segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Manoel de Barros (Poemas Rupestres) Parte V


O QUE O POETA TIRA DAS PALAVRAS:

- Palavra sem alamares = sem fios dourados ou enfeites. Adereço para vestes cerimoniais ou de cargos importantes. A finalidade desse enfeite é produzir solenidade, no caso à palavra.

- sem chatilenas – originariamente “châtelaines” eram correntes metálicas usadas à cintura, com função decorativa e utilitária, na qual se dependuravam chaves e instrumentos de costura; também são ademanes de origem árabe para enrolar e conferir envolturas, meandros e curvaturas como um meneio de dança árabe, sempre enfeitada por véus de seda e com muita insinuação sensual.

- sem suspensórios = alças que sustentam a calça ou veste da palavra. Usados normalmente por pessoas de distinção quando querem embutir no traje a solenidade da pessoa ou do cargo; também suspensórios, antigamente, eram usados para sustentar as calças curtas dos meninos. Porém, os suspensórios não deixam de ser adereços que se acrescentam. O poeta não quer palavras que sejam sustentadas por algo, ele as quer íntegras, puras, sem o auxílio de algo para indicar a sua força de significar. Quer delas um sentido que brote de seu interior.

- sem talabartes – ou talim – também, um adereço de farda ou de roupagem solene. O poeta não quer palavras enguirlandadas por qualquer enfeite, mesmo que estes possam indicar a força militar de uma palavra, ou poder de pólvora, de fogo como as fardas podem indicar.

- sem paramentos = paramentos tomados como vestes usadas em cerimoniais religiosos estão em contraposição aos talabartes das fardas. Nem o poder do exército ou o poder religioso, nem a raiz de um ou de outro valem para o sentido da palavra; se não valem os enfeites externos, também o poeta rejeita que se agregue às palavras poderes mais profundos como o foram o das armas ou o numinoso.

- sem diademas – coroas ou símbolos de vitórias, de conquistas ou de belezas celebradas. Nada disso vale ao poeta, pois uma palavra caracterizada assim já expôs ao público o seu potencial de significar. Somente poderá mostrar ou ostentar aquele diadema que significa tal coisa, denotativamente. Ao passo que o poeta não quer nada que se finalizou ou foi conquistado, ele quer atingir a raiz funda e obscura, não pesquisada da palavra. Diadema de conquista de algo não lhe serve em relação a qualquer palavra. Uma palavra que se lhe apresentar com um diadema, será afastada, pois mostra um sentido adquirido.

- sem ademanes – também não vai agradar ao poeta uma palavra rica de meneios ou de várias máscaras que lhe configuram sentidos provisórios, que não lhe mostram consistência da fonte, da raiz. Nada de disfarce ou de tentativas de oferta, ou de tentativas insinuantes vai apetecer ao poeta. Uma palavra cheia de volteios ou meneios já se configurou em seu sentido, o poeta nada poderá fazer por ela.

- sem colarinho – como a história das vestes se mostrou farta no uso desse adereço... Mas colarinho em palavra indica muito um cargo provisório, um poder que não é original, enraizado, mas funcional, que em geral impressiona pela destreza do poder que maneja. Para o poeta esse poder não o seduz. Foge do poder efêmero de tudo, ele quer inaugurar algo perante o qual o dinheiro não pode nada, nem comprar, nem mostrar poder, nem manipular.

QUER A PALAVRA HUMILDE

- limpa de soberba – rude e capaz de se deixar inaugurar para um sentido inesperado, que indique uma novidade de vida ou para a vida. Soberba não combina com criatividade, com relação de beleza, de generosidade ou de oferta e, sobretudo de simplicidade. Soberba combina com poder, poeta vive de humildade, de entrega e de dedicação sem retorno. Soberba combina com público, poeta combina com solidão, com consistência da descoberta, com o escondido...

- limpa de melenas – sem cabelos longos de enfeite. Os cabelos longos conferem solenidade, o poeta prefere a palavra empobrecida até de uma crina que pode indicar a solenidade de um cavalo de raça ou a palavra ‘careca', de cabelos curtos como acontece com o prisioneiros, com os deserdados da sociedade ou até doentes. Nada é agradável ao poeta que na palavra traduza ordem, elegância, estirpe engalanada. Quer a palavra em estado de indigência, de pobreza e obscuridade.

