segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Gato Felix – I – A história do gato

Narizinho não teve o gosto de salvar o príncipe. Quando chegou ao ribeirão do pomar, já nada viu por ali. Certa de que ele se havia salvado a si próprio voltou correndo para casa, ansiosa por conhecer as aventuras do gato Félix. Chegou, botou o gato no colo e disse:

— Você tem que me contar a sua vida inteirinha, sabe?

— Pois não — respondeu o gato. — Mas só sei contar histórias de noite. De dia perdem a graça.

— Neste caso, vá dar um passeio e quando for de noite esteja aqui.

O gato saiu, passeou pelo sítio inteiro, caçou três ratos e de noite voltou. Tia Nastácia acendeu o lampião da sala. Depois disse:

— “É hora, gente!” Todos vieram postar-se em redor do ilustre personagem; dona Benta sentou-se na sua cadeirinha de pernas serradas; Narizinho e Pedrinho sentaram-se na rede; Emília foi para o colo da menina. Até o Visconde de Sabugosa quis ouvir as histórias. Narizinho teve dó do coitado; espanou-lhe o bolor e botou-o num canto da sala, dentro duma lata — para que não sujasse o chão com aquele pó verde. Logo que todos se acomodaram, Emília disse:

— Comece, seu Félix! E o gato Félix começou.

— Houve na França um gato muitíssimo ilustre, que era escudeiro do marquês de Carabás — tão ilustre que não há no mundo inteiro criança que o não conheça.

— Até eu! — gritou Emília. — Era o tal Gato de Botas!...

— Justamente, menina. Esse famoso gato era o escudeiro do marquês de Carabás. Fez coisas do arco-da-velha, como se sabe, até que se casou com uma linda gata amarela e teve muitos filhos. Esses filhos tiveram outros filhos. Estes outros filhos tiveram novos filhos, e veio vindo aquela gafaria que não acabava mais até que nasci eu.

— Que bom! — exclamou Narizinho. — Então você é bisneto ou tataraneto do Gato de Botas?

— Sou cinqüentaneto dele — disse o gato Félix — Mas não nasci na Europa. Meu avô veio para a América no navio de Cristóvão Colombo e naturalizou-se americano. Eu ainda alcancei meu avô. Era um velhinho muito velho, que gostava de contar histórias da sua viagem.

Emília bateu palmas.

— Conte, conte! Conte as histórias que ele contava. Conte como foi que o tal Colombo descobriu a América. O gato Félix tossiu e contou.

— Meu avô veio justamente no navio de Cristóvão Colombo, que se chamava “Santa Maria”. Veio no porão e durante toda a viagem não viu coisa nenhuma senão ratos. Havia mais ratos no “Santa Maria” do que pulgas num cachorro pulguento, e enquanto lá em cima os marinheiros lutavam com as tempestades, meu avô lá embaixo lutava com a rataria. Caçou mais de mil. Chegou a enfarar-se de rato a ponto de não poder ver nem um pelinho de camundongo. Afinal o navio parou e ele saiu do porão e foi lá para cima e viu um lindo sol e um lindo mar e bem na frente uma terra cheia de palmeiras.

— Então era o Brasil! — disse Emília. — Aqui é que é a terra das palmeiras com sabiá na ponta!...

— Viu a terra cheia de palmeiras, e na praia uma porção de índios nus, armados de arcos e flechas, a olharem para o navio como se estivessem vendo coisa do outro mundo. Era a primeira vez que um navio aparecia por ali.

— Imaginem se eles vissem o trem de ferro!... – observou Emília.

— Colombo, então — continuou o gato — resolveu desembarcar e saber que terra era aquela, porque estava na dúvida se seria realmente a América ou outra. Entrou num bote e foi para a praia. Pulou do bote e chamou os índios.

Os índios não se mexeram do lugar, mas o cacique deles criou coragem e adiantou-se e chegou perto de Colombo.

