quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) A Filha do Rei Mouro

Recolhido na Estremadura e no Algarve
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Um rei mouro tinha duas filhas. A mais nova queria aprender a religião e andava às escondidas com o camarista, que a ensinava. A mais velha vendo-a uma vez sair do quarto do camarista, disse-lhe:

– Deixa estar, mana, que o pai há de saber tudo.

– Ai menina! Disse o camareiro, se o rei sabe que anda a aprender a rezar comigo, estamos perdidos.

– Não tenhas medo; levanta-te de madrugada, aparelha dois cavalos e vamos para a tua terra.

Assim fez; ela encheu três sacos, um de cinza, outro de sal, e outro de carvão, e foram-se ambos por esse mundo fora. Quando o rei soube da fugida, mandou a sua tropa para agarrarem o camarista e a filha, e que os matassem onde quer que os encontrassem. A cavalaria correu a toda a brida, e estava já quase a pilhá-los, quando o camarista, olhando para trás, gritou:

– Ai menina, estamos perdidos.

– Não tenhas medo.

E a menina despejou o saco de cinza e fez-se logo um nevoeiro tão cerrado, que a tropa não pôde dar mais um passo, e voltaram para trás a dizer ao rei:


– Armou-se tamanho nevoeiro,

Que não víamos caminho nem carreiro.


O rei mandou-os avançar de novo, e que lhe trouxessem a princesa e o camarista presos.

– Ai menina, estamos perdidos! Disse o camarista vendo a cavalaria quase a alcançá-los.

– Não tenhas medo.

E despejou o saco de sal, e fez-se logo ali um grande mar, que os soldados não puderam atravessar. Voltaram outra vez para trás e foram dizer ao rei:


– Real senhor, achamos um grande mar

Que os cavalos não puderam passar.


O rei deu outra vez ordem de ir agarrar a filha e o camarista:

– Ai menina, estamos perdidos.

– Não tenhas medo.

E despejou o saco do carvão, e logo se fez uma noite muito escura, com grandes trovoadas e relâmpagos. As tropas voltaram, e foram dizer ao rei:


– Real senhor, fugimos em debandada

Com tantos raios e tamanha trovoada.


O camarista já estava perto da sua terra, e a princesa disse-lhe:

– Eu salvei-te da morte; mas agora em chegando à tua terra já te não lembras mais de mim.

Assim aconteceu. Ela com tristeza vestiu-se de viúva, e pôs uma estalagem para poder viver. O camarista convidou três amigos, e disse-lhes:

– Havemos ir cada um por sua vez pernoitar àquela estalagem.

Foi o primeiro, e disse que desejava ficar ali aquela noite. A estalajadeira disse que sim. Ele ficou muito contente. Quando foi para o quarto, começou a despir-se e a vestir-se, a despir-se e a vestir-se e ficou nisto até de manhã, em que já estava muito cansado. Assim que foi dia a estalajadeira, que tinha visto tudo do andar de cima, disse-lhe que se pusesse no meio da rua, porque tinha estado a fazer zombaria da casa. Veio o segundo, e também pediu para pernoitar; levou toda a noite a despir e a vestir a camisa, sem poder parar. Pela manhã também foi posto fora com igual descompostura. Veio o terceiro; pediu para pernoitar, e ela deu-lhe licença. Quando se ia deitar, disse que tinha muita sede:

– Pois vá ao quintal, e tire água daquele poço.

Toda a noite o pobre do homem esteve dando à nora, e só quando foi de dia é que apareceu a estalajadeira, que o fez parar e o pôs fora, dizendo que tinha vindo fazer zombaria da sua casa. Chegou o quarto amigo, e também pediu para pernoitar; ficou muito contente com a licença, porque os outros guardaram sempre o segredo do que lhes acontecera. Quando a estalajadeira estava deitada, disse:

– Ai que me esqueceu fechar a porta da rua.

– Vou eu fechá-la.

E toda a noite o hóspede andou para cá e para lá a fechar a porta da rua, até que pela manhã estava estafado, e a estalajadeira o pôs fora, por lhe querer quebrar a porta.

Os quatro amigos reuniram-se e contaram uns aos outros o sucedido. Mas ainda assim o camarista, que era um deles, não se lembrava nem por nada da amante que abandonara com tanta ingratidão. Como ele estivesse para casar na sua terra, segundo o costume, tinha de dar um jantar três dias antes do casamento às pessoas com quem vizinhava. Foi também convidar a estalajadeira viúva. Ela foi ao jantar. Quando estavam todos à mesa, combinou-se que cada um contaria a sua história:

– A senhora, apesar de estar com esse desgosto, há de também contar o seu conto.

A estalajadeira pediu que lhe apresentassem duas tigelas. Bateu com uma na outra, e apareceram um pombo e uma pomba. E disse a pomba:

– Não te lembras quando me ensinavas a rezar às escondidas de meu pai?

Disse o pombo:

– Lembro-me.

– E não te lembras quando minha irmã disse que ia contar tudo ao pai, e que disseste: Ai que estamos perdidos?

E assim foi perguntando, e o pombo respondeu a tudo o que se tinha passado com a filha do rei mouro. Só ao fim de muitas perguntas é que os convidados começaram a reparar em circunstâncias que se tinham dado com os quatro amigos, e o camarista conheceu a sua ingratidão:

– Real senhora, eu é que sou esse esquecido; e já desfaço aqui este casamento, para receber quem por mim deixou pai e mãe e a sua terra.
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Notas Comparativas

Há uma outra versão intitulada Grisme e Guiomar, nos Contos nacionais para crianças, n.º XV, Porto, 1883.

No Violier des Histoires romaines (Gesta Romanorum), cap. V, vem esta situação sem o maravilhoso da fuga dos dois amantes.

No Pentamerone de Basile, é Petrosinella, que foge lançando sucessivamente três nozes, que recebem várias transformações.

Nos Contos Zulus, de H. Callaway, há o de uma rapariga perseguida pelos canibais, que vai deixando cair atrás de si grãos de sésamo.

O mesmo em um conto russo em que a Baba Yaga corre atrás de uma rapariga.

O mesmo episódio aparece no Aprendiz do Mago, n.º 11.

O conto n.º17, o Cavalinho das sete cores, é uma variante notável, pelo episódio do esquecimento produzido pelo abraço em uma pessoa de casa.

As transformações dos amantes que fogem, acham-se nos contos estonianos, citados por Gubernatis, de Kreuzenwal. (Myth. Zoologique, t. I, p. 180).


Fonte:
Contos Tradicionais do Povo Português

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