Éramos três estudantes, e tínhamos chegado cedo. Estávamos de pé junto à janela do laboratório, olhando as ruínas da casa do outro lado da rua. Era uma manhã chuvosa e de muito vento; o pavimento molhado reluzia, e o céu por trás das ruínas enegrecidas mostrava algumas faixas azuis por entre as pesadas cortinas de nuvens que passavam. O verde vívido e primaveril das castanheiras e dos lilases diante da casa contrastava estranhamente com os destroços negros que se viam por trás. O fogo destruíra totalmente a construção; a maior parte do teto tinha desabado, e através dos contornos
carbonizados das janelas, que mal retinham um ou outro pedaço de vidro, era possível ver as paredes consumidas pelas chamas e a indescritível desolação que se segue a um incêndio assim. Curiosamente, embora uma parte da parede tivesse desabado sobre o pórtico de entrada, o pequeno quarto de dormir que ficava por cima estava intacto, e podíamos ver, pendurado de encontro ao papel de parede encharcado, a foto emoldurada de um soldado em uniforme.
O aluno recém-chegado, um homem pálido de cabelos negros — acho que seu nome era Chabôt —, estava mais absorvido do que os outros na contemplação das ruínas.
— Ninguém se feriu? — perguntou ele.
— Ninguém, felizmente — disse Wilderspin.
Ele soltou um grunhido.
Nesse momento Porch entrou aos gritos:
— Pessoal, já ouviram isto? Grande atentado anarquista! Londres em pânico! Por que não estão tremendo de pavor? É por causa deste abominável sistema de avaliação. Nenhum de vocês teve tempo para ler um jornal hoje de manhã.
Todos nos viramos para ele.
— Ouçam bem — disse Porch, fazendo pose. — Ontem, essa era a casa do Inspetor Bulstrode, o famoso Inspetor Bulstrode, e nenhum de nós sabia disso. Agora, olhem!
— Como sabem que isto foi obra de um anarquista? — perguntou o novo aluno, e nisto Askin entrou no aposento.
— Eles agora atribuem todos os acidentes aos anarquistas — disse Wilderspin.
— A polícia — disse Porch — tem ótimas razões para acreditar que essa atrocidade foi obra de um anarquista, é o que dizem os jornais. Mas nada transpirou por enquanto. Contudo, é muito simpático da parte dos anarquistas terem escolhido uma casa bem em frente à nossa janela. Vai nos aliviar dos rigores da maratona de serões da semana passada.
— E fez, aliás, com que Smith se atrasasse uma vez — disse Wilderspin, olhando o relógio.
— Eu o vi lá fora — disse Askin —, quando desci a rua.
— Por Júpiter! O que ele estaria fazendo lá? — disse imediatamente o novo aluno.
— Bisbilhotando, acho eu — disse Askin. — Conversava com um dos policiais, e tinha nas mãos uma caixa com alguma coisa escura dentro. Acho que vai nos pedir para analisá-la.
— Lá vem ele — disse Wilderspin.
Todos nos viramos novamente para a janela. O sr. Somerset Smith, nosso estimado professor de química, aparecera numa porta lateral e agora rodeava a casa pelo lado do portão de entrada. Carregava uma caixa com a marca “Sabão Hudson”, e dentro dela um amontoado de destroços enegrecidos, incluindo, entre outras curiosidades, um frasco de vidro partido. Seu curioso rosto largo estava contorcido numa expressão inescrutável. Veio andando mergulhado em seus pensamentos, e ficou momentaneamente oculto de nós ao subir os degraus que conduziam ao nosso pórtico da frente. Ouvimos-o subir até a sala onde fazia os preparativos dos seus materiais, ao lado do laboratório, onde entrou e bateu a porta. Os outros quatro ou cinco alunos que completavam aquela turma foram chegando, de um em um.
Logo estávamos todos mergulhados numa calorosa discussão sobre as atrocidades dos anarquistas. Mason ouvira de alguém que tinha sido justamente Smith a descobrir que o fogo na casa em frente tinha sido obra de um incendiário, e que encontrara os restos queimados de uma placa incendiária. Askin fez uma piada óbvia a respeito. O novo aluno fez uma série de perguntas rápidas, com nervosismo. A excitação parecia estar despertando seus dotes para o diálogo, porque até então ele chamara a atenção por manter uma reserva que muitos entre nós consideravam puro mau humor. Nosso vozerio se interrompeu quando Smith entrou.
