quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (Cabo Verde – 2. Narrativa)

2.     NARRATIVA

Embora o primeiro texto ficcional da moderna literatura cabo-verdiana se deva a Manuel Lopes («Um galo que cantou na baía» in Claridade, n.° 2, excerto do conto mais tarde inserido no livro, sensivelmente com o mesmo título (1959), é com o romance Chiquinho (1947) de Baltazar Lopes que se abre a série da ficção cabo-verdiana. Narrativa a todos os títulos importante como expressão do mundo insular e ainda pela reinvenção da escrita   que   se   organiza,   em   parte,   a   partir   da incorporação na linguagem de signos, expressões ou formas sintácticas dialectais. Longe, é certo, da ruptura abissal que o brasileiro Guimarães Rosa ou o angolano Luandino Vieira mais tarde levariam às últimas consequências.

É legítimo, no entanto, considerá-lo pioneiro na busca de processos para a construção de novas línguas no espaço africano de expressão portuguesa; e, para melhor se poder avaliar deste mérito, há que ter em conta que a sua experiência data de 1938, altura em que aquele romance foi acabado. Isto se pode aplicar enquanto contista disperso por revistas, incluindo Claridade. E se é legítimo adiantar-se que a ruptura iniciada por este narrador é ponto corrente em quase toda a narrativa cabo-verdiana, não menos legítimo é dizer que nenhum outro autor logrou ir tão longe nem tão conseguida pesquisa foi obtida em qualquer outro como em Baltazar Lopes. Alguns, mesmo, preferiram a utilização do português fundamental, com o recurso normal a signos dialectais, embora os diálogos das personagens de extracção social popular (são a maioria) se construam de harmonia com a sua fala e, neste caso, as interferências do dialecto crioulo sejam notáveis e constantes.

Não nos esqueçamos de que se trata de um espaço bilingue e que o dialecto crioulo pode ser considerado uma língua novi-latina (a língua cabo-verdiana) de léxico na sua quase totalidade (noventa e sete por cento) oriundo da língua portuguesa, e naturalmente a reapropriação (com tudo quanto a palavra implica: reelaboração fonética, morfológica, sintáctica e semântica) continuada de palavras (sintagmas) portuguesas por parte do dialecto crioulo que são depois devolvidas, já modificadas, à escrita em português. Eis assim um português cabo-verdianizado onde, inclusive, por vezes, o eixo sintagmático é alterado. Quer a narrativa quer a lírica se enriquecem pelos mais variados processos de reconstrução linguística: convivência, hibridismo, neologismo s e daí a novidade, a invenção permanentemente revelada do insupeitado lastro de uma linguagem de recursos inesgotáveis.

Com obra ficcional publicada, além dos autores assinalados, são António Aurélio Gonçalves, Teixeira de Sousa, Teobaldo Virgínio, Luís Romano, Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Onésimo Silveira, Nuno Miranda, João Rodrigues (Montes Verde-Cabo, 1974), Artur Carvalho (Um natal em S. Miguel, 1975), Orlanda Amarilis. Isto sem a exclusão de outros nomes, como Virgílio Pires, estreado em 1958 (n.° 8 de Claridade) e tido como revelação incontestável; Maria Margarida Mascarenhas, que participou em «Sèló» e com larga colaboração no Cabo-Verde e Presença crioula (Lisboa), evidenciando qualidades de mérito real; Pedro Duarte, Francisco Lopes, Manuel Serra, Leitão Graça, Aydeia Avelino Pires, mas estes últimos quase episodicamente, através do Cabo Verde, sem terem dado a medida exacta do seu talento; e também a recente amostra de Oswaldo Osório (vide excertos de romance in Voz di Povo, 1976), demasiado exígua para que possamos formular um juízo consciente.

Já há largos anos, Oscar Lopes, a propósito da Antologia de ficção cabo-verdiana contemporânea (1960) [94] e de outras obras da ficção cabo-verdiana, pronunciava-se nestes termos: «Eu agradeço à literatura de autoria ou temática cabo-verdianas umas horas de leitura vivamente interessada: o prazer de tantas pequenas ou grandes obras (refiro-me a dimensões gráficas) surpreendentemente bem consumadas» [95].

Com efeito, os narradores cabo-verdianos a partir de Claridade souberam centrar-se no mundo específico insular e procederam a uma denúncia muito viva da sociedade a que pertenciam. Nesta primeira fase era natural que estivessem todos eles sensíveis aos dramáticos problemas do Arquipélago: a seca, a fome, a emigração. (Pode mesmo dizer-se que a fome, é a grande personagem da narrativa cabo-verdiana). São elas algumas das grandes linhas temáticas da ficção cabo-verdiana. Mas na certeza de que a partir dessas motivações se desencadearia e, por vezes, de modo seguramente logrado, o tratamento de muitos dados e aspectos da vida social, económica, cultural. Níveis de vida, níveis de língua, níveis de cultura, personagens várias, populares ou não, de miséria ou grandeza, ali se fixaram, mercê da capacidade de análise social e psicológica, capacidade criadora, diríamos invulgar. Se a uma literatura do terceiro mundo buscarmos a expressão da sua própria mundividência, a expressão do seu universo específico, a resposta cabo-verdiana é positiva.

Baltazar Lopes abriu o caminho e como que muitas das propostas dos escritores que vieram depois por ele tinham já sido postuladas. Mas os segmentos sociais foram-se alargando, desenvolvendo, enriquecendo. Ao mundo da fome, da tragédia, de germinação da consciência política e da miséria social — à emigração, por exemplo, e ao mundo mítico que a envolve, com incidência na ilha de São Nicolau da parte de Baltazar Lopes — sucede o mundo epopaico de Manuel Lopes (Chuva brava, 1956; os contos O galo que cantou na baía, 1959; Os flagelados do vento leste, 1960) na ilha de Santo Antão, atravessado também pela fome, mas colocando o grande dilema de ter necessidade de partir, querendo ficar, terminando por ficar, o que contraria a tese da radicalização do evasionismo atribuído a Claridade.

Pretendeu-se, infundadamente, acusar de «paisagística» (e de muitas outras coisas más) a ficção cabo-verdiana subscrita pelos «claridosos», não sabemos se, em grande parte, com o pensamento em Manuel Lopes. Acusação estranha e injusta, chegando a dar a impressão de que Onésimo Silveira, autor de Consciencialização na literatura cabo-verdiana (1963), onde o fenómeno foi desencadeado, teria falado daquilo que não conhecia ou conhecia mal, pelo menos naquela altura. Os romances de Manuel Lopes constituem uma inserção vigorosa no real cabo-verdiano, profundamente desagregado em tempo de fome provocada pela estiagem. Podemos lamentar que aos seus romances faleça uma perspectiva aberta ao futuro. O drama cabo-verdiano surge, por assim dizer, como uma fatalidade e por isso limitado na visão estática do autor-narrador. Mas, de um ou de outro modo, é inegável a sua significação literária e a importância capital que preenche na ficção cabo-verdiana.

Luís Romano (Famintos, 1962) vem situar a acção também na ilha de Santo Antão, juntando ao mundo destruído pela fome o mundo da repressão administrativa e laborai. Pensamos, no entanto, que um certo verbalismo, na fala das personagens funciona como interferências longas do narrador que prejudica o equilíbrio da estrutura romanesca. Documento generoso e libelo acusatório, virtude é, certeza, o largo recurso do léxico dialectal, inesgotável em Luís Romano. Onésimo Silveira da sua permanência em S. Tomé trouxe a experiência do homem cabo-verdiano em tempo de fome emigrado para as roças daquele Arquipélago, de que e testemunho o conto longo Toda a gente fala: sim senhor (1960).

Teobaldo Virgínio, irmão de Luís Romano, situando o desenvolvimento das suas narrativas no espaço social da mesma ilha de Santo Antão, primeiro em Distância (1963) e Beira do Cais (1963), inclui naquele uma expressão telúrica, sensual, em que os elementos líricos e romantizados se fundem na coexistência de um humor irreverente, ao mesmo tempo que uma aderência ao drama real do homem cabo-verdiano se desenvolve no dom da invenção de uma linguagem de carácter poético, muito viva. Em Vida crioula (1967), escrito em Luanda, transita para uma visão de apelo teórico e sentimental às raízes da crioulidade e para a adesão universal, um tanto como aconteceu com a sua última poesia. Ovídio Martins (Tcòucòinòa, 1962) procede à abordagem da amorabilidade e do sentimento profundo do envolvimento lírico e social da terra, abandonando, depois, pelos vistos, a narrativa.

Gabriel Mariano (O rapaz doente, 1963) acaba, porém, de reunir em volume (Vida e morte de João Cabafume, 1977) a quase totalidade dos seus contos dispersos por várias publicações, com relevo para o Cabo Verde. Agora sujeitos a cuidada revisão, dão-nos a medida inteira de um contador de histórias grudado ao real significativo do homem cabo-verdiano. Narrador, personagens, ambientes se identificam através de uma linguagem cabo-verdianizada, sabiamente estruturada para a expressão da epopeia quotidiana feita de sofrimentos, anseios, frustrações, desencontros e grandezas, e onde também o drama da subalimentação crónica tem a sua fala expressiva. Avança por vezes na exploração de comportamentos sociais diversificados, incluindo a pequena burguesia cabo-verdiana residindo em Iisboa. O picaresco se introduz neste espaço textual não como intenção gratuita, mas relevando de um campo semântico autêntico. Além do mais, o drama da emigração para S. Tomé, a tradução oral colada à intimidade social cabo-verdiana, figuras moduladas na corajosa dignidade de afrontar os abusos e as prepotências. Com este Vida e morte de João Cabafume (um título e raiz) de Gabriel Mariano a narrativa cabo-verdiana continua a revelar-se na sua inegável originalidade.

Em Nuno Miranda (Gente da ilha, 1961; Caminho longe, romance, s/d [1975]), de há muito radicado em Iisboa, a escrita verte uma certa nostalgia da terra de origem e do passado. Mas ele é um exemplo acabado de como um autor, à partida dotado, não alcança ultrapassar o jogo de contradições que ele em si próprio criou e assumiu. Isto se aplica sobretudo em relação a alguns contos e se insinua em muitas páginas do romance que reflectem a angústia do desencontro numa identificação do narrador com o autor. No romance, de estrutura um tanto ou quanto desequilibrada, há momentos de real interesse que são aqueles em que o narrador se concilia numa linguagem adequada. Mas certos diálogos por demais artificiosos, sobretudo quando se pontua filosoficamente, empobrecem o texto caracterizado por um estilo pretensioso e visivelmente untuoso que torna a leitura penosa. É nossa convicção que o autor pode, se quiser, no futuro, vencer as debilidades através de uma severa auto-crítica (de autor e de narrador). Ao cabo, «o que é preciso é coragem!» como diz o narrador no fechamento do romance.

Teixeira de Sousa, nos anos quarenta ligado aos neo-realistas portugueses e, deste modo, um dos pioneiros da ficção cabo-verdiana, só recentemente reuniu os seus contos em Contra mar e vento (1972). Histórias centradas no quadro da ilha do Fogo, lá onde se tornaram resistentes conflitos e tensões decorrentes de uma estrutura social sedimentada sob o signo do latifúndio. A infância, certos aspectos da confrontação social de classes, a desesperada luta pela sobrevivência, o heroísmo quotidiano, a honradez, ressonâncias da labuta aventurosa do cabo-verdiano pela América, são alguns dos segmentos incisivos que estruturaram esta obra. Picaras, dramáticas, poéticas, ou impregnadas de um certo humor ou de uma certa ironia, ou ainda às vezes de uma fina melancolia, mas sempre profundamente significativas, num estilo caracterizado pela limpidez, incisivo, com este discurso, Teixeira de Sousa dá-nos um dos enunciados mais equilibrados e autênticos da narrativa cabo-verdiana, revelando um fôlego de narrador excepcional.

Em meio deste panorama, encontramos o nome de António Aurélio Gonçalves. Uma espécie de outsider. De um tempo anterior aos homens de Claridade, uma larga permanência em Iisboa, onde conviveu com alguns intelectuais africanos (Castro Soromenho, Viana de Almeida) e portugueses (Castelo Branco Chaves e Álvaro Salema que tem dedicado, através do seu longo exercício da crítica, entusiastas e excelentes palavras à literatura cabo-verdiana) regressa à ilha de S. Vicente e aí partilha da aventura do grupo de Claridade na qual se estrearia como novelista. Alguns dos seus textos, que faz e refaz, e sempre arrancados das suas mãos à força, aparecem no Cabo Verde e, entretanto, espaçadamente, são-lhe editadas quatro noveletas (a designação é sua): Pródiga (1956); O enterro de nha Candinha Sena (1957); Noite de vento (197 0);Vitgens loucas (1971).

O tempo histórico é o dos nossos dias; o espaço, exclusivamente o da ilha de S. Vicente. Dotado de uma capacidade notável para a análise subjectiva e elaboração dos diálogos, organiza o seu espaço literário numa relação muito íntima entre o aprofundamento psicológico e o meio social em que as personagens estão concretamente inseridas. Com um conhecimento firme e atento do micro-universo da cidade do Mindelo, revela um raro dom de manipulação de ingredientes, aparentemente ínfimos, para uma significação larga desse real, não raro num trajecto mítico. No gosto da exploração de parábolas bíblicas (filho pródigo: Pródiga; virgens imprudentes: Virgens loucas) «sóbrio e sucinto, o texto toca o lírico, o dramático e o trágico, apresentando uma galeria de tipos caboverdianos que nos chegaram cheios de vida e de verdade», nas palavras de Maria Lúcia Lepecki [97]. Textos abertos que surpreendem e fazem o leitor participar e continuar o desenvolvimento do seu processo inventivo.

A última revelação vem com o livro de contos Caes-do-Sodré té Salamansa (1974) de Orlanda Amarilis, que esteve ligada ao grupo de Certeza. Orlanda Amarilis sagra-se como a primeira narradora cabo-verdiana com livro publicado. Histórias tecidas de uma experiência cabo-verdiana e ecuménica, o espaço literário repartido entre a ilha de S. Vicente e a cidade de Lisboa, é assim um pouco também sobre a diáspora cabo-verdiana. De um lado, um certo «desencanto» (título de um dos contos), ou a mal contida amargura, ou a nostalgia no exílio em terra onde aos protagonistas fazem sentir que são estranhos; por outra, a inserção no mundo de carências da terra natal ou o reencontro possível com as raízes e uma penetração no fantástico adequado a certos níveis mentais do arquipélago. Texto de excelentes recursos estilísticos, uma reapropriação do lastro dialectal de inegável rigor e sugestivo efeito, eis-nos na fruição (barthiana) de uma linguagem cabo-verdianizada, das mais bem conseguidas da ficção crioula. Sensibilidade marcadamente feminina, cativa dos gestos, das falas, das apetências quotidianas, o seu discurso alarga o tecido de análise social e psicológica e aprofunda a perspectiva do drama na narrativa cabo-verdiana.
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Notas

94 Antologia da ficção cabo-verdiana contemporânea, selecção e notas de Baltasar Lopes, introdução de Manuel Ferreira e comentário de António Aurélio Gonçalves. Praia, Cabo Verde, 1960.

95    Oscar Lopes, Lm- e depois. Porto, Editorial Inova, 1969. Recolha de críticas publicadas no suplemento «Cultura e Arte» de O Coméráo do Porto.

96    Um dos tópicos da literatura cabo-verdiana é a «partida». Teria cabido a Eugênio Tavares glosar pela primeira vez o drama da emigração no poema «Hora di bai»: hora da partida, hora   da   despedida,   «hora   di   dor».   Partida   que   é   uma consequência da seca, da fome: emigração. Paralelamente, há uma outra atitude que se insinua e depois se define: o desejo de partir pela necessidade de ver outras terras, outras gentes. Necessidade    de    compensar,    em   meios    de    acentuado desenvolvimento social e intelectual, a vida estreita das ilhas. Estado de espírito este de natureza cultural e sentimental. E às vezes mais «literário» do que real. A isto se chamou, depois, evasiomsmo.   Querendo-se  significar a fuga,  o  abandono,  a desresponsabilização. O nosso esquema seria este:
emigração:      origem      económica      — motivação real
Terralongismo — evasionismo:      origem      intelectual      — motivação real ou não Onésimo da Silveira, no ensaio citado, desencadeou um ataque directo à literatura cabo-verdiana subscrita pelos homens da Claridade e de alguns outros que vieram depois, acusando-a de vários males e um deles seria o de «evasionismo». Isto levar-nos-ia longe. Mas desejaríamos aqui deixar consignado o seguinte:
a) — Nos anos 30-40, de um modo geral, os escritores sentiam a necessidade de alargar os seus horizontes e isso não pressupunha de modo nenhum um desenraizamento;
b) — No discurso da «evasão» não estava explícito o abandono e sim implícito o regresso;
c) — Se virtude possui a literatura cabo-verdiana dessa época é exactamente a do elevado grau de responsabilização que os autores demonstraram no empenhamento de se inserirem no centro do universo crioulo, rompendo, de vez, com um passado de alienação literária.

97   Maria  Lúcia  Lepecki  —   crítica   a   Virgens  loucas  in COLÓQUIO /Letras, n.° 11. Lisboa, janeiro de 1975, p. 77.

Continua…3. Drama

Fonte:
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa I Biblioteca Breve / Volume 6 – Instituto de Cultura Portuguesa – Secretaria de Estado da Investigação Científica Ministério da Educação e Investigação Científica – 1. edição — Portugal: Livraria Bertrand, Maio de 1977

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