— Meus cumprimentos — disse Colombo, com toda a gentileza, fazendo uma cortesia com o chapéu de plumas.

— Bem-vindo seja! — respondeu o índio, sem tirar o chapéu, porque não usava chapéu. Colombo então perguntou:

— Poderá o cavalheiro dizer-me se isto por aqui é a tal América que eu ando procurando?

— Perfeitamente!” — respondeu o índio. Isto por aqui é a tal América que o senhor anda procurando. E o senhor já sei quem é. O senhor é o tal Cristóvão Colombo, não?

— Realmente, sou o tal. Mas como adivinhou?

— Pelo jeito! — respondeu o índio. — Assim que o senhor botou o pé na praia, senti uma batida na pacuera e disse cá comigo: É o senhor Cristóvão que está chegando, até aposto!

Colombo adiantou-se para apertar a mão do índio. Em seguida o índio virou-se para os companheiros lá longe e gritou:

— Estamos descobertos, rapaziada! Este é o tal Cristóvão Colombo que vem tomar conta das nossas terras. O tempo antigo lá se foi. Daqui por diante é vida nova — e vai ser um turumbamba danado...”

Nesse ponto da história o Visconde botou a cabeça fora da lata e disse:

— Não acreditem! A descoberta da América não foi assim, foi muito diferente. Eu li toda a história de Colombo num livro de dona Benta. Posso afirmar que o gato Félix está inventando.

— Não está inventando nada! — berrou Emília. — Foi assim mesmo. O livro não esteve lá e não pode saber mais do que o avô de seu Félix, que esteve presente e viu tudo.

— Mas essa história é absurda! — berrou o sábio Visconde. – Isso é um disparate!...

— Disparate é o seu nariz — berrou Emília. E voltando-se para a menina:

— Narizinho, por que é que você não tampa o Visconde?

Narizinho achou boa a idéia; foi lá e tampou a lata com o Visconde dentro.

Terminado o incidente, o gato Félix continuou:

— Depois disso houve muitas coisas, e mais coisas, e outras coisas, até que meu avô se casou e nasceu meu pai, e meu pai se casou e nasci eu.

— E onde nasceu? — perguntou Pedrinho.

— Nasci nos Estados Unidos, na cidade de Nova York. As casas lá são tão altas que se chamam arranha-céus. Eu nasci no quadragésimo terceiro andar do arranha-céu mais alto de todos.

— Quadragésimo! — murmurou Emília. — Que bonito nome! Eu, se fosse dona Benta, batizava a vaca mocha de Quadragésima...

— Não atrapalhe, Emília, deixe o gato falar – advertiu Narizinho. E, voltando-se para o gato Félix: — Mas essas casas arranham mesmo o céu ou é um modo de dizer?

— Arranham, sim — confirmou o gato — e às vezes até o furam. O céu de lá é todo furadinho.

— Quem deve ficar furioso é São Pedro — disse a boneca. — Eu, se fosse ele, suspendia o céu um pouco mais para cima.

Narizinho tapou-lhe com a mão a boca.

— Nasci num arranha-céu — continuou o gato — e criei-me na rua. Fui o gatinho mais travesso da América, o mais atropelador dos camundongos. Depois que cresci, atirei-me para cima das ratazanas com tamanha fúria que quase todas se mudaram da cidade. Um dia me deu na cabeça viajar. Fui ao porto, onde vi uma porção de navios, uns mais novos, outros mais velhos. Escolhi o mais velho, calculando que nele devia haver mais ratos. Entrei sem pagar passagem e dirigi me ao porão. Assim que entrei, a rataria disparou. Só pude apanhar quatro.

No dia seguinte peguei dez. No terceiro dia peguei vinte. No quarto....

— Pegou quarenta! — disse Emília.

— Não, trinta e nove só — corrigiu o gato. — E assim durante quinze dias. Ao fim desse tempo, gordo que nem um porquinho, deixei a rataria em paz. Foi nessa ocasião que aconteceu o desastre.

