quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Euclides da Cunha (Poemas Escolhidos) II


ONDAS

Correi, rolai, correi — ondas sonoras
Que à luz primeira, dum futuro incerto,
Erguestes-vos assim — trêmulas, canoras,
Sobre o meu peito, um pélago deserto!

Correi... rolai — que, audaz, por entre a treva
Do desânimo atroz — enorme e densa —
Minh'alma um raio arroja e altiva eleva
Uma senda de luz que diz-se — Crença!

Ide pois — não importa que ilusória
Seja a esp'rança que em vós vejo fulgir...
— Escalai o penhasco ásp'ro da Glória...
Rolai, rolai — às plagas do Porvir!
[1883]

EU QUERO

Eu quero à doce luz dos vespertinos pálidos
Lançar-me, apaixonado, entre as sombras das matas
— Berços feitos de flor e de carvalhos cálidos
Onde a Poesia dorme, aos cantos das cascatas...

Eu quero aí viver — o meu viver funéreo,
Eu quero aí chorar — os tristes prantos meus...
E envolto o coração nas sombras do mistério,
Sentir minh'alma erguer-se entre a floresta de Deus!

Eu quero, da ingazeira erguida aos galhos úmidos,
Ouvir os cantos virgens da agreste patativa...
Da natureza eu quero, nos grandes seios túmidos,
Beber a Calma, o Bem, a Crença — ardente a altiva.

Eu quero, eu quero ouvir o esbravejar das águas
Das asp'ras cachoeiras que irrompem do sertão...
E a minh'alma, cansada ao peso atroz das mágoas,
Silente adormecer no colo da so'idão...
[1883]

REBATE 
(Aos padres)

Sonnez! sonnez toujours, clairons de la pensée.
V. Hugo

Ó pálidos heróis! ó pálidos atletas —
Que co'a razão sondais a profundez dos Céus —
Enquanto do existir no vasto Saara enorme
Embalde procurais essa miragem — Deus!...

A postos!... É chegado o dia do combate...
— As frontes levantai do seio das so'idões —
E as nossas armas vede — os cantos e as ideias,
E vede os arsenais — cérebros e corações.

De pé... a hora soa... esplêndida a Ciência
Com esse elo — a ideia — as mentes prende à luz
E ateia já, fatal, a rubra lavareda
Que vai — de pé heróis! — queimar a vossa Cruz...

Vos pesa sobre a fronte um passado de sangue.
— A vossa veste negra a muit'alma envolveu!
E tendes que pagar — ah! Dívidas tremendas!
Ao mundo: João Huss — e à Ciência: Galileu.

Vós sois demais na terra!... e pesa, pesa muito
O lívido bordel das almas, das razões,
Sobre o dorso do globo — sabeis — é o Vaticano,
Do qual a sombra faz a noite das nações...

Depois... o século expira e... padres, precisamos
Da ciência c'o archote — intérmino, fatal —
A vós incendiar — aos báculos e às mitras,
A fim de iluminar-lhe o grande funeral!

Já é, já vai mui longa a vossa fria noite,
Que em frente à Consciência, soubestes, vis, tecer...
Oh treva colossal — partir-te-á a luz...
Oh noite, arreda-te ante o novo alvorecer...

Oh vós que a flor da Crença — esquálidos — regais
Co'as lágrimas cruéis — dos mártires letais —
Vós, que tentais abrir um santuário — a cruz,
Da multidão no seio a golpe de punhais...

O passado trazeis de rastro a vossos pés!
Pois bem — vai-se mudar o gemer em rugir —
E a lágrima em lava!... ó pálidos heróis,
De pé! Que conquistar-vos vamos — o porvir!...
[1883]

GONÇALVES DIAS (AO PÉ DO MAR)

Seu eu pudesse cantar a grande história,
Que envolve ardente o teu viver brilhante!...
Filho dos trópicos que — audaz gigante —
Desceste ao túmulo subindo à Glória!...

Teu túmulo colossal — nest'hora eu fito —
Altivo, rugidor, sonoro, extenso —
O mar!... O mar!... Oh sim, teu crânio imenso —
Só podia conter-se — no infinito...

E eu — sou louco talvez — mas quando, forte,
Em seu dorso resvala — ardente — Norte,
E ele espumante estruge, brada, grita

E em cada vaga uma canção estoura...
Eu — creio ser tu'alma que, sonora,
Em seu seio sem fim — brava — palpita!...
[1883]

VERSO E REVERSO

Bem como o lótus que abre o seio perfumado
Ao doce olhar da estrela esquiva da amplidão
Assim também, um dia, a um doce olhar, domado,
Abri meu coração.

Ah! Foi um astro puro e vívido, e fulgente,
Que à noite de minh'alma em luz veio romper
Aquele olhar divino, aquele olhar ardente
De uns olhos de mulher...

Escopro divinal — tecido por auroras —
Bem dentro do meu peito, esplêndido, tombou,
E nele, altas canções e inspirações ardentes
Sublime burilou!

Foi ele que a minh'alma em noite atroz, cingida,
Ergueu do ideal, um dia, ao rútilo clarão.
Foi ele — aquele olhar que à lágrima dorida
Deu-me um berço — a Canção!

Foi ele que ensinou-me as minhas dores frias
Em estrofes ardentes, altivo, transformar!
Foi ele que ensinou-me a ouvir as melodias
Que brilham num olhar...

E são seus puros raios, seus raios róseos, santos
Envoltos sempre e sempre em tão divina cor,
As cordas divinais da lira de meus prantos,
D'harpa da minha dor!

Sim — ele é quem me dá o desespero e a calma,
O ceticismo e a crença, a raiva, o mal e o bem,
Lançou-me muita luz no coração e na alma,
Mas lágrimas também!

É ele que, febril, a espadanar fulgores,
Negreja na minh'alma, imenso, vil, fatal!
É quem me sangra o peito — e me mitiga as dores.
É bálsamo e é punhal.

Fonte:
Euclides da Cunha. Ondas e outros poemas esparsos.
Rio de Janeiro: 1883.

Nenhum comentário: