domingo, 30 de janeiro de 2022

Júlia Lopes de Almeida (Esperando...)

– Fecha aquela janela que deita para a rua... assim; abaixa o estore*... agora abre as duas do jardim.

– Está bem?

– Está bem. Vai arranjar-te; põe o avental branco bordado, que eu te fiz, e vê lá se levantas esse cabelo da testa; gosto das testas nuas!

A criada saiu. A dona da casa, moça, gentil, alegre, começou a dar uns retoques na mesa, cantarolando, na sua meia voz de soprano, um romance novo. Agora punha ao lado da mesa o canário favorito sobre uma corbeille* de flores naturais, daí a pouco temperava a salada, escolhendo com as pontas dos dedos, muito delicadamente, as folhinhas mais tenras; revistava as garrafas de cristal, os talheres, os pratos, escondia dentro do guardanapo do marido uma hastezinha mimosa de avenca, onde espetara um cartão com esta palavra: “– Adoro-te!”

Modificava, sob o musgo fresco da fruteira, a posição das uvas e dos pêssegos vermelhos, mudava para outro lado o galheteiro; alisava as coberturas das cadeiras, descia ainda mais o store de cretone branco, e, debruçando-se das janelas do jardim, puxava para dentro os galhos floridos das trepadeiras. Depois, relanceou por toda a sala os seus olhos vivos de burguesinha feliz. Notou que um quadro estava ligeiramente inclinado para a esquerda e deu pela ausência da geleira sobre a étagère*.

Correu a reparar as duas faltas e saiu. Foi à cozinha.

– Então, André, a sopa está boa?... e o peixe... deixa-me ver o peixe...

E, avançando o narizinho arrebitado, ela cheirava as panelas, fazendo os seus comentários:

– Olha, ó André, o rosbife não me parece bom...

O cozinheiro franziu a testa, indignado; ela continuava:

– Ora! as ervilhas estão com bispo; logo as ervilhas, de que Luís gosta tanto!

– Perdão, minha senhora, as ervilhas não estão queimadas!

– Não estão queimadas! E que cheiro é este?

– É mesmo o cheiro das ervilhas.

– Onde viu você ervilhas com cheiro a fumo?

– Prove-as, minha ama.

Para convencer-se ela provou as ervilhas; achando-as deliciosas, murmurou disfarçadamente: está bom, está bom... e os bolinhos, fez?

– Esqueci-me: também há tanta coisa!...

Foram novos ralhos; mas, afinal, certa de que o jantar agradaria ao marido, ao seu amado Luís, com quem se casara havia apenas um ano, ela voltou para dentro.

Foi pedir conselhos ao seu psyché*. Estava pálida. “Isto há de ser, pensou, por causa das fitas verdes.”

Trocou-as por fitas azuis... estudou-se: continuava feia... “Bem! agora, fitas cor-de-rosa... hão de me ir melhor...” Mas as fitas cor-de--rosa desagradaram-lhe tanto como as azuis e as verdes. Lembrou-se do colar de coral. Os colares de coral passaram de moda... mas que importa! são bonitos! Atou sobre o pescoço alvo e roliço um fio de coral, abriu um pouco mais o vestido, e afogou entre as rendas do peito a flor cor de sangue de uma orquídea nova.

“São quase seis horas! Luís não tarda! vou esperá-lo ao piano!”

Tocou várias peças, ora um idílio, ora uma sonatina; mas, impaciente, descaiu a dedilhar polcas e valsas.

De vez em quando levantava-se, ia à janela. Viu passar um vizinho, o Ramos, carregado de embrulhos, e calculou:

“A mulher do Ramos é mais feliz do que eu... ele tem mais pressa de a ver do que Luís de me ver a mim!...”

Após o Ramos, passou um velho gordo, que vinha habitualmente depois do marido, logo no bonde imediato; viam-no quase sempre passar através das grades do jardim, onde ela descia para receber Luís.

O relógio marcava já seis e um quarto! Ela não voltou para o piano: instalou-se na janela. Começou a sentir fome; a impaciência cresceu. Parecia que iria devorar todo o rosbife! “Decididamente, Luís, supunha ela, teve algum negócio grave a prendê-lo até mais tarde... aposto em como vem naquele bonde...” Mas o bonde passou. “Vamos a ver! se o primeiro carro que passar for tilburi, é porque ele vem antes das seis e meia; se for coupé é porque só vem às sete.” O primeiro carro a passar foi uma caleça. Às sete horas Luís não tinha chegado.

