro jeito.
Aquilo tudo estava sendo demais para o pobrezinho do Bingo. Onde estaria o seu amigo gato? Quem sabe, ele poderia socorrê-lo, fazer alguma coisa. Bingo apoiou as patas da frente na grade e, como um chamado, soltou o mais forte “miau” de que era capaz.
Quem é que tá miando aí?
O som daquele miado atravessou todas as jaulas.
Inimigos de nascença de todos os gatos, os pobres cães prisioneiros puseram-se a latir ferozmente, como se pudessem arrebentar as grades e devorar o autor do “miau”.
Surpresa maior aconteceu na jaula onde estava o Bingo. Nenhum dos cães conseguiu entender.
- Que é isso?
- Será que eu ouvi direito?
- Esse cachorrinho fez “miau”?
- Vai ver, é um gato disfarçado!
- Pega!
- Pega o gato disfarçado!
- Mata!
- Esfola!
A cachorrada toda caiu em cima do Bingo. O pobre cachorrinho conseguiu escapar correndo entre as pernas dos agressores e ficou zanzando, ziguezagueando, até que, exausto, viu-se cercado, no fundo da jaula.
Nesse instante, um berro humano veio salvar Bingo.
- Quem é que tá miando aí?
- Que bagunça é essa?
- Cala a boca, cachorrada!
Vendo as cordas nas mãos dos carcereiros, os cachorros meteram os rabos entre as pernas.
Bingo, por um momento, estava salvo. Mas tinha saído todo esfolado da tentativa de linchamento, e seus arranhões provaram aos outros cachorros que ele não usava disfarce algum. Era um cão. Como os outros. Só que miava, e isso não podia ser admitido pelos companheiros de cela. Eram vagabundos, mas eram cachorros de verdade.
- Que vergonha! Um cachorro que mia! - rosnou o cão sarnento.
- Que azar! - lamentou-se o das pulgas, coçando as pulgas. - Além da prisão, além das pulgas, ainda tinha de aparecer um cachorro que mia!
Lambendo seus ferimentos, abandonado a um canto, Bingo estava triste, triste...
A raiva e a fúria
"Coitado!", você deve estar pensando. "Tanta dor, tanto sofrimento, mas por que ele não parou de miar e começou a latir como qualquer cachorro? Aí, todos os problemas dele estariam resolvidos, não acha?"
Acho. E confesso que até pensei nisso. Mas Bingo não queria. Ele achava que seus miados não faziam mal a ninguém. Por que mudar, então?
E olhe que os problemas não pararam por aí. No canil, Bingo conheceu as pulgas, pintinhas pretas puladoras e coçativas que não existiam lá no seu quintal, pois a dona da dentadura solta sempre dava banho nos cachorrinhos e botava um talquinho que, além de cheiroso, acabava com a vida das pulgas.
E a comida, então? Ah, que saudade das guloseimas e das tigelinhas de leite lá do quintal! No canil, o estômago novinho do Bingo passou mal: a comida que eles davam, além de pouca e rara, tinha gosto de sabão com quiabo e, pelo cheiro, parece que já vinha estragada.
- Você não vai comer? - gozou o pequinês falsificado, quando viu Bingo afastar-se da comida na noite seguinte. - Está com luxinho, é? Pois deixe que eu como a sua parte.
- Ei, sai pra lá! - intrometeu-se o grandão, de pêlo negro. - A comida do cachorrinho que mia vai ficar é pra mim!
A cachorrada já ia se engalfinhando numa briga de morte para disputar a comida fedorenta que Bingo tinha rejeitado, quando um barulho infernal veio da jaula ao lado.
- Que é isso? - surpreendeu-se o cão de maus bofes.
- É o vira-lata amarelo! - latiram da outra jaula. - Parece que está com raiva.
Raiva?! Os cães ficaram apavorados. A raiva é o pior que pode acontecer a um cachorro.
Os carcereiros chegaram em seguida. Estavam tão nervosos quanto os cães e traziam paus compridos, além das cordas.
- Olha! - apontou o chefe. - É aquele amarelo lá. Abre a porta. Laça com cuidado!
Bingo não pôde ver o que se passava. Ouviu os “clics”, o “clang” e as lambadas, logo seguidas por um ganido estrangulado.
Os carcereiros saíram da cela arrastando, meio enforcado pela corda, um cão amarelo que se debatia e espumava pela boca.
O chefe dos carcereiros tirou da cinta um objeto estranho, escuro, com um cano, que Bingo nunca tinha visto.
Ouviu-se um barulho parecido com os estouros dos canos de escapamento dos automóveis, que os cães conheciam tão bem: bam!
O cão amarelo parou de se debater.
Naquele momento, todos os prisioneiros começaram a uivar, enquanto os homens iam embora carregando o pobre cachorro louco.
