FACÉCIA* EM TRÊS ATOS
ATO PRIMEIRO
Cenário a duas tintas - branco e cor-de-rosa. A cena representa a plena ilusão de uns vinte anos em flor. Há formosas mentiras e claros sonhos de esperança voando pelo ar. Num doce clarão de aurora pestanejam, quase a fechar os olhos, as últimas estrelas. No primeiro plano crescem discretamente as primeiras violetas de junho e brotam em superabundância versos líricos, que ainda mal se firmam nos pés, ambos muito orvalhados, aquelas de rócio matutino e estes de lágrimas de amor platônico.
ELA e ELE
(Ele, primaveril e cato, contempla embevecido a natureza que desperta, e procura uma rima, Ela, outonal e bela, ardendo em dissimulados desejos, tem n’Ele os olhos postos e n’Ele concentra todo o seu enlevo).
ELA: (Tomando-lhe uma das mãos, sem que Ele dê por isso). Por que me não atendes, senhor dos meus pensamentos?... Por que me não arrancas com teus braços desta agonia que me mata?
ELE; (Distraído e trescalando o aroma da puberdade). Surgem ao longe sobre as montanhas os primeiros raios do sol... O mar deve a estas horas estar já crescido e belo, e a enchente há de trazer-me boa inspiração... Não fica longe a praia. Corramos!
ELA: Não! Atende um instante; atende por amor de Deus!
ELE: Ah! Estavas aí? Que de mim queres tu, mulher que eu mal conheço e encontro a cada passo em meu caminho?
ELA: De ti só a ti próprio quero.
ELE: Pois queres justamente o que te não posso dar.
ELA: Adeus.
ELE: Fica ao meu lado
ELA: Ingrato!
ELE: Impossível, filha; tenho que terminar o meu poema.... (Consulta o relógio) Cinco e meia! A preamar será às seis. Não há tempo a perder! Adeus! adeus!
ELA: Oh! Atende, meu amor! (Segura-o pelos braços). Não partas assim sem mais nem menos; tem pena de mim, que há longo tempo te sigo e te busco pelos cantos da cidade e recantos dos subúrbios, fazendo de meu desejo a sombra da tua indiferença. Não me escapes ainda desta vez, sem me deixares uma palavra de esperança... uma palavra ao menos!
ELE: (A olhá-la por cima do ombro). Uma palavra? Que palavra queres de mim?
ELA: (Arrebatadamente) Uma palavra de amor!...
ELE: Não tenho, filha... Minhas palavras de amor dei-as todas aos meus versos... Lê meus versos e contenta-te com isso... Já não é pouco... Adeus.
ELA: Cruel!
ELE: Adeus.
ELA: (Prendendo-o nos braços). Não! Olha! Escuta! Se não tens palavras de amor para me dar, dá-me então teus lábios, desses creio que não dispuseste ainda... Não sonegue o copo à boca do ébrio sedento!
(Ele sorri, e Ela, deixando-lhe os braços, cobre o rosto com as mãos e põe-se a soluçar).
ELE: (Perplexo, volta-se para Ela e passa-lhe a mão pelos cabelos). Então! então! Não te mortifiques desse modo, que isso me penaliza... Vamos! não chores, e deixa-me ir, preciso contemplar o oceano em preamar.
ELA: (Cingindo-o violentamente contra o colo e quebrando-lhe o frio sorriso dos lábios com um beijo ardente, que o penetra todo até à medula dos ossos). És meu!
(CAI O PANO)
ATO II
Cenário a duas tintas - cinzento e roxo. A cena representa a Dor. Há gemidos e suspiros soltos no ará ao fundo, um sinistro pressentimento de morte; no primeiro plano, flores murchas, estrofes inacabadas, contas de botica, receitas de médico e cautelas de casa de penhor. Numa das receitas lê-se o nome do Dr. Cabizo
CENA ÚNICA
ELE e ELA
(Estendida no seu leito de dor, com Ele ajoelhado junto à cabeceira). Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Sinto ir chegando a hora tremenda! Tento os membros tolhidos como os de ma estátua do Almeida Reis... Creio que o médico quando vier já me não encontrará com vida. E não haver em casa um coto de vela para me ajudar a morrer! Vá! acende tu um charuto, se o tens, e enfia-o cá entre meus dedos hirtos... Salvem-se os princípios!
ELE: (Com a alma a derreter-se em lágrimas). Cala-te, meu amor! Não vês que essas tuas palavras me despedaçam o coração? Tu viverás, minha vida! tu viverás em meus braços, à sombra dos meus beijos... Ainda nos restam a coleção completa do Lamartine e o Curso de Literatura do Sílvio Romero; vou torrá-los hoje mesmo!