COMO O POETA SE VÊ EM RELAÇÃO DE LUTA COM AS PALAVRAS – O HORIZONTE DE SEU DESEJO

- ‘Eu queria ficar mais porcaria com as palavras' . Não somente as palavras devem estar empobrecidas em relação a qualquer enfeite, mas o próprio poeta julga necessário se “emporcalhar” com o lixo da palavra empobrecida. ‘Porcaria', é a expressão do poeta; vem de porco e porco gosta da lama, de dejeto, sente-se bem no lamaçal tão evitado pelas pessoas. Ao passo que o poeta deseja um contato íntimo com a deterioração do sentido das palavras, tornar-se escória com a palavra, logicamente para fazê-la significar novamente, inaugurar algo jamais antevisto. Na ‘porcaria' o poeta perde-se com a palavra para todos os sentidos, dissolve-se em um magma rico de potencialidades que a escória ou o lamaçal lhe oferece, aí, nesta morte para o já adquirido, para o significado conhecido, no mergulho junto com a palavra a seu universo profundo, luta para que a palavra agregue outros valores novos. Do lixo, do lamaçal, da deterioração surge o belo, a leveza e o novo significado grudado na palavra que, por sua vez inaugura o poeta.

- ‘Eu não queria colher nenhum pendão com elas' – Somente ele quer, mesmo quando brotou o novo sentido para as palavras, permanecer na humildade e no escondimento. Não tem propensão para deixar-se levar pela sedução da glória; prefere a sedução do lamaçal que é mais criativo, apesar de doloroso e muito trabalhoso. Prefere o trabalho escondido ao passageiro e saboroso gozo da glória. Não quer que as palavras se iludam com os ‘pendões' da glória. Prefere ser oferta, gratuita e jubilosa.

- Queria ser apenas relativo de águas

Queria ser admirado pelos pássaros.' Por sua vez o poeta que inaugura as palavras também se inaugura porque percorreu a trajetória de mergulhar com as palavras para as fontes ou raízes potenciais de onde a novidade pode brotar. Ao fim do poema proclama sonoramente o resultado de seu estado inaugural e tem que afirmar que ele será poeta se voltar ao seu ‘terreno', ao seu manancial inesgotável: sua relação primeva com as águas. Segundo o livro do Gênesis, antes de tudo as águas eram o elemento primordial. Depois Deus foi mostrando a beleza da criação na distinção de tantas novidades inaugurais, deixando para Adão a tarefa de nomeá-las. O poeta quer apenas acessar suas águas primordiais e as palavras em estado de abandono ou de deterioração auxiliam-no a ir para esse manancial primeiro.

Elege, no outro verso, os pássaros como receptáculos ou capazes de maravilharem-se com as suas inaugurações. Talvez porque o percurso de um pássaro nunca será o mesmo ou ainda por sua natural humildade em suas grandezas e em sua natural, deslumbrante beleza de plumas e pelas notas de seus trinados. A humildade dos pássaros é proclamar a novidade que os constitui sempre. Pássaros não são afeitos à soberba ou a glórias efêmeras. São o que são, mesmo gloriosos e grandiosos, por humildade.

- ‘Eu queria sempre a palavra no áspero dela' – Devolve a palavra ao seu natural depois de ter percorrido o trajeto do poema resvalando pela aspereza de todas as palavras que compuseram a estação do percurso. A declaração do poeta ao final chancela o percurso como inaugural; mediante a palavra áspero ele percorreu sua trajetória iniciando-a com a supressão do ‘e' e encurtando-lhe uma sílaba. Esse procedimento foi obtido pela uso popular da palavra áspero que para os mais simples dos simples, em geral, seguindo a regra, tornam-se palavras simplificadas; assim ‘córrego' torna-se ‘corgo', ‘pássaro-preto' torna-se ‘passu-preto' e assim por diante.

Dessa forma o poema se torna consistente em sua inauguração dupla, do poema e do poeta. Ambas descobertas revelam as novidades originárias das latências potenciais de cada um, do poeta e da palavra. Unidos, impulsionados pelo Eros vital da palavra e da entrega do poeta, coroou-se o percurso em que o poema construiu-se no desvelamento do ser e da beleza contida.

O ser se explicitou pelas suas potencialidades e o poema se explicitará em tantas outras leituras quanto os leitores se deixarem conduzir pela trajetória que ele oferece. Em outras palavras, quem se permitir ler o poema deixando-se levar pelas afirmações e novidades dos versos, ao final estará inaugurando uma leitura nova de si mesmo. Também se pode afirmar que este poema cria o seu leitor na pessoa que o permitir, inaugura nova dimensão do ser, do ser do leitor. Conforme a inauguração do belo, original, firmou-se como obra de arte capaz de criar outros horizontes a partir da entrega ao percurso dos leitores. Essa é a força ou potencial intrínseco do belo acessado pelo poeta e pela palavra ao mais íntimo do Eros vital, capaz de ser também portador de novas inaugurações.

Em outra linguagem, o poema é portador da propriedade de mostrar a novidade do ser porque encontrou a fonte do desvelamento. O leitor que entender o poema acessará ao mais íntimo do seu ser e se compreenderá de uma forma que ainda não antevira a respeito de si mesmo. Desvela-se como ser capaz de aprofundamento.

12.

O LÁPIS

É por demais de grande a natureza de Deus.
Eu queria fazer para mim uma naturezinha
particular.
Tão pequena que coubesse na ponta do meu
lápis.
Fosse ela, quem me dera, só do tamanho do
meu quintal.
No quintal ia nascer um pé de tamarino apenas
para uso dos passarinhos.
E que as manhãs elaborassem outras aves para
compor o azul do céu.
E se não fosse pedir demais eu queria que no
fundo corresse um rio.
Na verdade na verdade a coisa mais importante
que eu desejava era o rio.
No rio eu e a nossa turma, a gente iria todo
dia jogar cangapé nas águas correntes.
Essa, eu penso, é que seria a minha naturezinha
particular:
Até onde o meu pequeno lápis poderia alcançar.

De forma semelhante ao poema anterior, o poeta inaugura este poema a partir do ínfimo, da ponta do lápis.

O LÁPIS EM SI E SUA NATUREZA

O ponto de partida é paradoxo entre o infinito e o ínfimo; entre o ponto de apoio ou consistência do ser: a natureza que o especifica e lhe determina o ser.

Define-se o Lápis, ou melhor, a ponta do Lápis como coisa minúscula. Porém, acontece uma circunstância particular, trata-se da “ponta do meu lápis”. Recentemente o poeta declarou em entrevista para o Jornal Correio do Estado que sempre trabalha, escreve a lápis, depois passa à máquina e jamais usa o computador em seu trabalho de compor poemas. Essa circunstância torna o lápis um ponto relacional com seu trabalho de produzir poemas. Da ponta do lápis é que saem as palavras, os versos e os poemas; de uma forma ou de outra a relação criadora do poeta integra o lápis como participante que determina o registro do pensado. Neste cenário, o lápis concede ao poeta a segurança necessária para o registro bem como lhe oferece a oportunidade de descartar qualquer parte do registrado. Sem o lápis o poeta estaria cego ou impossibilitado de prosseguir após qualquer ponto de chegada. Percebe-se que o lápis é muito importante nesse processo de criar e trabalhar as palavras. O lápis consigna visibilidade ao poema e não angustia o poeta. Mas sendo determinante, está com toda a sua natureza à disposição do poeta para prosseguir. É um pressuposto mesmo hoje, quase indispensável.

A natureza do lápis é a simplicidade de auxiliar a qualquer um registrar algo que julgou necessário. Sabe registrar e tornar visível. Para o poeta, ele insinua que a ponta do lápis resume tudo o que ele é; mas é bom acrescentar que o comprimento do lápis pode ou não auxiliar. No mínimo dará consistência ao processo de escrever, de registrar. Registra o nome, o verso, o poema e este será em definitivo. O que não se registrou teve uma existência efêmera e perdeu a capacidade de ser visto, lido, lembrado, decorado ou recitado até. Essa á a natureza funcional do lápis, não a material que é grafite e madeira.

O LÁPIS COMO PONTO PARADOXAL PARA O POETA

Perante ‘a natureza por demais de grande de Deus', o poeta declara seu desejo, ‘uma naturezinha particular' para ele. Sem dúvida que perante a natureza infinita de Deus, qualquer ‘naturezinha' criativa, participante do poder criador de Deus, seria muito poder, muita coisa para um poeta. O lápis é o referencial criador que ele possui diante de si o tempo todo; outorga-lhe muito poder, pois viu sempre seus poemas registrados a lápis ganharem vida e consistência. Perante esse fato muito concreto, parece que o poeta sente uma ponta de inveja do poder registrador do lápis e pede a Deus uma ‘naturezinha particular' para ele poder criar e inventar à vontade.

O poeta anseia ser criador e participar do poder infinito de Deus – poder deixar algo muito significativo e duradouro, como o lápis deixa. Um poder para criar, mas que seja pequeno, mas cuja obra perdure e seja visível, mesmo pequena e de pouca aparência.

COMO SERIA SUA “NATUREZINHA PARTICULAR”

Inicia uma série de situações, lugares e recordações da infância que ele presume sejam resultados ou possibilidades de se registrar ou inaugurar um tempo ou situação muito definitiva. Sempre o poeta julgou a infância o lugar privilegiado para se ‘brincar de Deus', para inverter a ordem das coisas e tornar o mundo independente da lógica que a racionalidade lhe imprimiu.

