quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXVI

DEIXO AO CEGO E AO SURDO  

Deixo ao cego e ao surdo
A alma com fronteiras,  
Que eu quero sentir tudo
De todas as maneiras.
 
Do alto de ter consciência
Contemplo a terra e o céu,  
Olho-os com inocência :
Nada que vejo é meu.  
 
Mas vejo tão atento
Tão neles me disperso
Que cada pensamento
Me torna já diverso.
 
E como são estilhaços
Do ser, as coisas dispersas
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas.
 
E se a própria alma vejo
Com outro olhar,
Pergunto se há ensejo
De por isto a julgar.
 
Ah. tanto como a terra
E o mar e o vasto céu,
Quem se crê próprio erra,
Sou vário e não sou meu.
 
Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.
 
Se quanto sinto é alheio
E de mim sou ausente,
Como é que a alma veio
A acabar-se em ente?
 
Assim eu me acomodo
Com o que Deus criou,
Deus tem diverso modo
Diversos modos sou.
 
Assim a Deus imito,
Que quando fez o que é
Tirou-lhe o infinito
E a unidade até.
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DEPOIS QUE TODOS FORAM  

Depois que todos foram
E foi também o dia,
Ficaram entre as sombras
Das áleas do ermo parque
Eu e minha agonia.
 
A festa fora alheia
E depois que acabou
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Quem eu fui e quem sou.
 
Tudo fora por todos.
Brincaram, mas enfim
Ficaram entre as  sombras
Das áleas apertadas
Só eu, e eu sem mim.
 
Talvez que no parque antigo
A festa volte a ser.
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Eu e quem sei não  ser.
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DESFAZE A MALA FEITA PRA A PARTIDA!  

Desfaze a mala feita pra a partida!
Chegaste a ousar a mala?
 Que importa?  Desesperar ante a inda
Pois tudo a ti iguala.
 
Sempre serás o sonho de tim mesmo.
Vives tentando ser,
Papel rasgado de um intento, a esmo
Atirado ao descrer.
 
Como as correias cingem
Tudo o que vais levar!
Mas é só a mala e não a ida  
Que há de sempre ficar!
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DESPERTO SEMPRE ANTES QUE RAIE O DIA  

Desperto sempre antes que raie o dia
E escrevo com o sono que perdi.
Depois, neste torpor em que a alma é fria,
Aguardo a aurora, que já quantas vi.
 
Fito-a sem atenção, cinzento verde
Que se azula de galos a cantar.
Que mau é não dormir?  A gente perde
O que a morte nos dá pra começar.
 
Oh Primavera quietada, aurora,
Ensina ao meu torpor, em que a alma é fria,
O que é que na alma lívida a colora
Com o que vai acontecer no dia.

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).

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