sábado, 27 de outubro de 2018

Oscar Wilde (A Esfinge sem Segredos)


Numa tarde, eu estava sentado no terraço do Café de Paix, observando o esplendor e a decadência da vida parisiense, meditando com meu vermute a respeito do estranho panorama de orgulho e miséria que passava diante de mim, quando ouvi alguém chamar meu nome. Virei-me e avistei Lorde Murchison. Nós não nos encontrávamos desde que estiveramos juntos na faculdade, há quase dez anos, por isso fiquei encantado em cruzar com ele de novo, e apertamos as mãos calorosamente. Em Oxford, tínhamos sido grandes amigos. Gostava dele imensamente. Era tão belo, tão bem-humorado, tão nobre.

Costumávamos dizer a seu respeito que seria o melhor dos companheiros se não insistisse em falar sempre a verdade, mas acho que nós realmente o admiravamos, acima de tudo, pela franqueza. Eu o encontrei bastante mudado. Aparentava estar ansioso e confuso, parecendo em dúvida a respeito de alguma coisa. Tive a impressão que de não se tratava do moderno ceticismo, pois Murchison era o mais resistente dos tóris (membro do partido conservador, no Reino Unido da Grã-Bretanha) acreditava no Pentateuco (os cinco primeiros livros do Antigo Testamento, atribuídos a Moisés) tão firmemente quanto acreditava na Câmara dos Lordes. Assim, concluí que deveria tratar-se de uma mulher, e perguntei-lhe se já havia se casado.

“Eu não compreendo as mulheres o suficiente”, respondeu.

“Meu querido Gerald”, disse eu, “mulheres existem para serem amadas, não para serem compreendidas”.

“Se não posso confiar, não poderei amar”, replicou.

“Creio que você tem um mistério em sua vida, Gerald”, exclamei, “conte-me a respeito”.

“Vamos dar uma volta”, ele respondeu, “aqui está muito lotado. Não, não uma carruagem amarela, qualquer outra cor... aquela, a verde escura serve”. E em poucos minutos estávamos trotando para o bulevar, na direção de Madeleine.

“Aonde iremos?”, eu perguntei.

“Ah, aonde você quiser!”, ele respondeu, “ao restaurante de Bois. Jantaremos lá e você me contará tudo a seu respeito”.

“Primeiro gostaria de ouvir sobre você”, disse. “Conte-me seu mistério”.

Ele tirou do bolso uma caixinha de marroquim com feixe de prata e me entregou. Eu a abri. Dentro, estava a fotografia de uma mulher. Era alta e esbelta, estranhamente pitoresca com grandes olhos vagos e cabelos soltos. Parecia-se com uma clarividente, envolta em peles caras.

“O que você acha desse rosto?”, ele disse, “é confiável?”.

Examinei cuidadosamente. Pareceu-me o rosto de alguém que possuía um segredo, mas se o segredo era bom ou mau, não poderia dizer. Sua beleza era uma beleza moldada com muito mistérios – a beleza, na verdade, era psicológica, não plástica – e o sorriso lânguido, que apenas brincava por entre os lábios, era muito mais misterioso que propriamente encantador.

“Bem”, ele exclamou, impaciente, “o que você diz?”.

“É a Gioconda em peles de zibelina”, respondi. “Conte-me tudo a respeito dela”.

“Agora não”, disse ele; “depois do jantar”, e começou a falar sobre outras coisas.

Quando o garçom nos trouxe café e cigarros, lembrei a Gerald sobre a promessa. Ele se levantou de onde estava, caminhou duas ou três vezes de um lado a outro e, afundando em uma poltrona, contou-me a seguinte história:

“Num fim de tarde” estava caminhando pela Bond Street, por volta das cinco horas. Havia um congestionamento terrível de carruagens e o tráfego estava quase parado. Perto da calçada encontrava-se um pequeno coche amarelo, que por uma razão ou outra, atraiu minha atenção. Ao passar por ele, um rosto olhou para fora, o mesmo que eu lhe mostrei hoje à tarde. Fiquei imediatamente fascinado. Passei aquela noite inteira pensando nisso, e por todo o dia seguinte também. Perambulei para cima e para baixo por aquela travessa infame, perscrutando o interior de todas as carruagens, esperando pelo coche amarelo, mas não consegui encontrar minha bela desconhecida, por fim, comecei a achar que ela era meramente um sonho.