Ao contrário de seu comportamento habitual ele não foi direto para o quadro-negro, mas veio por uma das alas até perto da janela. Carregava um peso de papel de mármore negro numa mão, e na outra, certo número de tiras de papel. Estas foram colocadas sobre a mesa de Wilderspin. Ele passeou os olhos pelo nosso grupo, por baixo de suas sobrancelhas espessas.
— Alguém ausente?
— Ninguém, senhor — respondeu alguém.
— Este fogo na casa em frente, cavalheiros, é uma ocorrência muito singular... muito singular. Talvez nenhum dos senhores saiba como foi provocado. Mas precisam saber sem nenhuma demora, creio eu, que uma suspeita muito grave paira por aqui. Uma suspeita, para ser preciso, de que o incendiário, porque nada disto foi acidente, mas um incêndio criminoso, obteve daqui os materiais que usou. Pelo que posso avaliar, a casa foi incendiada por meio de fósforo dissolvido em bissulfeto de carbono.
Houve uma exclamação por toda a classe.
— Como devem saber, cavalheiros, dos estudos elementares que fizemos no outono passado, quando o fósforo dissolvido em bissulfeto de carbono é exposto à evaporação ele se precipita num estado tão fino que entra em combustão. Bem, ao que parece foi retirada a tampa que protege o carvão, foi jogada uma grande quantidade de papel entre a lenha e o carvão miúdo que havia no piso do porão, e depois uma quantidade robusta desta solução — a qual, cavalheiros, deve ter sido preparada aqui, neste edifício — foi derramada sobre tudo. A evaporação começou de imediato, o fósforo acabou pegando fogo e inflamou o papel, e dentro de meia hora um belo incêndio estava subindo as escadas rumo ao andar de cima para acordar o Inspetor e sua família. “Como sou capaz de afirmar isto? Em parte devido ao acaso, e em parte pelas minhas pesquisas. O que houve de acaso foi isto: ontem, às dez horas da noite, tive a ocasião de vir à minha sala de preparativos, e senti ali o cheiro bem característico do vapor de bissulfeto de carbono. Acompanhei esse odor até o depósito logo adiante, e, quando entrei, vi imediatamente que alguém tinha remexido no material. Um frasco de mucilagem de amido tinha sido derrubado, e o líquido escorria pela mesa, gotejando sobre o chão. Outras garrafas tinham sido retiradas mas não substituídas. Examinei tudo em volta, para ver se encontrava outro furto, e a princípio não percebi a ausência de nada a não ser do bissulfeto de carbono, mas depois percebi que o vidro de fósforo estava vazio. A inferência possível era que, ou um estudante estava brincando de químico em casa às minhas custas, ou que algum atentado com fogo estava se preparando. Em qualquer um destes casos eu estava ansioso para descobrir o culpado, e achei que não teria uma ocasião melhor do que aquela, quando o aposento estava exatamente da maneira como ele o deixara. Vocês sabem que nós, cientistas, temos um afeto especial por provas.”
Ele olhou atentamente o nosso grupo. Eu fiz o mesmo. A não ser que fosse um fisionomista muito superior a mim, nada havia ali que pudesse ser detectado. Todos o olhavam com interesse, e todos mais ou menos desconcertados diante daquela acusação. Askin, por exemplo, estava ruborizado; Wilderspin tinha um tique nervoso no canto da boca, que estava se contraindo fortemente; e os lábios do aluno mais novo estavam lívidos.
— Agora, tenho a satisfação de dizer que quando deixei o laboratório eu tinha um palpite, que logo depois se transformou numa prova conclusiva sobre quem tinha levado meu bissulfeto de carbono; uma prova tão sólida quanto uma prova tem que ser.
Uma pausa dramática. De minha parte, eu estava um pouco assustado. Será que o sr. Smith não estaria chegando a alguma conclusão precipitada? Isso poderia ser inconveniente para alguns de nós.
— O cavalheiro, inadvertidamente, deixou uma assinatura em seu furto; deixou uma prova manual de suas ações, literalmente a sua assinatura manual, meus senhores.
Ele nos deu um sorriso esquisito. Esperamos que apontasse o dedo para alguém. Olhou por um momento as tiras de papel na mesa ao seu lado, e hesitou. A esta altura, claro, todos estávamos interessadíssimos.
— O senhor não quer dizer... — disse o aluno novo — não quer dizer que o homem que roubou o bissulfeto de carbono foi tão distraído, tão idiotamente distraído, que escreveu o nome...?
O professor, ainda sorridente, abanou a cabeça negativamente.
— Não foi bem assim — disse. Era visível que ele queria prolongar nossa agonia.
