Eu, pecador, me confesso
Ao leitor onipotente,
E a grã bondade lhe peço
De ouvir pacientemente
Uma lengalenga longa,
Uma longa lengalenga,
Áspera, como a araponga,
E tarda como um capenga.
Saiba Sua Senhoria
Que, em cousas parlamentares,
A minha sabedoria
Vale a de um ou dois muares.
Não? Isso é bondade sua...
Modéstia minha? Qual nada!
Digo-lhe a verdade crua,
Nua e desavergonhada.
Não entendo patavina,
Eu, que entendo a lei mosaica,
Humana, embora divina,
Límpida, conquanto ataica.
“E disse o Senhor: Faze isto,
Moisés, faze aquilo, ordena,
Eu, c'o meu poder te assisto;
Põe esta pena e esta pena”.
Eram assim leis sem voto,
Sem consulta, sem mais nada.
Deus falava ao grão devoto,
E vinha a lei promulgada.
Mas por que é que tanta gente,
Reunida numa sala,
Examina a lei pendente
Escuta, cogita e fala?
E por que vota? pergunto ...
Nisto abro uma folha, e leio
Bem explicado este assunto:
Era um discurso alto e cheio.
O orador, um deputado
Do Ceará, respondia
A um que o tinha acusado
De manter a escravaria.
Defendia-se, mostrando
Que, desde anos longos, fora
Dos que viveram chamando
A aurora libertadora.
Que a obra da liberdade
Era também obra sua,
Fê-la com alacridade,
Sem proclamá-lo na rua.
Votou, é certo, em contrário
Ao projeto com que o Dantas
Criou o sexagenário
E umas outras cousas tantas.
Mas não foi porque o julgasse
Oposto ao que entende justo,
Nem porque ele lhe vibrasse
Qualquer sensação de susto.
Foi só porque o gabinete
Para o Ceará mandara
Um presidente e um cacete,
Ambos de muito má cara.
Ele, vendo os seus amigos
Perseguidos, destinados,
Depois de grandes perigos,
A serem exterminados.
Votou contra a lei; e a prova
De que lhe não era oposto,
É que, vindo gente nova,
Votou a lei, de bom rosto.
E conclui assim: “Senhores,
Qualquer outro que se achasse,
Cheio de iguais amargores
E injúrias da mesma classe,
Faria o que fiz”. Pasmado,
De tudo o que não sabia,
Vim confessá-lo humilhado
Ante Vossa Senhoria.
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
Ao leitor onipotente,
E a grã bondade lhe peço
De ouvir pacientemente
Uma lengalenga longa,
Uma longa lengalenga,
Áspera, como a araponga,
E tarda como um capenga.
Saiba Sua Senhoria
Que, em cousas parlamentares,
A minha sabedoria
Vale a de um ou dois muares.
Não? Isso é bondade sua...
Modéstia minha? Qual nada!
Digo-lhe a verdade crua,
Nua e desavergonhada.
Não entendo patavina,
Eu, que entendo a lei mosaica,
Humana, embora divina,
Límpida, conquanto ataica.
“E disse o Senhor: Faze isto,
Moisés, faze aquilo, ordena,
Eu, c'o meu poder te assisto;
Põe esta pena e esta pena”.
Eram assim leis sem voto,
Sem consulta, sem mais nada.
Deus falava ao grão devoto,
E vinha a lei promulgada.
Mas por que é que tanta gente,
Reunida numa sala,
Examina a lei pendente
Escuta, cogita e fala?
E por que vota? pergunto ...
Nisto abro uma folha, e leio
Bem explicado este assunto:
Era um discurso alto e cheio.
O orador, um deputado
Do Ceará, respondia
A um que o tinha acusado
De manter a escravaria.
Defendia-se, mostrando
Que, desde anos longos, fora
Dos que viveram chamando
A aurora libertadora.
Que a obra da liberdade
Era também obra sua,
Fê-la com alacridade,
Sem proclamá-lo na rua.
Votou, é certo, em contrário
Ao projeto com que o Dantas
Criou o sexagenário
E umas outras cousas tantas.
Mas não foi porque o julgasse
Oposto ao que entende justo,
Nem porque ele lhe vibrasse
Qualquer sensação de susto.
Foi só porque o gabinete
Para o Ceará mandara
Um presidente e um cacete,
Ambos de muito má cara.
Ele, vendo os seus amigos
Perseguidos, destinados,
Depois de grandes perigos,
A serem exterminados.
Votou contra a lei; e a prova
De que lhe não era oposto,
É que, vindo gente nova,
Votou a lei, de bom rosto.
E conclui assim: “Senhores,
Qualquer outro que se achasse,
Cheio de iguais amargores
E injúrias da mesma classe,
Faria o que fiz”. Pasmado,
De tudo o que não sabia,
Vim confessá-lo humilhado
Ante Vossa Senhoria.
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
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