Cerca de uma semana mais tarde, fui jantar com Madame Rastail. O jantar estava marcado para as oito horas, mas às oito e meia eu ainda esperava na sala de visitas. Finalmente o criado abriu a porta, anunciando Lady Alroy. Era a mulher por quem procurava. Ela entrou devagar, parecendo um raio de luar em renda cinza, e, para meu absoluto deleite, pediram-me que a acompanhasse até a mesa. Depois de termos sentado, comentei, com perfeita inocência:

‘Penso tê-la visto de relance na Bond Street há pouco tempo atrás, Lady Alroy’.

Ela ficou muito pálida e disse-me, em voz baixa:

‘Peço-lhe que não fale tão alto. Alguém pode escutá-lo’.

Senti-me péssimo por ter começado tão mal e me apressei a comentar as peças francesas. Ela falou muito pouco, sempre na mesma voz melodiosa, e me pareceu que estar com medo de que alguém a ouvisse. Fiquei apaixonado, estupidamente enamorado, e a indefinível atmosfera de mistério que a cercava aumentou ainda mais minha ardente curiosidade. Quando ela já estava indo embora, o que fez logo depois do jantar, perguntei-lhe se podia vê-la novamente. Ela hesitou por um momento, olhando de relance ao redor para ver se tinha alguém por perto, e então disse:

‘Sim! Amanhã, às quinze para as cinco’.

Implorei à Madame de Restail que me falasse a respeito daquela mulher, mas tudo o que pude saber era que se tratava de uma viúva, com uma bela casa em Park Lane. Então como um tedioso especialista começasse a falar a respeito de viúvas, exemplificando a sobrevivência matrimonialmente mais aptos, saí e fui para casa. No dia seguinte, cheguei em Park Lane pontualmente na hora marcada, mas fui informado pelo mordomo de que Lady Alroy tinha acabado de sair. Fui para o clube completamente infeliz e muito confuso. Após longa consideração, escrevi-lhe uma carta
perguntando se me era permitido tentar a sorte noutra tarde. Por fim, recebi um bilhetinho dizendo que ela estaria em casa no domingo, às quatro, e acrescentava este inusitado pós-escrito:
‘Por favor, não me escreva novamente; explicarei quando nos vermos’.

No domingo ela me recebeu e estava plenamente encantadora, mas quando eu já ia embora, me implorou dizendo que, caso tornasse a lhe escrever, endereçasse a carta para ‘Sra. Knox, aos cuidados da Biblioteca Whitacker, Green Street’.

‘Há motivos’, disse ela, ‘pelos quais não posso receber cartas em minha própria casa’.

Durante toda a estação eu a vi com frequência, e a atmosfera de mistério nunca a abandonou. Por vezes pensei que ela estivesse sob o domínio de algum homem, mas parecia tão inacessível que foi verdadeiramente muito difícil para mim chegar a alguma conclusão, pois
ela era como um daqueles estranhos cristais que vemos nos museus: num instante estão claros, no outro, nublados. Por fim decidi pedi-la em casamento. Estava cansado e aborrecido pelo incessante sigilo que ela impunha a todas as minhas visitas e às poucas cartas que lhe enviava. Escrevi-lhe, para o endereço da biblioteca, perguntando se poderia vê-la na segunda-feira seguinte, às seis horas. Ela respondeu que sim, e fui transportado para o sétimo céu das delícias. Estava enfeitiçado por ela. Apesar do mistério, pensei na ocasião, em consequência dele, percebo agora. Não! Era à mulher quem eu amava. O mistério me aborrecia, me enfurecia. Por que o destino me pôs nesse caminho?”.

“Você descobriu, então”, exclamei.

“Temo que sim”, ele respondeu. “Você pode julgar por si mesmo”.

“Na segunda-feira fui almoçar com meu tio e, por volta das quatro horas, me encontrava em Marylebone Road. Meu tio, você sabe, mora em Pengent´s Park. Eu queria chegar a Piccadillty, então peguei um atalho através de várias ruazinhas desgastadas. De repente, vi diante de mim Lady Alroy, com o rosto coberto por um véu grosso, caminhando muito rápido. Chegando à última casa da rua, ela subiu os degraus, tirou a chave de trinco e entrou.