- ‘ Fosse ela (a naturezinha) só do tamanho do meu quintal... e ia nascer um pé de tamarino apenas para uso dos passarinhos.' O quintal para muitos poetas é o arquétipo das travessuras inocentes e das percepções extra-temporais; aí inaugura-se um mundo independente do tempo – e de sua inexorabilidade – e da lógica racional bem como de outras necessidades, por exemplo de trabalhar. Lá tudo é total e preenchente, não há espaços ociosos para elucubrações e nem lugar para fixação das coisas em suas especificidade. Lá no arquétipo do quintal tudo pode mudar e se transformar em sua natureza e nas relações; tudo depende da criatividade e da fantasia imaginante. O mundo lá, fantástico, não é irreal, mera fantasia. O sentido e o significado da vida, das descobertas mudam as pessoas e suas vidas.

Nesse quintal, o pé de tamarino não segue a ordem e finalidade que o homem lhe deu, somente vai ser para o deleite dos pássaros que se irmanam às pessoas para inaugurar a vida a todo instante como seus vôos inauguram rotas, continuamente. Passarinhos tornam-se mestres na invenção da vida, assim esse quintal seria muito poderoso e fértil.

- ‘E que as manhãs elaborassem outras aves para compor o azul do céu' - Dessa forma o universo se interliga na criação. Mesmo as aves deveriam tornar-se outras, inauguradas pelas manhãs. Nesse quintal arquetípico o céu seria sempre azul, prenunciando o tempo bom e afugentando toda e qualquer nuvem, tempestade ou raio.

- ‘E se não fosse pedir demais eu queria que no fundo corresse um rio'- O rio completa a extensão da vida. Somente o rio já é um arquétipo fortíssimo da vida que se renova a todo instante. Até para os filósofos gregos, ultra-racionais, o rio se tornou o símbolo da mutação constante. Nele a vida se renova e por sua presença a natureza ganha segurança da fertilidade da vida de que é portadora. O rio é também o caminho, o percurso que apenas percorrido se desfaz na expectativa de alguém para inaugurar outro percurso. O rio não registra percursos particulares, possibilita-os. Ele é a própria possibilidade da transformação constante da vida. O rio também aglomera o universo. Logo o poeta declara que ‘ a nossa turma iria todo dia jogar cangapé nas águas...'

- ‘No rio eu e a nossa turma, a gente iria todo dia jogar cangapé nas águas correntes' – impossível a vida lúdica sem a turma que sabe proclamar a vida sem tempo nem utilidade, a não ser para brincar e reinventar a vida. Esse jogo, o do cangapé condiz com tudo o que o poeta afirmou, pois trata-se de um jogo em cujo centro está sempre a surpresa de onde brotará um garoto do fundo rio para derriçar uma pernada certeira para ver se acerta o colega. Nesse jogo aparecem as características necessárias para uma reinvenção contínua do traçado do viver. Vive-se intensamente para fugir e para surpreender; todas as habilidades e aptidões são colocadas à prova; valores como a camaradagem, astúcia, esperteza, medo de levar uma pezada no lombo, tudo aguça a atenção e exige esperteza, leveza, e agradabilidade também, pois não se passa de uma brincadeira muito séria, em cujo processo o “eu” de cada um dos meninos se constrói e se inaugura para a vida.

- “Essa, eu penso, é que seria a minha naturezinha particular: / Até onde o meu pequeno lápis poderia alcançar.” A conclusão do poeta deposita na despropositada pequenez da ponta do lápis a grandeza de sua naturezinha criadora, capaz de reinventar constantemente a vida. Cabe à gloriosa ‘ponta do meu lápis', em sua insignificância – tão a gosto do poeta – conferir a grandeza de suas invenções ou inaugurações. A beleza do contraste passa pela pequenez necessária da ponta do lápis para se atingir a expressividade artística dos versos e do poema; a ponta do lápis, como o pensar do poeta, se consomem no gasto do nascimento/registro das palavras e dos versos, como um instante glorioso que se esvai e não será reconhecido, mas meramente suposto somente por quem, e muito poucos, se dedicar a examinar o poema além das palavras. Ou ainda ver o poema em seu processo de criação e registro. A sensibilidade do poeta integra a ponta do lápis como parceira de seu percurso e seu trabalho exaustivo em criar, em labutar e esfregar as palavras até chegar ao bom verso que, então se torna imortal; mas, com o auxílio da ponta do lápis.

Gloriosamente o poeta celebra a nobreza da ponta de seu lápis, parceira de suas lutas e registros.

Fonte:
Portal das Letras - Pe. Afonso de Castro
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/p/poemas_rupestres

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