— Que desastre?

— Espere. Estava eu comendo o último rato que comi no navio, quando rompeu lá em cima um berreiro. Subi ao tombadilho para ver o que era e encontrei o capitão dizendo que o navio tinha batido numa pedra e ia afundar.

— Credo! — exclamou tia Nastácia, que estava cochilando e acordara nesse ponto. — Devia ser um quadro muito triste...

— Sim, ia afundar — continuou o gato. — Como houvesse arrebentado a proa, estava bebendo água que nem uma esponja. Os marinheiros corriam de um lado para outro, qual doidos. Uns tomavam os escaleres, outros amarravam à cintura os salva-vidas, outros lançavam-se à água. Eu disse comigo: “E agora, Félix, que vai ser de ti?” Pensei, pensei e por fim tive uma idéia. A única salvação seria fazer-me engolir vivo por algum dos tubarões que rodeavam o navio com as bocas abertas e aquelas dentuças que mais pareciam serrotes.

— Credo! — exclamou outra vez tia Nastácia fazendo o sinal da cruz. — É por essas e outras que nunca hei de sair do meu cantinho...

— Tive essa idéia — continuou o gato — e tratei de pô-la em prática. Escolhi o tubarão maior de todos e quando ele passou perto de mim, dei um pulo e caí, como pílula, bem no fundo da garganta dele!

— E não se arranhou? — disse Emília. — Não esbarrou nalgum dente?

— Nada! Caí na campainha do tubarão e nela me agarrei e fui entrando por aquele corredor vermelho afora até chegar ao estômago.

— Era grande?

— Tinha o tamanho desta sala — respondeu o gato com o maior caradurismo.

Nesse ponto o Visconde empurrou a tampa da lata, botou a cabeça de fora e gritou:

— Não acreditem! É mentira! Nem baleia tem estômago desse tamanho. Além disso, é impossível a um gato permanecer vivo num estômago de tubarão.

— Impossível por que, seu Embolorado? — disse Emília. – Não se lembra da história que dona Benta contou do profeta Jonas, que “permaneceu” uma porção de tempo dentro da barriga de um peixe?

— Sim — concordou o Visconde. — Mas Jonas era profeta.

— Jonas era profeta e seu Félix é quadragésimo. Dá na mesma.

Todos acharam que Emília tinha razão.

— Fiquei lá muito sossegado da minha vida — continuou o gato — mas vi logo que não podia morar ali por muito tempo. Não havia ratos — e gato não sabe viver onde não há ratos. Tinha que sair, mas como? Sair era cair n’água e morrer afogado. De que modo resolver o problema?

— Muito simples — disse Emília. — Era só fazer uma canoinha e entrar nela e ir remando...

— Cale essa boca, não seja tão sapeca! — interveio Narizinho.

— Quem está contando a história é o gato Félix, não é você.

O gato continuou: .

— O caso era dificílimo, e eu estava a pensar nele quando vi entrar no estômago da fera uma enorme isca com anzol dentro. Mais que depressa fisguei o anzol, bem fisgado, na pacuera do monstro.

Assim que ele sentiu a dor da fisgada, pôs-se a corcovear como burro bravo com domador em cima. Corcoveou, corcoveou, corcoveou até que não pôde mais e foi morrendo. Passaram-se algumas horas sem acontecer nada. O tubarão estava bem morto. Nisto vi uma réstia de luz e uma ponta de faca aparecendo. Encolhi-me bem encolhido para me livrar da faca e compreendi que estavam abrindo a barriga do peixe. Não esperei por mais. Dei um pulo para fora e caí no meio dum grupo de marinheiros, bem dentro dum navio!... Os marinheiros ficaram assombradíssimos de ver sair um gato vivo da barriga de um peixe e só sossegaram quando lhes contei toda a minha história. O capitão olhou para mim, alisou as barbas e disse:

— Para onde pretende ir? Meu navio está de rumo à Inglaterra, onde poderei desembarcar você?