‘Esse é o mistério’, disse a mim mesmo, e corri a examinar a casa. Parecia uma dessas casas em que alugam quartos. No degrau da porta estava um lenço que ela deixara cair. Eu o recolhi e guardei-o no bolso. Em seguida, refleti sobre o que deveria fazer. Cheguei à conclusão de que não tinha o direito de espioná-la, e dirigi-me ao clube. Às seis, fui vê-la. Estava recostada em um sofá, com um robe de tecido prateado preso por algumas estranhas pedras da lua, que ela usava sempre. Parecia perfeitamente bela.

‘Estou tão feliz em vê-lo’, disse, ‘não me ausentei o dia todo’.

Eu a encarei, surpreso, e puxando o lenço do bolso, dei-o a ela.

‘Você deixou cair isto na Cumnor Street esta tarde, Lady Aboy’, disse, muito calmamente.

Ela me olhou aterrorizada, mas não fez nenhuma tentativa para pegar o lenço.

“O que você estava fazendo lá?”, perguntei.

“Que direito você tem de me questionar?”, respondeu.

“O direito de um homem que a ama”, repliquei. “Vim aqui para pedir que se case comigo”.

Ela escondeu o rosto entre as mãos e rompeu num mar de lágrimas.

“Você deve me dizer”, prossegui.

Ela levantou-se e, olhando-me diretamente, disse:

“Lorde Murchison, não há nada para lhe dizer”.

“Você foi se encontrar com alguém!” exclamei, “Esse é seu mistério”.

Ela ficou mortalmente pálida, e bradou:

“Não fui me encontrar com ninguém”.

“Não pode me dizer a verdade?”, exclamei.

“Eu a disse”, replicou.

Estava exasperado e furioso. Não lembro o que disse, mas falei coisas terríveis a ela. Por fim, saí correndo da casa. Ela me escreveu uma carta no dia seguinte; eu a devolvi ainda fechada e parti para Norway, com Alan Colville. Após um mês, retornei, e a primeira coisa que vi no Morning Post foi a notícia da morte de Lady Alroy. Tinha pego uma friagem na Ópera e morrido cinco dias mais tarde de congestão pulmonar. Eu me recolhi, não queria ver ninguém. Eu a amara tanto, eu a amara tão loucamente. Bom Deus! Como amei aquela mulher!”.

“Você voltou àquela rua, à casa em que fica lá?”, perguntei.

“Sim”, ele respondeu.

“Um dia retornei a Cumnor Street. Não pude evitar. Estava torturado pela dúvida. Bati à porta e uma mulher de aparência respeitável atendeu. Perguntei se tinha quartos para alugar.

‘Bem, sir’, ela replicou, ‘as salas de visitas estão supostamente alugadas, mas há três meses que não vejo a senhora, e como o aluguel ainda é devido, pode ficar com elas’.

‘É esta a senhora?’, disse-lhe, mostrando a fotografia.

‘É ela, tenho absoluta certeza’, ela exclamou, ‘e quando ela retornará, sir?’.

‘Esta senhora está morta’, repliquei.

‘Ah, sir! Espero que não!’, disse a mulher. ‘Ela era minha melhor inquilina. Pagava-me três guinéus por semana apenas para sentar-se em minhas salas de visitas de vez em quando’.

‘Ela encontrava-se com alguém aqui?’, eu perguntei, mas a mulher assegurou-me que isso não acontecia, que a senhora sempre vinha sozinha e não se encontrava com ninguém.

‘E o que, afinal, ela fazia aqui?’, bradei.

‘Simplesmente sentava-se na sala de visitas, sir, e lia algum livro. Algumas vezes, tomava chá’, respondeu a mulher.

Eu não sabia o que dizer, então dei a ela uma moeda e fui embora. Então, o que você acha que significa isso tudo? Você acredita que a mulher esteja dizendo a verdade?

“Acredito”.

“Então por que Lady Alroy ia até lá?”.

“Meu querido Gerald”, respondi, “Lady Alroy era simplesmente uma mulher com mania por mistérios. Alugava aquelas salas pelo prazer de ir até lá coberta por véus, imaginando-se uma heroína. Tinha paixão pelo segredo, mas ela própria era meramente uma esfinge sem segredo”.

“Acha mesmo isso?”.

“Tenho certeza disso”, repliquei.

Ele apanhou a caixa de marroquim, abriu-a, e olhou a fotografia.

“Será?”, disse ele, por fim.

Fonte: 
Oscar Wilde. Contos Completos.

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