Vamos fugir daqui!
Bingo tinha passado por tanta coisa naqueles dois dias que já se sentia um cão adulto, experiente, e não mais o cãozinho novo que era. Uma mosca pousou nos seus ferimentos e ele lambeu a pata, que coçava e ardia.
Seus companheiros de jaula estavam muito nervosos:
- Por que o vira-lata amarelo ficou quietinho depois daquele barulho de escapamento de automóvel? - perguntou o cão negro.
- Vai ver, ficou com medo. Eu também tenho medo de barulho de escapamento - confessou o pequinês.
- O que vai acontecer com ele? - o mestiço de buldogue também estava assustado.
- Sei lá - respondeu o sarnento. - Ele está doente, não está? Então ele precisa de um hospital de cachorros, não é?
- Quer dizer que os homens vão tratar dele? E ele vai voltar pra cá?
- Duvido - intrometeu-se um veterano. - Nunca vi um cão raivoso aparecer de novo, curado. Querem saber o que eu acho? Eu acho que eles vão acabar com ele!
- Não agüento mais! - desesperou-se o cão de maus bofes. - Fome, jaula, chicotadas, e ainda ficar raivoso pra essa gente acabar com a nossa vida! Eu não vou suportar isso!
- Podia ter sido um de nós! - lembrou o buldogue.
- Que azar! Podia ter sido eu! - lamentou o cão pulguento.
- E nós vamos ficar aqui, parados? - concluiu o de maus bofes. - Vamos fugir daqui!
- É isso mesmo! - Apoiado!
- Ninguém agüenta mais!
- Vamos fugir, sim - concordou o pequinês. - Mas fugir como?
- Precisamos de um plano - ajuntou o buldogue.
- Que azar! Não temos um plano - choramingou o das pulgas.
O cão de maus bofes latiu mais alto:
- Cambada de vira-latas burros! Vocês não são capazes de pensar em nada? Pois eu tenho um plano!
- Um plano? Que plano?
- Vamos, diga logo!
- Um de nós finge-se de cachorro louco. Aí, vêm os homens com os paus e com os laços. Aí, todos os outros pulam em cima deles, de surpresa. Aí, mordemos todo mundo, sem dó nem piedade. Aí...
- Aí, o quê? - perguntou o buldogue.
- Aí a gente foge, cachorro burro!
Os companheiros aprovaram a idéia na hora:
- Boa!
- Ótimo plano!
- Mas quem vai se fingir de raivoso?
- Não olhe pra mim! Você é besta? E se não der certo? Eu não quero que eles acabem comigo. Eu não quero morrer!
- Nem eu!
- Eu muito menos!
- Que tal cachorrinho que mia? - sugeriu o pequinês. - Ele é muito pequeno e nem vai servir para atacar os homens. Ele que se finja de louco!
- Isso! Se não der certo, azar dele! - caçoou o felpudo, das pulgas e dos azares. - Assim ele aprende a miar melhor! Eh, eh, eh!
- Deixem de ser burros! - berrou o líder, de maus bofes. - O cachorrinho é pequeno demais. Ele não vai saber se fingir de raivoso.
- É mesmo. O cachorrinho não serve pra nada!
- Que azar! O cachorrinho não pode se fingir de cachorro louco. E quem é que vai fingir?
- Você! - decidiu o líder.
- E-e-eu?! - gaguejou o das pulgas.
- Você mesmo. Não se preocupe, tudo vai dar certo.
- Que azar! Logo eu?
O plano estava pronto, e até Bingo achou que ia dar certo. Mas, se ele era pequeno demais para atacar os carcereiros e também era pequeno demais para fingir-se de cachorro louco, que papel ele teria no plano de fuga?
- Nenhum! - rosnou o de maus bofes. - Você não vai fugir com a gente. Quem mia não pode!
Nas sombras, uma idéia
- Vamos aproveitar agora que está bem escuro - comandou o líder, sempre de maus bofes. - Pulguento, vá lá para o fundo e comece a babar, rosnar e fingir-se de raivoso. Eu, o grandão, o buldogue e o sarnento ficamos deste lado da porta. O pequinês e os outros ficam do lado de lá. Quando vocês ouvirem o “clic, clic, clang”, já sabem: vamos cair em cima dos homens. Estão prontos?
- Estamos! - latiram todos.
- Então, pulguento, comece a fingir!
- Que azar! Que azar! - lamentou-se o das pulgas.
Bingo olhou para fora. Estava muito escuro mas, no telhado das jaulas em frente, o cachorrinho pensou ver uma sombra, que maciamente deslizava pelas telhas. Uma sombra da cor da noite. Seria o gato?
