quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

António Ramos Rosa (A Palavra Poesia)

A Palavra "Poesia" não é para mim uma palavra densa, plena, isto é, uma palavra de significação inteiramente positiva. Há nela um vazio, uma névoa e uma tenuidade que se sobrepõe ao seu significado e o torna vago e quase imperceptível. Posso comparar esta impressão à sensação que sinto quando, à distância, olho os prédios altos e percepciono não a densidade dos seus moradores  mas o vazio infinito que anula todo o pretensiosismo da vida humana. A palavra "poesia" parece-me afogada irremediavelmente  num vazio que dilui a sua significação e a torna longínqua e apagada, quase desprovida de sentido.

Mas não será essa diluição semântica, observou Mário, o que a torna extremamente poética, uma vez que, assim, é mais aberta e susceptível de nos transmitir o que há de inexprimível na poesia? Sim talvez tenhas razão, admiti, mas essa palavra confrange-me não sei porquê. Sinto uma espécie de pudor ou vergonha, como se a poesia fosse uma matéria interdita e, de algum modo, inadmissível.

Se é assim, objectou Mário, o que há de vago nessa palavra anula  a pretensão ou imposição de um sentido dominante. Assim, o que há nela de impreciso vela o seu conteúdo e deixa– o indefinido. Por isso, essa palavra parece-me que não deveria suscitar nenhuma relutância porque ela própria é uma palavra pudica, porque é vaga e desprovida de um sentido positivo e determinado.

Olha, Mário, esta questão parece-me destituída de sentido, como se estivéssemos a discutir o sexo dos anjos. Porque não aceitar  simplesmente que o nome de poesia é um nome que nos transmite o seu conteúdo sem suscitar qualquer problema? E já agora, para contrabalançar a tendência teorizante dos nossos diálogos, proponho-te que falemos de assuntos mais circunstanciais e mais ligados à realidade imediata e particular. Estou a referir-me à minha experiência de poeta e não tanto no seu processo específico como no que respeita às suas determinantes externas e a algumas circunstâncias ou episódios da minha biografia enquanto poeta.

Mário disse-me então: estou perfeitamente de acordo contigo. E, se me permites, colocar-te-ei algumas questões relativas à  tua biografia de poeta. Em primeiro lugar, quero perguntar-te: como se processou em ti o início da prática da escrita poética? Foi um processo fácil e espontâneo ou uma elaboração difícil e dolorosa?

Respondi-lhe: tenho uma certa dificuldade em explicar-te o que me levou à prática da poesia. O que sei de uma forma clara é que comecei a escrever porque amava os poetas que lia e com os quais me identificava ao ponto de os querer imitar. Este processo de identificação e de imitação determinou não só os primeiros poemas que escrevi mas também todos ou quase todos os poemas que até agora escrevi. Não tenho qualquer receio em afirmar que a originalidade dos meus poemas, sobre a qual, aliás, não tenho dúvidas, não é resultante apenas da singularidade do sujeito que sou mas também da confluência de inúmeras leituras que me estimularam e foram sempre decisivas na minha formação poética.

Naturalmente, os meus primeiros poemas não possuiam nível poético e só mais tarde, depois dos vinte e cinco anos, logrei escrever poemas de uma certa qualidade, como, por exemplo, "O Boi da Paciência", que escrevi de um jacto, no primeiro andar do café  Chave de Ouro. Esse poema nasceu, inesperadamente, com uma violência e uma espontaneidade que me surpreenderam, e foi então  que o poeta que sou deu o seu primeiro passo.

Esse poema, como, aliás, outros que escrevi posteriormente, não poderia surgir se eu não tivesse lido deslumbradamente a obra poética de Carlos Drummond de Andrade, que foi um dos primeiros poetas a influenciar-me juntamente com Paul Eluard. Seria uma questão impertinente pretender saber o que seria especificamente meu e o que seria a contribuição do autor de "A Rosa do Povo". Esse poema foi o resultado imediato de uma dolorosa experiência  humana que veio a encontrar a sua formulação graças à influência  libertadora desse grande poeta brasileiro.

Supor que a influência e a originalidade constituem uma dicotomia  é um erro solipsista e uma perfeita idiotice. As influências são,  já por si, resultantes de uma receptividade pessoal em relação a tal ou tal obra e não indiscriminadamente a qualquer autor. Ninguém poderia escrever um poema sem ter lido outro poeta. Supor o contrário é admitir que o poeta é um ser isolado no mundo e, por conseguinte, sem o conhecimento do mundo literário ou, no caso dos poetas populares, sem a existência de uma tradição oral.

Mas se é assim, perguntou-me Mário, por que é que os escritores  têm tanto receio das influências e de serem acusados de as sofrerem?

Penso, respondi, que esse receio se deve a uma falsa noção de originalidade que não tem em conta a sua relação com a confluência das obras que todo o escritor lê, a que não pode deixar de ser sensível e em relação às quais é sempre devedor. No que me diz respeito, esse receio não existe. Considero-me um poeta extremamente influenciável e até um pouco plagiador. Sobre alguns pequenos plágios que cometi em alguns dos meus livros, falar-te-ei daqui a pouco. Aliás, digo-te já que, sendo autor de alguns milhares de versos, me posso permitir cometer um ou outro plágio ou, empregando outra palavra, talvez mais justa, uma ou outra incorporação, como o faziam os clássicos e, como por exemplo, Camões logo no primeiro verso de "Os Lusíadas".

Na verdade, sou extremamente receptivo em relação aos poetas que amo e admiro e os meus livros de poemas não seriam o que são, sobretudo alguns deles, se eu não tivesse lido determinados poetas que exerceram sobre mim uma atracção e um fascínio irresistíveis, tão irresistíveis como o desejo de os imitar e de integrar o que de novo eles traziam na minha escrita poética.

Verifico, porém, que esta fascinação que exercem certos poetas sobre mim e o decorrente desejo de os imitar não se traduz objectivamente numa obra destituída de originalidade e de cunho pessoal. Entre a obra que imitei ou tentei imitar e a obra que escrevi subsiste uma diferença essencial e é essa diferença que me leva a pensar que o meu livro possui a autonomia e a originalidade que considero imprescindíveis numa obra literária e que, de modo algum, foram prejudicadas pela influência que sobre ela exerceu outra obra. Pelo contrário, a influência pode ser decisiva para a descoberta da voz original do poeta que procura o seu caminho ou que, tendo-o encontrado, aspira a novos rumos para que a identidade se renove e se intensifique. Estive todo este tempo a ouvir-te sem te interromper, disse-me Mário, porque quis ouvir a tua argumentação até ao fim, tão interessado estava nela. Estou de acordo contigo, embora tenha ficado um pouco surpreendido.

Fonte:
in "Jornal de Letras", 25/08/1992

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