segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXV


É UM CAMPO VERDE E VASTO
 
É um campo verde e vasto,
        Sozinho sem saber,
De vagos gados pasto,
         Sem águas a correr.

Só campo, só sossego,
        Só solidão calada.
Olho-o, e nada nego
        E não afirmo nada.

Aqui em mim me exalço
        No meu fiel torpor.
O bem é pouco e falso,
        O mal é erro e dor.

Agir é não ter casa,
        Pensar é nada Ter.
Aqui nem luzes ou asa
         Nem razão para a haver.

E um vago sono desce
        Só por não ter razão,
E o mundo alheio esquece
         À vista e ao coração.

Torpor que alastra e excede
        O campo e o gado e os ver.
A alma nada pede
         E o corpo nada quer.

Feliz sabor de nada,
         Inconsciência do mundo,
Aqui sem porto ou estrada,
         Nem horizonte no fundo.
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EU ME RESIGNO
 
Eu me resigno.
Há no alto da montanha
Um penhasco saído,
Que, visto de onde toda coisa é estranha,
Deste vale escondido,
Parece posto ali para o não termos,
Para que,  vendo-o ali,
Nos contentemos só com o aí vermos
No nosso eterno aqui...

Eu me resigno.
Esse penhasco agudo
Talvez alcançarão
Os que na força de irem põe m tudo.
De teu próprio silêncio nulo e mudo,
Não vás, meu coração.
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EU TENHO IDEIAS E RAZÕES
 
Eu tenho ideias e razões,
Conheço a cor dos argumentos
E nunca chego aos corações.
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EXÍGUA LÂMPADA TRANQUILA
 
Exígua lâmpada tranquila,
Quem te alumia e me dá luz,
Entre quem és e eu sou oscila.
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FALHEI. OS ASTROS SEGUEM SEU CAMINHO
 
Falhei. Os astros seguem seu caminho.
Minha alma, outrora um universo meu,
É hoje, sei, um lúgubre escaninho
De consciência sob a morte e o céu.
Falhei. Quem sou vivi só de supô-lo.
O que tive por meu ou por haver
Fica sempre entre um polo e o outro polo
Do que nunca há de pertencer.

Falhei. Enfim! Consegui ser quem sou,
O que é já nada, com a lenha velha
Onde, pois valho só quando me dou,
Pegarei facilmente uma centelha.
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FLOR QUE NÃO DURA
 
Flor que não dura
Mais do que a sombra dum momento
Tua frescura
Persiste no meu pensamento.

Não te perdi
No que sou eu,
Só nunca mais, ó flor, te vi
Onde não sou senão a terra e o céu.

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FLUI, INDECISO NA BRUMA
 
Flui, indeciso na bruma,
Mais do que a bruma indeciso,
Um ser que é coisa a achar
E a quem nada é preciso.

Quer somente consistir
No nada que o cerca ao ser,
Um começo de existir
Que acabou antes de o Ter.

É o sentido que existe
Na aragem que mal se sente
E cuja essência consiste
Em passar incertamente.
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GLOSAS
 
Toda a obra é vã, e vã a obra toda.
O vento vão, que as folhas vãs enroda,
Figura nosso esforço e nosso estado.
O dado e o feito, ambos os dá o Fado.

Sereno, acima de ti mesmo, fita
A possibilidade erma e infinita
De onde o real emerge inutilmente,
E cala, e só para pensares sente.

Nem o bem nem o mal define o mundo.
Alheio ao bem e ao mal, do céu profundo
Suposto, o Fado que chamamos Deus
Rege nem bem nem mal a terra e os céus.

Rimos, choramos através da vida.
Uma coisa é uma cara contraída
E a outra uma água com um leve sal,
E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.

Doze signos do céu o Sol percorre,
E, renovando o curso,  nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

Ficções da nossa mesma consciência,
Jazemos o instinto e a ciência.
E o sol parado nunca percorreu
Os doze signos que não há no céu.

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