ELA: Só deploro morrer, canalha de minha alma, porque te deixo aqui na terra, a ti, com esses olhos, com essa boca e com esses cabelos, com todo esse tesouro que era o bem da minha vida e a alegria da minha carne, e que, ai de mim! aí fica para as outras!
ELE: Não! não morrerás, ou morrerei contigo!
ELA: Ah! Fala-me assim! Muito obrigada, meu amor! Se eu com efeito esticar desta, não me deixes ir sozinha... bem sabes que detesto a solidão. Vem comigo; fecha-te comigo na mesma treva, unidos como em nossas noites de delírio, e penetremos juntos no frio mistério, como juntos descíamos ao fundo ardente do nosso amor...
ELE: Sim, sim, não te abandonarei, ainda que tenha de abandonar a vida! Hei de na morte conservar-me fiel ao teu lado, como fiel aqui me tens ao lado dos teus gemidos. Sem ti, de que me serviria a existência?!
ELA: Meu amor!
(Calam os dois, num supremo arranco, os lábios febris com tão formidável beijo, que até a própria Morte, que nesse instante sorrateira ia entrando pela Esquerda Alta, se espanta e foge).
ELE: Estás salva!
ELA: (Saltando da cama). Ai, filho! corre então à modista, para que me mande os últimos figurinos. Domingo há baile nos Tenentes do Diabo! Anda! Não percas tempo!
(CAI O PANO)
ATO III
Cenário a duas tintas - vermelho e negro. A cena representa a parte do Inferno conhecida vulgarmente pelo nome de "Ciúmes". Há dúvidas cruéis e desconfianças assassinas que se cruzam no espaço, bramindo ameaçadoras. Ao fundo terríveis pesadelos, ânsias de sangue e amargores de fel. No primeiro piano perfídias, ingratidões, móveis partidos, páginas rotas, versos em cinzas, muita volubilidade feminina e camélias frescas com um cartão de visita.
CENA ÚNICA
ELE e ELA
(Arrancando os cabelos, o olhar em brasa e o coração em carne viva). Oh! Cala-te! Cala-te por piedade! Agora já me não resta a menor dúvida - ele é teu amante
ELA: (Sorrindo indiferente, e de novo bela). Que seja... E daí?...
ELE: Ingrata! (Com uma explosão de soluços). Ó meu Deus, por que consentiste tu que, eu a salvasse da morte com os meus desvelos?. Por que consentiste que eu mergulhasse no lodo terciário, donde arranquei esta terrível náufraga que agora me estrangula?
ELA: Que incoerência a tua! Pode lá alguém ser amado quando solta pela boca todas essas ridículas asneiras que estás dizendo, e verte pelos olhos todas essas insuportáveis lágrimas que estás chorando? Náufrago és tu, que te afogas no próprio pranto. Não gosto de afogados, nem tenho jeito para salva-vidas. Adeus!
Não! Perdoa! Atende! Não me fujas assim; não te vás, sem me deixares ao menos uma palavra de arrependimento!...
ELA: De arrependimento? Impossível, filho! já não tenho palavras de arrependimento; gastei-as todas com a leitura dos teus versos. Adeus.
ELE: Dá-me então teus lábios! Não negues o copo à boca do ébrio sedento!
ELA: Não. Isso foi noutro momento, à branca luz de uma aurora, já tão passada tomo a ilusão que me deste; agora, bem vês, é noite, noite funda e embriagadora, e tu, meu rapaz, não és companheiro para esta outra banda do amor. Volta ao faro das tuas rimas ariscas e às tuas madrugadas em jejum; vota sozinho, preciso mergulhar de novo nos meus mares negros, para cevar esta gulosa carne, que está caindo de fome.
ELE: Cruel! Perjura!
ELA: Qual perjura! Meu capricho por ti foi um mórbido sintoma. Hoje estou boa e não quero ouvir falar no que me lembre a moléstia.
ELE: Mas repara que é a morte que me dás com essas tuas cínicas palavras!
ELA: Pois morre tranquilo, filhinho; não estarei a teu lado para arreliar-te a hora extrema com os meus soluços, como desastradamente tentaste fazer comigo. Morre em paz. Adeus!
ELE: (Exalando o último suspiro). Deus te perdoe!
ELA: Ora até que afinal! Não há tempo a perder. O Cassino fecha à meia-noite e já passa das onze. Hoje é maré cheia, e a enchente deve trazer bom peixe... Corramos!
(CAI O PANO)
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* Facécia = chacota, gracejo, pilhéria.
Fonte:
Aluísio de Azevedo. O Touro Negro. Escrito em 1903.
Aluísio de Azevedo. O Touro Negro. Escrito em 1903.
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