A copeira veio perguntar-lhe se podia tirar o jantar; a infeliz rapariga, em pouca harmonia com o cozinheiro, estorcia-se de fome. A ama repreendeu-a: quando for ocasião, eu saberei mandar servi-lo! disse.

Ela já não tinha vontade de comer: passada a hora habitual, o estômago não sentia necessidade de alimento. Entretanto, continuava à janela.

Eram já sete e meia! A casa do Ramos iluminava-se; apareciam vultos na sala de visitas; uma das filhas ia para o piano e ela adivinhava o Ramos, palitando os dentes, recostado no sofá, ao lado da esposa, que estava de casaco branco e saias engomadas. “São velhos, e são mais felizes do que eu”, suspirava.

Deram oito horas. Voltava muita gente para a cidade, de onde os bondes vinham agora quase vazios. Por que será que Luís não veio? conjecturava a triste esposa. Saiu da janela, e, caindo em uma poltrona, começou a chorar.

Erguia-se no seu espírito uma suspeita: a infidelidade de Luís!

“Ele ama outra, ama outra com certeza! a estas horas ri-se a seu lado... logo virá com uma desculpa qualquer!” Lembrou-se de fugir para a casa da mãe; sim, lá ao menos teria companhia, carinhos, alegria! E Luís, quando chegasse, compreenderia não ter por esposa uma mulher passiva, de quem pudesse zombar! Levantou-se, foi ao seu quarto e, tendo vestido uma capa, ia colocar o chapéu, quando foi ferida por uma ideia horrorosa: Um desastre! “Meu Deus! exclamou a pobrezinha: Luís foi pisado por algum trem!...”

Aterrorizada, hirta, no meio do quarto, ela assistia a toda a cena. O marido atravessava a rua, correto, distinto, elegante... súbito, esbarra-se nele um indivíduo, cai-lhe a luneta; Luís curva-se para erguê-la; nisto ouve gritos, é atropelado, cai, e uma enorme carroça, carregada de pedras, roda-lhe pesadamente por sobre o ventre! Apitos, agrupamento de povo, muito sangue na calçada, e o adorado Luís é tirado em braços, esfacelado, inerte, morto!

Correu de novo à janela, debruçou-se: ninguém! A rua estava silenciosa. Teve vontade de gritar: Luís, Luís! e as lágrimas rolavam-lhe grossas pelas faces pálidas. Era a primeira vez que tal lhe acontecia; evidentemente sucedera ao esposo um desastre qualquer! Lembrou-se de ter visto no escritório, uma vez que lá fora surpreendê-lo no trabalho, um revólver sobre a secretária. Aquilo fizera-lhe impressão, a ponto de rogar ao marido que se desfizesse dessa arma tão perigosa... Quem lhe diria que não fosse esse maldito revólver que, por qualquer acaso, matasse o esposo!? Ele era distraído e míope: puxando uns papéis, tateando a mesa, à procura de algum objeto, poderia bater no gatilho e a bala ter partido!

A cada carro que se aproximava ela estremecia: “É ele, vem-no trazer desfigurado... moribundo... Ó meu Luís! meu Luís!!

Nisto uns passos conhecidos esmagam a areia do jardim, ela levanta-se e escuta... sobem a escada, tocam de uma maneira especial a campainha; e ela, reconhecendo o sinal, dá um grito de alegria e corre para a porta, indo abraçar o esposo, comovida e trêmula!

– Que é isso, Mimi? perguntou ele, atônito; como estás transtornada!

– Oh! Luís! por que tardaste tanto?! Que susto que eu tive! Meu Deus! Deixa-me ver-te bem! Que te sucedeu?!

– Mas, filha! não me sucedeu nada de extraordinário! Tolinha! É preciso acostumares-te!

– Acostumar-me...

– Terás muitas vezes de jantar sozinha...

– Ah!

Enquanto ele lhe expunha o motivo da sua ausência, ela via, magoada, extinguir-se o inolvidável período da sua lua de mel!

Como badaladas fúnebres, soavam e ressoavam aos seus ouvidos as frases do marido:

– É preciso acostumares-te... Terás muitas vezes de jantar sozinha!
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Notas:
Corbeille = Coroa.
Estore = tipo de persiana ou cortina.
Étagère = Aparador.
Psyché = Espelho


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

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