domingo, 29 de dezembro de 2013

Nilto Maciel (Apontamentos para um Ensaio)

Chegou antiquíssima, atual e eterna, com a sua cara de máscara.
Moreira Campos, Dizem que os cães veem coisas.

 No dia 7 de maio de 1994 Mauritz Zetterling chegou a Fortaleza. Não esperava nenhuma recepção, quer no aeroporto, quer no hotel. Afinal, ninguém da cidade o conhecia. Ninguém sequer sabia de sua existência. Talvez algum estudioso de literatura já tivesse lido seu nome. E se essa pessoa tivesse lido seus livros? Não, seus livros não haviam sido ainda traduzidos para o português. Nem mesmo em Portugal. Decididamente nenhum habitante de Fortaleza o conhecia. Ele, porém, conhecia uma pessoa daquela cidade. Não, não conhecia a pessoa, mas a obra literária dela. Pequena parte da obra, é verdade. E com aquela viagem tinha exatamente o objetivo de conhecer pessoalmente o autor de uns maravilhosos contos que havia lido em Estocolmo. Ah! como ansiava conversar com Moreira Campos.

No táxi trocou duas palavras com o motorista. E se perguntasse se conhecia o escritor? Não, os escritores não são cantores populares. Nem nas suas próprias terras. Apesar de muito cansado, tomou banho, almoçou, folheou um jornal e se pôs diante de uma televisão.

O primeiro brasileiro lido por Mauritz tinha sido Jorge Amado. Havia quase vinte anos. Interessou-se pelo Brasil e leu outros brasileiros. Em sueco ou em inglês. Lenngren, um tradutor amigo seu, levava-lhe novidades. Em 1993 mostrou-lhe um livro de Moreira Campos. Traduziu alguns contos para o sueco e, entusiasmado, pediu a opinião a Mauritz. Um novo Tchekhov, gritou o crítico. E se pôs a fazer apontamentos para o ensaio.

Os estudos de Zetterling sobre as obras de George Stiernhielm e Esaias Tegner eram tidos como essenciais para a compreensão da arte literária sueca desde Erikskrönikan. Nenhum crítico na Suécia o superava em conhecimento da literatura de sua pátria. Por que, então, abandonar esse posto e partir em busca de outros mares, de distantes, desconhecidas e ainda informes literaturas?

Tão exaltado se achava Mauritz que decidiu conhecer pessoalmente o contista brasileiro. E zarpou para o Rio de Janeiro. Logo, porém, se encheu de decepção e descrença. Nas livrarias não encontrou nenhum livro do contista. Nas universidades ninguém sabia da existência de Moreira Campos. Teria sido ludibriado? Maldito Lenngren! Ou o castigo imposto ao escritor partia dos editores, livreiros, professores, jornalistas? Já desesperado, ouviu de um vendedor – esse autor é gaúcho e os livro dele só são vendidos em Porto Alegre. Rumou para o sul. Não, Moreira Campos era mineiro e somente em Minas Gerais era lido. De Belo Horizonte partiu para Brasília. No Itamarati ninguém sabia da existência de contistas. Mandaram-no ao Ministério da Cultura. O sueco se havia equivocado – o nome da pessoa procurada era Moreira Campista, deputado e cotista de uma empresa de transportes urbanos. Dirigiu-se à Câmara. O deputado nem escrever sabia. A pessoa a quem Mauritz buscava – informou um assessor legislativo – chamava-se Moreia Campos, banqueiro.

Pronto a desistir de encontrar o escritor e voltar a Estocolmo, o crítico arrumou as malas e sentou-se na beira da cama. Não, não existia um contista brasileiro chamado Moreira Campos. Súbito lembrou-se de detalhe da biografia do contista traduzida por Lenngren: “Moreira Campos nasceu em Senador Pompeu”. Ora, certamente o escritor ainda morava na cidade natal, razão por que não se teria feito conhecido no resto do país. Consultou um mapa do Brasil. Não, o contista não viveria numa cidadezinha. Provavelmente morava numa cidade maior. Levou o mapa ao gerente do hotel e concluiu ser em Fortaleza a morada de Moreira Campos.

Animado com os novos rumos de sua peregrinação, Mauritz viajou para a capital do Ceará. Algumas horas depois de sua chagada, já quase satisfeito consigo mesmo, esteve para morrer de susto – o locutor de televisão anunciou o falecimento de Moreira Campos. E num relance o sueco constatou: havia sido conduzido pelo destino a conhecer o contista no seu último dia.

Surpresa maior Mauritz sentiu após os funerais. Em visita à casa da viúva encontrou os apontamentos por ele feitos para um ensaio sobre a obra de Moreira Campos. Achavam-se junto a rascunhos de contos. Apavorado, perguntou à senhora quem havia escrito ou copiado aquilo. E justificou a pergunta, cuidadoso de não ofender a viúva. Ora, havia deixado aquelas anotações numa gaveta fechada a chave, em sua casa. Lembrou-se do sorriso nos lábios do falecido, ao vê-lo deitado no caixão.

No dia seguinte Mauritz Zetterling regressou a Estocolmo. Tinha pressa em abrir a gaveta da escrivaninha. Virou a chave e nem sequer teve tempo de rever seus apontamentos para o ensaio. Subitamente tombou, sem vida.

Fonte:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

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