— Quando o fogo teve início no outro lado da rua — continuou ele, normalmente — suspeitei que as duas coisas estivessem relacionadas. Hoje de manhã, bem cedinho, antes mesmo de o sol nascer, fui até lá. Reconstituí o trajeto do fogo, com a ajuda dos bombeiros, até lá embaixo, no porão. Ele tinha sido aceso, como imaginei, através da grade protetora do carvão. Procurei meu frasco de bissulfeto de carbono entre as brasas e as cinzas do porão, assim que ele esfriou o bastante para permitir nossa busca; mas não o encontrei. Minha suspeita quanto à nossa ligação com o incêndio arrefeceu um pouco, mas me mantive fiel a ela. O porão estava extremamente quente, e por isto meu exame foi muito superficial, de modo que decidi repetir a busca numa hora mais avançada. Para passar o tempo, depois do café da manhã e de um banho fui até o jardim da casa, e comecei minha caçada. A primeira coisa que achei foi uma tampa de garrafa que me era familiar, e isto me animou; depois, numa moita de lilases, encontrei a garrafa, quebrada, suponho, pela bota de um bombeiro. O rótulo, como os senhores devem lembrar do nosso depósito de material, é um rótulo largo de papel, que quase dá a volta ao frasco.
Ele se deteve e nos deu um sorriso benevolente.
— Naquele rótulo estavam visíveis as palavras “Bissulfeto de Carbono”, e também ao lado, escritas a lápis por algum cavalheiro, “Fedor terrível”.
— Ora, mas fui eu que escrevi isso, três dias atrás! — disse Askin, agressivamente.
— Imagino que o tenha feito. Eu disse que isto era o que havia visível no rótulo. Mas hão de lembrar, cavalheiros, que nosso amigo havia derrubado um frasco de mucilagem de amido. Bem, permitam que lhes recorde as propriedades da mucilagem de amido. Ela é tão descolorida quanto é possível ser, mas combinada com o iodo fornece um belo colorido azul-púrpura. É um teste para acusar a presença do iodo, mesmo que este esteja na quantidade mais insignificante.
— O azul aparece com apenas uma parte de iodo para 450 mil partes de água, de acordo com Thorpe — disse Wilderspin.
— Muito bem. Estou vendo que está pronto para a prova. Agora, antes de deixar o laboratório eu tinha notado que nosso amigo tinha molhado os dedos naquela substância, porque sobre a maçaneta da porta distinguiu o que me pareceu ser marcas de dedos, e ao testá-las com iodo fiquei alegre ao ver que estava correto. Eram, porém, ainda muito borradas para meu propósito. Mas achei que se eu localizasse o frasco certamente haveria alguma marca dos dedos do nosso amigo sobre o rótulo, pois do modo como ele certamente o segurou não havia como não deixar essas marcas. E, seguindo o mesmo raciocínio, apliquei àquele rótulo uma solução de iodo muito leve; e agora, senhores, estou satisfeito em poder dizer que tenho três marcas azuis de dedos, e uma bela impressão de um polegar.
Ele faz uma pausa para apreciar nosso espanto.
— Devem ter ouvido falar no professor Galton — disse o professor, falando mais rápido e recolhendo as tiras de papel. — Ele fez um estudo especial das linhas que há no polegar humano, e propôs um método para a identificação de criminosos. Recolheu milhares de impressões de polegares humanos molhados com tinta, no Laboratório Antropométrico de South Kensington, e não há dois seres humanos com impressões idênticas. Publicou um livro com esse material, e é um livro muito bom. Bem, como veem, eu tenho aqui um pouco de tinta de impressão misturada com óleo, espalhada sobre este peso de papel, e aqui algumas tiras de papel, e com isto resolveremos o problema em poucos minutos. Se o delinquente estiver entre nós, vamos descobri-lo; se não...
— Cuidado! — gritou Wilderspin.
