quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Anthero de Quental (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 8) II



A FADA NEGRA

Uma velha de olhar mudo e frio,
De olhos sem cor, de lábios glaciais,
Tomou-me nos seus braços sepulcrais.
Tomou-me sobre o seio ermo e vazio.

E beijou-me em silêncio, longamente,
Longamente me uniu à face fria...
Oh! como a minha alma se estorcia
Sob os seus beijos, dolorosamente!

Onde os lábios pousou, a carne logo
Mirrou-se e encaneceu-se-me o cabelo,
Meus ossos confrangeram-se. O gelo
Do seu bafo secava mais que o fogo.

Com seu olhar sem cor, que me fitava,
A Fada negra me coalhou o sangue.
Dentro em meu coração inerte e exangue
Um silencio de morte se engolfava.

E volvendo em redor olhos absortos,
O mundo pareceu-me uma visão,
Um grande mar de névoa, de ilusão,
E a luz do sol como um luar de mortos...

Como o espectro dum mundo já defunto,
Um farrapo de mundo, nevoento,
Ruína aérea que sacode o vento,
Sem cor, sem consistência, sem conjunto...

E quanto adora quem adora o mundo,
Brilho e ventura, esperar, sorrir,
Eu vi tudo oscilar, pender, cair,
Inerte e já da cor dum moribundo.

Dentro em meu coração, nesse momento,
Fez-se um buraco enorme – e nesse abismo
Senti ruir não sei que cataclismo,
Como um universal desabamento...

Razão! Velha de olhar agudo e cru
E de hálito mortal mais do que a peste!
Pelo beijo de gelo que me deste,
Fada negra, bendita sejas tu!

Bendita sejas tu pela agonia
E o luto funeral daquela hora
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!

Pelo pranto e as torturas benfazejas
Do desengano... pela paz austera
Dum morto coração, que nada espera,
Nem deseja também... bendita sejas!

IGNOTO DEO

Que beleza mortal se te assemelha,
Ó sonhada visão desta alma ardente,
Que refletes em mim teu brilho ingente,
Lá como sobre o mar o sol se espelha?

O mundo é grande – e esta ânsia me aconselha
A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente,
Mas a ara só lhe encontro... nua e velha...

Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade,
Gota de mel em taça de venenos...

Pura essência das lagrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, ao céu ao menos!

LAMENTO

Um diluvio de luz cai da montanha:
Eis o dia! eis o sol! O esposo amado!
Onde ha por toda a terra um só cuidado
Que não dissipe a luz que o mundo banha?

Flor a custo medrada em erma penha,
Revolto mar ou golfo congelado,
Aonde ha ser de Deus tão olvidado
Para quem paz e alivio o céu não tenha?

Deus é Pai! Pai de toda a criatura:
E a todo o ser o seu amor assiste:
De seus filhos o mal sempre é lembrado...

Ah! se Deus a seus filhos dá ventura
Nesta hora santa... e eu só posso ser triste...
Serei filho, mas filho abandonado!

A M.C. (I)

Pôs-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
O que fala o poeta e o soldado
Volveu a ti o olhar, de amor velado,
E disse-te: «Vai, filha, sê formosa!»

E tu, descendo na onda harmoniosa,
Pousaste neste solo angustiado,
Estrela envolta num clarão sagrado,
Do teu límpido olhar na luz radiosa...

Mas eu... posso eu acaso merecer-te?
Deu-te o Senhor, mulher! O que é vedado,
Anjo! Deu-te o Senhor um mundo á parte.

E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
Sem poder mais... a mim o que me ha dado?
Voz, que te cante, e uma alma para amar-te!

A SANTOS VALENTE

Estreita é do prazer na vida a taça:
Largo, como o oceano é largo e fundo,
E como ele em venturas infecundo,
O cálix amargoso da desgraça.

E contudo nossa alma, quando passa
incerta peregrina, pelo mundo,
Prazer só pede à vida, amor fecundo,
É com essa esperança que se abraça.

É lei de Deus este aspirar imenso...
E contudo a ilusão impôs à vida.
E manda buscar luz e dá-nos treva!

Ah! se Deus acendeu um foco intenso
De amor e dor em nós, na ardente lida,
Porque a miragem cria... ou porque a leva?

TORMENTO DO IDEAL

Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre:
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura.
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste.

ASPIRAÇÃO

Meus dias vão correndo vagarosos
Sem prazer e sem dor, e até parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece...
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gozos.

Minh'alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...

Porém do pressentir dá-me a certeza.
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!

A FLORIDO TELLES

Se comparo poder ou ouro ou fama,
Venturas que em si têm oculto o dano,
Com aquele outro afeto soberano,
Que amor se diz e é luz de pura chama,

Vejo que são bem como arteira dama,
Que sob honesto riso esconde o engano,
E o que as segue, como homem leviano
Que por um vão prazer deixa quem ama.

Nasce do orgulho aquele estéril gozo
E a gloria dele é cousa fraudulenta,
Como quem na vaidade tem a palma:

Tem na paixão seu brilho mais formoso
E das paixões também some-o a tormenta...
Mas a glória do amor... essa vem d'alma!

SALMO

Esperemos em Deus! Ele ha tomado
Em suas mãos a massa inerte e fria
Da matéria impotente e, num só dia,
Luz, movimento, ação, tudo lhe ha dado.

Ele, ao mais pobre de alma, ha tributado
Desvelo e amor: ele conduz á via
Segura quem lhe foge e se extravia,
Quem pela noite andava desgarrado.

E a mim, que aspiro a ele, a mim, que o amo,
Que anseio por mais vida e maior brilho.
Há de negar-me o termo deste anseio?

Buscou quem o não quis; e a mim, que o chamo,
Há de fugir-me, como a ingrato filho?
Ó Deus, meu Pai e abrigo! Espero!... eu creio!

A M.C. (II)

No Céu, se existe um céu para quem chora.
Céu, para as magoas de quem sofre tanto...
Se é lá do amor o foco, puro e santo,
Chama que brilha, mas que não devora...

No céu, se uma alma nesse espaço mora.
Que a prece escuta e encharca o nosso pranto...
Se há Pai, que estenda sobre nós o manto
Do amor piedoso... que eu não sinto agora...

No céu, ó virgem! Findarão meus males:
Hei de lá renascer, eu que pareço
Aqui ter só nascido para dores.

Ali, ó lírio dos celestes vales!
Tendo seu fim, terão o seu começo.
Para não mais findar, nossos amores.

A JOÃO DE DEUS

Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;

É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.

O que há de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida:
Se procura, só acha... o desatino!

Só Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz duma outra vida,
Seja a terra degredo, o céu destino.

Fonte:
Anthero de Quental. Sonetos Completos.

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