quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Malba Tahan (Os Pastéis de Alcassim)


O velho Abdo Alcassim, pasteleiro em Kufa, homem generoso e bom, chamou um dia seu filho Elias e disse-lhe, apontando para uma cesta repleta de deliciosos pastéis:

— Aqui tens, nesta cesta, tão bem arrumada, trinta e dois pastéis de leite e canela. Estão saborosos. Seriam dignos da esposa do Sultão. Leva-os ao nosso honrado cadi Ragi Zattar, que tão amável e correto tem sido para mim.

— Escuto e obedeço, meu pai — respondeu o jovem.

E partiu, no mesmo instante, para a casa do prestigioso magistrado, levando o apetitoso presente.

Em meio do caminho, ao passar pela mesquita, o rapaz parou, colocou a cesta no chão, olhou demoradamente para os pastéis e disse de si para consigo:

— Logo que entregar estes trinta e dois belíssimos pastéis de leite e canela ao honrado cadi Ragi Zattar, ele, de acordo com a velha e delicada praxe, fará questão absoluta de me dar a metade. Sim, é isso mesmo, a metade. Ora, qual é a metade de trinta e dois? Qualquer mestre-escola diria logo: a metade de trinta e dois é dezesseis! É certo, portanto, que, destes trinta e dois pastéis, dezesseis serão forçosamente meus. Não há mal, portanto, que os coma agora mesmo.

E, tendo raciocinado deste modo, comeu dezesseis dos pastéis, deixando os outros no fundo da cesta.

Depois de caminhar mais algum tempo, o jovem parou novamente, colocou a cesta sobre um pedaço de muro em ruínas e assim refletiu:

— Levo agora dezesseis magníficos pastéis de leite e canela, feitos por meu pai, ao honrado cadi Zattar (que Allah, o Muito Alto, o cubra de incontáveis benefícios!). Logo que fizer a entrega da cesta, serei, por ele próprio, obrigado a aceitar a metade do conteúdo. O cadi, sendo um homem de bem, não deixará de cumprir com essa velha praxe. E qual é a metade de dezesseis? Ora, a metade de dezesseis (qualquer burriqueiro do deserto não o ignora) é oito! Logo, destes dezesseis belos pastéis, oito serão forçosamente meus. Não vejo inconveniente em comê-los desde já.

E, firmado nessa maneira de raciocinar, devorou, o insaciável Elias, mais oito dos pastéis destinados ao cadi.

Logo adiante, graças a um raciocínio aritmeticamente idêntico aos anteriores, e sempre firmado na velha e delicada praxe, achou-se o peralvilho com o direito de comer mais quatro pastéis. E assim, de cada vez, comia metade dos pastéis que haviam ficado na cesta.

Quando chegou à casa do justo cadi Ragi Zattar, o magnífico presente do velho paste-leiro Alcassim estava reduzido a meio pastel.

—  Que é isso? — perguntou o cadi, intrigado, ao receber a cesta, no fundo da qual aparecia um pedaço de pastel.

—  É um presente de meu pai! — respondeu o pândego com a maior naturalidade. — É um presente do velho pasteleiro Abdo Alcassim ao seu amigo, o honrado cadi Ragi Zattar.

E contou, com a maior desfaçatez e sem-cerimônia, o raciocínio que várias vezes fizera para satisfazer sua gula nos pastéis destinados ao cadi.

Ao ouvir o minucioso relato da façanha, observou com serenidade o juiz de Kufa:

— Por Allah, meu jovem amigo! Sempre fui otimista na vida. Graças a tua maneira de proceder, inspirada na velha e delicada praxe, ainda ganhei meio pastel e vou saboreá-lo. Certo estou de que se fosse outro o mensageiro desse presente (que em boa hora me enviou o bondoso Alcassim) nem uma simples migalha chegaria às minhas mãos.

E já ia o cadi provar o meio pastel restante, quando o jovem protestou com um risinho petulante:

— Perdão, ó honrado cadi! Pelo nome do Profeta! Desse meio pastel, que ficou na cesta, segundo a velha e delicada praxe, eu tenho pleno direito à metade. Não é assim?

— Iallah! — concordou, prontamente, o juiz — A tua observação é muito justa. Que distração a minha! Devo seguir, ainda desta vez, a velha e delicada praxe. Dentro das regras da perfeita fidalguia tens, realmente, direito à metade desta mísera metade!

E, dividindo ao meio o pequeno quinhão que recebera, entregou uma das partes ao velhaco, comendo a parte restante.

Depois de saborear, em silêncio, aquela minúscula metade da metade, o cadi assim falou com voz muito séria:

—  Esse caso dos trinta e dois pastéis, meu amigo, vai ter um desfecho muito triste.

— Muito triste? Como assim?

— É fácil explicar — volveu o cadi, num tom vitorioso. — Teu pai, o velho Alcassim, deve ser severamente castigado. Castigado pela leviandade que praticou enviando, ao juiz de Kufa, um presente por um portador que não merecia confiança. Zombou da autoridade e, por esse crime, deve ser punido. Punido severamente!

— O honrado cadi vai castigar meu pai? — perguntou o birbante com ares de abstração palerma.

— Sim — confirmou com serenidade o cadi, elevando intencionalmente a voz. — Vou castigá-lo, como já disse. E castigá-lo com trinta e duas chibatadas.

E, depois de ligeira pausa, desfechou num gesto largo, secamente:

— E serás tu mesmo, meu caro Elias, o portador destas trinta e duas chibatadas. Ora, é claro, é evidente, que podemos repetir, para as trinta e duas chibatadas (que envio a teu pai), o mesmo e perfeito raciocínio que fizeste (como portador) para os trinta e dois pastéis de leite e canela que teu pai a mim me enviou... E, sendo assim (de acordo com a velha e delicada praxe), terás direito a trinta e uma chibatadas e meia! E no fim, terás, ainda, a metade da metade! Não é assim? Mas como, na Aritmética das Punições, não é possível calcular meia chibatada, vais receber, no lombo, agora mesmo, as trinta e duas chibatadas que eu resolvi, por plena justiça, enviar, por teu intermédio, a teu pai!

E o honrado cadi, no mesmo instante, chamou dois guardas (dos mais violentos que estavam a seu serviço) e mandou aplicar uma surra impiedosa, de trinta e duas chibatadas, no filho do pasteleiro.

Bem diz o provérbio que os beduínos repetem todos os dias:
“O castigo de Deus está mais perto do pecador do que as pálpebras estão dos olhos”. Uassalam
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Nota:
Cadi - Juiz. Magistrado.

Fonte:
Malba Tahan. O Gato do cheique e outras lendas.

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