Virei-me, e vi o novo aluno segurando um frasco em cada mão. O anarquista tinha se desmascarado. Estava pronto para arremessar um dos frascos, de vidro esmerilhado, que provavelmente continha algum ácido. Abaixei-me, instintivamente, e o projétil passou por cima da minha cabeça, atingiu Smith no ombro e ricocheteou com estrépito numa mesa cheia de tubos de ensaio. Sentiu-se no ar um cheiro inconfundível de óxido de nitrogênio. O segundo frasco felizmente passou longe, esbarrou num bico de Bunsen e em duas trípodes, e fez um estrago por entre os frascos pequenos de reagentes sobre a bancada de Wilderspin. Nunca vi um grupo de homens se dispersar com tamanha rapidez. Ainda me virei com a intenção de agarrar o lunático, mas vi-o erguer um frasco de ácido sulfúrico ou vitríolo, o popular ingrediente dos filtros de amor parisienses. Isto foi demais para mim, e me escondi sem demora por trás de uma bancada. Alguns dos meus colegas tinham conseguido deixar a sala e amontoavam-se agora na escada, onde Smith também se refugiara. Vi Wilderspin, com a boca contraindo-se mais do que nunca, por trás de outro banco. Assim que tivemos uma chance, seguimos o exemplo dos outros e corremos para o patamar. Um pequeno frasco de ácido clorídrico atingiu Wilderspin no pescoço, fazendo-o dar um grito, e deixou no seu paletó uma grande mancha vermelha.
Havia algum método na loucura do Anarquista. Ele parou de arremessar coisas assim que se viu no controle do laboratório, e começou a recolher todos os frascos de ácido, sublimado corrosivo, nitrato de prata e assim por diante, colocando-os sobre a bancada mais próxima da janela. Tinha o claro propósito de vender caro sua rendição. Mas Smith era um oponente à altura. Tinha corrido para o depósito, e emergiu de lá como um garrafão do mais insuportável dos gases, o sulfeto de hidrogênio.
— Arranque o tampão e jogue isto lá dentro, rápido! — disse ele, e voltou ao depósito, em busca das pungentes qualidades de amônia.
Seguiram-se, em rápida sucessão, arremessos de um garrafão coberto de vime cheio de ácido clorídrico e outro de sulfeto de amônia, um gás cujo odor repugnante só encontra rival no sulfeto de hidrogênio. O inimigo só percebeu nossas intenções quando os vapores começaram a se espalhar na sua direção, e limitou-se a se esconder por trás de uma bancada. Dentro de trinta segundos, havia dentro do laboratório um conflito tão desagradável de odores químicos como não é difícil imaginar, e o ar estava denso com nuvens brancas do cloreto de amônia. O inimigo percebeu então nosso propósito e tentou fazer uma carga frontal. Quando o garrafão de sulfeto de amônia se espatifou no chão, vi um pequeno frasco vindo na minha direção por entre os vapores, mas ele não acertou a porta, e acabou derrubando o quadro-negro.
— Fora do meu caminho! — gritou o Anarquista, erguendo-se no meio dos vapores e da fedentina, mas nós batemos a porta, trancando-o lá dentro daquela atmosfera. Ele tentou furiosamente girar a maçaneta, e esmurrou a porta como louco. Ouvi-o pedir clemência e cair ao chão tossindo. Achei que o tínhamos derrotado, e por mim teria aberto a porta se Smith, temendo um ataque, não me segurasse. Ouvimos os passos do Anarquista retrocedendo e depois silêncio. Ficamos esperando outra arremetida dele. Uma garrafa se espatifou na porta pelo lado de dentro, e daí a pouco outra. Houve um intervalo de silêncio. Talvez tenham se passado uns três minutos.
Askin estava socorrendo Wilderspin na outra sala, e os outros estávamos agrupados no
patamar.
— Ele deve ter sufocado e caído — disse Porch.
— A janela! — exclamou Smith de repente. — Deve ter fugido pela janela. Não pensei nisso. Alguém ouviu a janela ser quebrada? Vocês três — ele indicou a mim, Porch e Mason — cuidem desta porta.
Os outros desceram precipitadamente as escadas, seguindo Smith. Ouvimos a porta da rua ser aberta e depois as vozes deles, gritando no pátio fronteiro. Então nos arriscamos a abrir de novo a porta do laboratório; vimos a janela do lado oposto escancarada, e as rajadas de vento agitando os vapores. O Anarquista tinha escapado.
Smith tinha sido um pouco intelectual demais na sua abordagem do caso, e pouco vigoroso.
— Depois daquela marca de polegar... — disse ele, quando a classe voltou a se reunir no dia seguinte, por entre os destroços do laboratório. — Depois que a marca foi descoberta ele devia ter se rendido imediatamente. Não havia nenhum argumento que o salvasse. Pela lógica, em todo caso, ele estava irremediavelmente encurralado. Começar a arremessar ácidos em redor, francamente! Uma coisa que não fui capaz de prever. Muito desleal da parte dele. Esse tipo de coisa tira todo o encanto intelectual que há no trabalho de um detetive
Fonte:
WELLS, H. G. O País dos Cegos e outras histórias. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
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