E Bingo teve uma idéia. Encolheu-se num canto da jaula, junto à grade, e ficou bem escondido na escuridão.
O felpudo começou a fazer o seu papel. Rosnou e babou o melhor que podia e rolou na terra, enquanto os outros cães ficavam em silêncio.
Não demorou quase nada, e a mesma balbúrdia que antecedera as desventuras do cão amarelo repetiu-se. Os homens vieram correndo, paus e cordas nas mãos.
- Outro raivoso? Não é possível!
- Aqui! Nesta jaula!
- Anda logo!
- Cuidado!
Vieram os “clics” e o “clang”. O chefe dos carcereiros entrou na frente e o cão de maus bofes pulou, pronto para abocanhar-lhe a garganta.
Bam, bam! Ouviu-se duas vezes aquele ruído de escapamento de automóvel.
E todos os prisioneiros viram o cão de maus bofes girar no ar e cair como uma fruta madura.
O que teria acontecido? Por que o líder, tão valente, estava agora quietinho, no chão, como o cão amarelo? Será que ele tinha tanto medo assim de escapamento de automóvel?
Sem saber o que fazer, os cachorros encolheram-se e todos os homens entraram na jaula. Entraram furiosos, afastando os cães com os paus compridos, batendo a torto e a direito com as cordas, laçando todos os cães que conseguiam ver no escuro.
Quase nos calcanhares do chefe dos carcereiros, Bingo fez, bem baixinho, aquilo que melhor sabia fazer:
- “Miau”!
Surpreso, o chefe olhou para baixo e não viu nada naquela escuridão.
- Um gato no canil?! Sai daqui, gato vagabundo!
E, com um pontapé, jogou Bingo para fora da jaula.
Adeus, Bingo
Livre, no corredor entre as jaulas, onde todos os cães latiam e atiravam-se contra as grades, Bingo correu tudo o que pôde. Espremeu-se pelas paredes, aproveitando as sombras e procurando o portão de saída, no meio daqueles muros tão altos.
Foi aí que a lua saiu de trás das nuvens e veio iluminar o pátio em frente ao portão.
- Que é isso? - gritou uma voz. - Um cachorro fora da jaula?!
- Hein? O quê? Pega! Laça ele!
Surgiram homens de todos os lados. Só, no meio do pátio iluminado pela lua, o cachorrinho não tinha para onde fugir.
Os olhinhos do Bingo cruzaram-se com o olhar amarelo do gato, lá no alto do muro.
- Vem - pareciam dizer aqueles olhos. - Pule!
Pular? Ele, um cachorrinho de quintal? Como?
- Vem. Você vai conseguir!
Não havia outro jeito. Quase cercado pelos homens, Bingo correu, tomou impulso e saltou.
Plaft! fez o corpinho do cachorro ao chocar-se contra o muro.
Ainda tonto pela queda, Bingo olhou novamente para cima do muro.
- Vem. Não desista agora. Você vai conseguir!
Bingo correu de novo, esticou-se todo e, mais uma vez - plaft!
O cachorrinho rolou na terra, levantou-se, correu de um laço que foi jogado contra o seu pescoço e olhou para aqueles olhos amarelos.
- Vem. Força! Tente de novo. Você vai conseguir! Você vai conseguir!
Com o corpo todo doído pelas duas quedas, Bingo disparou pelo pátio, ziguezagueou entre as pernas dos homens, livrou-se das pauladas e correu como nunca. Lutando pela vida, saltou como um gato.
Agarrou-se com as patinhas na beirada do muro, enquanto ouvia novamente aqueles estouros de escapamento de automóvel. A seu lado, lascas de reboco e tijolo foram arrancadas do muro.
Bingo não conseguia puxar o corpo para cima. Suas forças já estavam no fim.
Na sua frente, dois olhos amarelos fixaram-se nele.
- Força! Tente! Você está quase livre.
O cachorrinho cravou as unhas no muro, reuniu todas as energias e soltou o seu mais forte:
- “Miaaau”!
Lá embaixo, os homens viram, recortadas contra a lua cheia, as sombras de um gato e de um cachorro correndo sobre os telhados.
Ninguém mais pôde encontrar o Bingo. Nunca se soube para onde ele foi. Uns dizem que ele partiu para bem longe e foi aprender outras línguas. Dizem que, agora, Bingo sabe cocoricar, mugir, balir e até trinar. Outros acham que ele foi para uma terra onde todo mundo pode falar a língua que quiser. Uma terra onde é permitido miar. Uma terra onde é permitido ser diferente!
Fonte:
Historinhas pescadas : antologia de contistas brasileiros / [coordenação editorial Maristela Petrili de Almeida Leite, Pascoal Soto].- São Paulo : Moderna, 2001. – (Literatura em minha casa ; v. 2)
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