— Muito obrigado” — respondi. — O país que eu procuro não é esse.

— Será a França?

— Não!

— Será a Alemanha? a Suécia? a Turquia? a Arábia? A Patagônia?

— Nada disso. A terra que eu procuro é aquela onde o demo perdeu as botas. Quero encontrar essas botas.

O capitão julgou que eu estivesse a mangar com ele e pregou me tamanho pontapé que fui parar no porão.

Todos deram gostosas risadas e tia Nastácia observou:

— Isso é invenção de gente sem serviço. Esse lugar nunca existiu.

— Como nunca existiu, se foi lá que o demo perdeu as botas? — replicou Emília. — Eu acho que seu Félix tem toda a razão e mais vale descobrir esse lugar do que descobrir a América. Continue, seu Félix.

O gato continuou:

— Fiquei no porão até que o navio entrou num porto. Desembarquei e fui andando por um caminho muito comprido. De repente apareceu uma velha, muito velha e coroca, de porretinho na mão.

— Vai ver que era uma fada — cochichou Emília ao ouvido de Narizinho.

— Cheguei-me para a velha e perguntei: “A senhora poderá dizer-me onde fica o lugar onde o demo perdeu as botas?

A velha admirou-se da pergunta; arregalou os olhos, abriu uma boca de bagre sem um só dente nas gengivas e respondeu:

— Não sei, gatinho. Mas se você for andando, andando, andando sem parar, aposto que um dia chega a essa terra.

Aceitei o conselho da velha e fui andando, andando, andando até que encontrei...

— Uma coruja! — interrompeu Emília.

— Não — disse o gato — encontrei um sábio muito velho, de grandes barbas brancas. Cheguei-me a ele e perguntei:

— Senhor velho, poderá dizer-me onde é o lugar em que o demo perdeu as botas?

— Posso, sim — respondeu o velho. — Fica pertinho dos confins do Judas.

Vi que o velho estava caçoando comigo e fui-me embora.

Andei, andei, andei...

— Pare de andar. Seu Félix. Chegue logo, que já está caceteando — disse Emília.

O gato desapontou um bocadinho, mas continuou:

— Andei, andei, andei, até que encontrei...

— Uma coruja! — interrompeu de novo Emília.

— Não amole mais com essa coruja, Emília! – disse Narizinho. — Ele não encontrou coruja nenhuma. Cara de coruja tem você. Continue, gato Félix.

— Encontrei outra velha, mais velha ainda e mais coroca do que a primeira.

Emília deu uma risada gostosa.

— Que terra esquisita!... Só velho para cá, velha para lá... Com certeza foi no país de Matusalém...

O gato Félix desapontou mais um bocadinho, mas continuou:

— Encontrei uma velha, muito velha e perguntei: “A senhora...”

— Etc. etc. — disse Emília. — E que é que ela respondeu?

O gato Félix, ainda mais desapontado, continuou:

— Ela respondeu:

— Esse lugar não existe, gatinho. O demo nunca teve botas. Você não sabe que o que ele tem são cascos?

— E aí? — indagou Emília, que estava achando aquela história muito sem jeito.

— Aí eu... eu... parei de procurar a tal terra e fui cuidar de outra coisa.

Dessa vez o desapontamento foi geral. Dona Benta olhou para Narizinho, tia Nastácia olhou para dona Benta, Pedrinho olhou para o forro. Só Emília teve coragem de olhar para o gato. Arrebitou o nariz de retrós, fez um muxoxo de pouco caso e disse:

— Não valeu a pena vir de tão longe para contar uma história tão sem pé nem cabeça. Eu, que nunca saí daqui, sou capaz de contar coisa muito mais bonita.

— Pois então vamos dormir — disse dona Benta levantando-se — e quem conta a história de amanhã vai ser a Emília.
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Continua... O Gato Felix – II – A história da Emília

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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